por André Luiz Souza Coelho
Na teoria de Habermas, um discurso é uma interação comunicativa entre dois ou mais falantes que tentam entender-se sobre algo no mundo e chegar a um acordo racional sobre algo que se tornou problemático. É um processo de dar e receber razões ao longo do qual existe aprendizado recíproco e alargamento de perspectivas, de forma que os falantes possam partir de uma situação inicial de dissenso e chegar a uma situação final de consenso sem que nenhum deles tenha sido enganado ou coagido. É um diálogo com vista a buscar a melhor resposta, em que todos participam em condições de liberdade e igualdade, em que todos os pontos de vista e contribuições são levados em conta e em que, por isto mesmo, a solução encontrada goza da presunção de ser válida e aceitável racionalmente. Trata-se, portanto, de uma discussão sob condições ideais de respeito e racionalidade.
Habermas costuma vincular esta versão idealizada do discurso a quatro pressupostos fundamentais: inteligibilidade, sinceridade, igualdade e liberdade. Isto quer dizer que os falantes compreendem perfeitamente bem os pontos de vista e contribuições uns dos outros, que afirmam enunciados apenas quando acreditam que são verdadeiros ou corretos e os rejeitam apenas quando acreditam serem falsos ou incorretos, que todos têm igual espaço para se manifestarem e têm suas manifestações levadas em conta com o mesmo peso e que não são constrangidos por pressões ou coações nem internas nem externas à situação de comunicação. A estes pressupostos devemos adicionar o princípio do discurso, segundo o qual um enunciado só é válido se puder ser objeto de consenso entre todos os participantes de um discurso racional a seu respeito. Desta forma, a validade de um enunciado não apenas não poderia ser verificada senão por meio de um discurso, mas também seria produzida por ele, porque equivalente, então, à aceitabilidade racional ou capacidade de obter consenso num discurso. (Em “Verdade e Justificação”, Habermas afirma que, no caso da pretensão de verdade, existe algo mais que apenas aceitabilidade racional, mas não aprofundaremos este ponto aqui.)
Evidentemente, Habermas está ciente de que se trata de uma idealização. Nenhuma discussão real corresponde perfeitamente a todos os quesitos de um discurso válido. Isto não quer dizer, contudo, que esta idealização não tenha valor epistêmico. Seu valor consiste em duas coisas. A primeira é ser uma reconstrução adequada dos pressupostos que estão implícitos quando nos engajamos uns com os outros numa discussão racional. Quer dizer, toda vez que, diante de uma questão que se tornou problemática, dois ou mais falantes iniciam uma discussão a respeito, em que tentam defender seus pontos de vista e convencer os demais, estão desde já assumindo, mesmo que tacitamente, os pressupostos do discurso. Quem faz uma afirmação numa discussão pressupõe que pode ser entendido por seus interlocutores, que acredita no que diz, que dá igual valor às contribuições de todos os falantes e que nenhum deles está obrigado a concordar com os outros a menos que de fato se veja convencido por seus argumentos.
A prova de que estes pressupostos são aceitos implicitamente é que sua violação explícita por um dos falantes gera reação negativa e cobrança justificada da parte dos outros falantes. Um falante que dissesse coisas incompreensíveis e se recusasse a explicá-las, que afirmasse coisas em que não acredita ou negasse as que acredita, que quisesse falar mas se recusasse a ouvir ou que tentasse impor seus pontos de vista mesmo contra bons argumentos em contrário ou seria repreendido pelos demais como um debatedor de má fé ou daria a entender a seus pares que o debate é inútil e, assim, causaria a ruptura da continuidade da comunicação. O mesmo se aplica ao princípio do discurso: Quem entra numa discussão pressupõe que a posição que conseguir provar-se mais aceitável é a que merece adesão de todos, pois, do contrário, a discussão seria dispensável. Neste sentido, embora o discurso tal como proposto por Habermas seja uma idealização, é o tipo de idealização que temos que assumir a cada vez que nos engajamos na prática de discutir uns com os outros sobre um ponto controverso, a fim de que esta prática faça sentido. Trata-se, assim, no mínimo, de uma idealização inevitável em discussões racionais.
A segunda coisa em que consiste o valor daquela idealização é seu potencial de servir como critério de contraste com que avaliarmos criticamente discussões reais. É claro que, para isto, devemos abrir mão do impossível: discussões reais nunca corresponderão totalmente ao ideal do discurso. Mas podemos lidar com aproximações suficientes e afastamentos justificados em relação a este ideal. Um dos elementos em relação aos quais teremos que ser indulgentes é o fator tempo. Na versão idealizada, os falantes dispõe de quanto tempo for necessário até que a questão tenha sido exaustivamente examinada e as dúvidas e divergências plenamente desfeitas. Discussões reais raramente contam com tamanha profusão temporal, pois os falantes não apenas precisam limitar a quantidade de atenção e contribuição que dedicam a cada discussão, mas também se veem frequentemente pressionados por algum prazo ou urgência a chegarem a um acordo num estado ainda não exaustivo do debate. Diante disto, quando um debate real é encerrado, geralmente ainda persiste um número considerável de detalhes que não foram esclarecidos, de objeções que não foram levantadas, de dúvidas que não foram respondidas e de prevenções, suspeitas e discordâncias que não foram desfeitas. Porém, se empregamos a idealização apenas como referência de contraste, podemos considerar que uma discussão que se estendeu por tempo suficiente para que as principais posições fossem levantadas e debatidas e para que a convicção dos falantes fosse formada pode contar como discurso válido. O tempo da discussão teria, então, se aproximado do ideal tanto quanto possível e se afastado dele por um motivo justificado, no caso, a necessidade de decidir sob pressão de um prazo ou urgência.
O mesmo tipo de indulgência terá que ser praticada em relação aos quatro pressupostos do discurso. Em discursos reais, alguns equívocos e mal-entendidos de compreensão costumam passar despercebidos e perdurar até o fim da discussão, o que violaria o pressuposto de inteligibilidade, mas, se não tiver privado os falantes de compreensão suficiente do núcleo principal daquilo com que concordaram, não terá prejudicado a validade do discurso. É frequente que os falantes usem argumentos com que não concordam inteiramente e rejeitem argumentos de que não discordam inteiramente apenas porque, no curso do debate, tais posturas mostrariam sob luz mais favorável a posição que pretendiam defender, o que violaria o pressuposto de sinceridade, mas, se não tiver levado os falantes a concordarem contra suas convicções mais profundas e sua vontade mais íntima, não terá tornado inválido o discurso. Em muitos casos, falantes que gozam de maior status, prestígio ou autoridade exterior ao discurso conseguem ser ouvidos com mais atenção e têm suas contribuições levadas em conta com maior peso, o que violaria o pressuposto de igualdade, mas, se não tiver feito um argumento mais fraco prevalecer com base exclusivamente em que o enunciou, não terá levado a um discurso inválido. Finalmente, o receio de divergir, a resistência dos ouvintes, o desejo de fomentar integração e evitar conflitos etc. fazem muitos falantes deixarem de levantar objeções e propor alternativas a uma resposta com que a maioria parece concordar enfaticamente, o que violaria o pressuposto da liberdade, mas, se não tiver levado os hesitantes a concordarem com posições que agridem suas convicções mais profundas e sua vontade mais íntima, também não terá invalidado o discurso.
Em cada caso, será preciso notar quando se está diante de uma aproximação suficiente ou insuficiente, de um afastamento justificado ou de uma violação aos pressupostos do discurso, pois isto distinguirá um discurso suficientemente próximo do ideal para ser considerado válido de um discurso de fato inválido. Um discurso em que os pontos principais do que foi acordado estão vertidos numa linguagem técnica ou especializada compreensível para apenas uma das partes da discussão (como ocorre em muitas negociações de contratos de trabalho e contratos de adesão) é sem dúvida um discurso inválido. Um discurso em que o falante consciente e intencionalmente fabricou dados, atribuiu ações ou declarações a quem jamais os fez ou forneceu relatos que se afastam dos fatos (como ocorre em muitas peças de publicidade e pronunciamentos políticos com fins eleitorais) é sem dúvida um discurso inválido. Um discurso em que falantes que seriam afetados pela decisão final foram excluídos da discussão (como ocorre em muitos discursos legislativos e judiciais) ou em que uma das partes abusou da credibilidade de que goza para convencer os demais de uma posição dificilmente defensável (como ocorre em muitos discursos familiares e religiosos) é sem dúvida um discurso inválido. Um discurso em que alguns dos falantes tinham fundado receio das consequências que poderiam atingi-los se divergissem da posição proposta pelos demais (como ocorre com muitos discursos no ambiente de trabalho e no cenário internacional) ou em que os que pretendiam divergir foram ignorados, ridicularizados, hostilizados e silenciados (como ocorre em muitos discursos sobre minorias) é também sem dúvida um discurso inválido. Em todos estes casos, a aparência de discurso terá sido usada para produzir um embuste de consenso, com intenção de sustentar como se fosse do comum acordo entre todos aquilo que é da opinião ou do interesse de apenas algumas das partes, geralmente as majoritárias ou as mais fortes e poderosas.
Por isto, a crítica que tantas vezes se ouve fazer contra Habermas, de que seu conceito de discurso é demasiadamente idealizado e de que é ingênuo de sua parte acreditar que as discussões do mundo real não sejam permeadas de interesse, poder e violência é uma acusação equivocada de pelo menos duas formas distintas. Primeiro, porque Habermas está perfeitamente ciente de que seu conceito é idealizado e de que discussões reais envolvem interesse, poder e violência. Ele apenas considera que, a menos que tenhamos em vista esta idealização, não conseguiremos explicar por que os sujeitos se engajam em discussões racionais nem por que tais discussões têm força de formação e mudança de suas opiniões. Se abrirmos mão da idealização do discurso, toda discussão nada será além de uma tentativa irracional falar sem ouvir e de convencer quem não se permitirá convencer (o que de fato é o caso de algumas discussões, as infrutíferas, mas nem todas são assim, do contrário, discutir não seria uma prática racional).
Em segundo lugar, a acusação é equivocada porque negligencia o papel que as idealizações desempenham em nossas práticas. Somente com a idealização, por exemplo, do agente responsável é possível considerá-lo imputável por suas ações; somente com a idealização da opinião e vontade homogênea de grandes grupos é possível falar de vontade majoritária; somente com a idealização de que todos reagimos da mesma forma aos mesmos estímulos, é possível compartilhar com outros a beleza de um pôr-do-sol ou de uma peça de Mozart. Não é como se o tratamento da realidade empírica despido de qualquer idealização fosse realmente uma alternativa disponível. No caso específico dos discursos reais, considera-los apenas como exercícios de interesse, poder e violência é não apenas esvaziá-los de seu potencial cognitivo, mas também declarar que o tratamento respeitoso e racional do outro é simplesmente impossível, que a única intersubjetividade que pode existir é a manipulação e exploração mais ou menos descarada – o que é ao mesmo tempo uma descrição inadequada das experiências de interação e troca genuína e respeitosa que todos já tivemos e uma sabotagem conveniente do diálogo e da democracia por aqueles que, descrendo da força das razões, provavelmente só acreditam no autoritarismo e na violência.
Fonte: Filósofo Grego