sexta-feira, 29 de março de 2013

Habermas: Discurso, Idealização e Crítica


por André Luiz Souza Coelho

Na teoria de Habermas, um discurso é uma interação comunicativa entre dois ou mais falantes que tentam entender-se sobre algo no mundo e chegar a um acordo racional sobre algo que se tornou problemático. É um processo de dar e receber razões ao longo do qual existe aprendizado recíproco e alargamento de perspectivas, de forma que os falantes possam partir de uma situação inicial de dissenso e chegar a uma situação final de consenso sem que nenhum deles tenha sido enganado ou coagido. É um diálogo com vista a buscar a melhor resposta, em que todos participam em condições de liberdade e igualdade, em que todos os pontos de vista e contribuições são levados em conta e em que, por isto mesmo, a solução encontrada goza da presunção de ser válida e aceitável racionalmente. Trata-se, portanto, de uma discussão sob condições ideais de respeito e racionalidade.

Habermas costuma vincular esta versão idealizada do discurso a quatro pressupostos fundamentais: inteligibilidade, sinceridade, igualdade e liberdade. Isto quer dizer que os falantes compreendem perfeitamente bem os pontos de vista e contribuições uns dos outros, que afirmam enunciados apenas quando acreditam que são verdadeiros ou corretos e os rejeitam apenas quando acreditam serem falsos ou incorretos, que todos têm igual espaço para se manifestarem e têm suas manifestações levadas em conta com o mesmo peso e que não são constrangidos por pressões ou coações nem internas nem externas à situação de comunicação. A estes pressupostos devemos adicionar o princípio do discurso, segundo o qual um enunciado só é válido se puder ser objeto de consenso entre todos os participantes de um discurso racional a seu respeito. Desta forma, a validade de um enunciado não apenas não poderia ser verificada senão por meio de um discurso, mas também seria produzida por ele, porque equivalente, então, à aceitabilidade racional ou capacidade de obter consenso num discurso. (Em “Verdade e Justificação”, Habermas afirma que, no caso da pretensão de verdade, existe algo mais que apenas aceitabilidade racional, mas não aprofundaremos este ponto aqui.)

Evidentemente, Habermas está ciente de que se trata de uma idealização. Nenhuma discussão real corresponde perfeitamente a todos os quesitos de um discurso válido. Isto não quer dizer, contudo, que esta idealização não tenha valor epistêmico. Seu valor consiste em duas coisas. A primeira é ser uma reconstrução adequada dos pressupostos que estão implícitos quando nos engajamos uns com os outros numa discussão racional. Quer dizer, toda vez que, diante de uma questão que se tornou problemática, dois ou mais falantes iniciam uma discussão a respeito, em que tentam defender seus pontos de vista e convencer os demais, estão desde já assumindo, mesmo que tacitamente, os pressupostos do discurso. Quem faz uma afirmação numa discussão pressupõe que pode ser entendido por seus interlocutores, que acredita no que diz, que dá igual valor às contribuições de todos os falantes e que nenhum deles está obrigado a concordar com os outros a menos que de fato se veja convencido por seus argumentos.

A prova de que estes pressupostos são aceitos implicitamente é que sua violação explícita por um dos falantes gera reação negativa e cobrança justificada da parte dos outros falantes. Um falante que dissesse coisas incompreensíveis e se recusasse a explicá-las, que afirmasse coisas em que não acredita ou negasse as que acredita, que quisesse falar mas se recusasse a ouvir ou que tentasse impor seus pontos de vista mesmo contra bons argumentos em contrário ou seria repreendido pelos demais como um debatedor de má fé ou daria a entender a seus pares que o debate é inútil e, assim, causaria a ruptura da continuidade da comunicação. O mesmo se aplica ao princípio do discurso: Quem entra numa discussão pressupõe que a posição que conseguir provar-se mais aceitável é a que merece adesão de todos, pois, do contrário, a discussão seria dispensável. Neste sentido, embora o discurso tal como proposto por Habermas seja uma idealização, é o tipo de idealização que temos que assumir a cada vez que nos engajamos na prática de discutir uns com os outros sobre um ponto controverso, a fim de que esta prática faça sentido. Trata-se, assim, no mínimo, de uma idealização inevitável em discussões racionais.

A segunda coisa em que consiste o valor daquela idealização é seu potencial de servir como critério de contraste com que avaliarmos criticamente discussões reais. É claro que, para isto, devemos abrir mão do impossível: discussões reais nunca corresponderão totalmente ao ideal do discurso. Mas podemos lidar com aproximações suficientes e afastamentos justificados em relação a este ideal.  Um dos elementos em relação aos quais teremos que ser indulgentes é o fator tempo. Na versão idealizada, os falantes dispõe de quanto tempo for necessário até que a questão tenha sido exaustivamente examinada e as dúvidas e divergências plenamente desfeitas. Discussões reais raramente contam com tamanha profusão temporal, pois os falantes não apenas precisam limitar a quantidade de atenção e contribuição que dedicam a cada discussão, mas também se veem frequentemente pressionados por algum prazo ou urgência a chegarem a um acordo num estado ainda não exaustivo do debate. Diante disto, quando um debate real é encerrado, geralmente ainda persiste um número considerável de detalhes que não foram esclarecidos, de objeções que não foram levantadas, de dúvidas que não foram respondidas e de prevenções, suspeitas e discordâncias que não foram desfeitas. Porém, se empregamos a idealização apenas como referência de contraste, podemos considerar que uma discussão que se estendeu por tempo suficiente para que as principais posições fossem levantadas e debatidas e para que a convicção dos falantes fosse formada pode contar como discurso válido. O tempo da discussão teria, então, se aproximado do ideal tanto quanto possível e se afastado dele por um motivo justificado, no caso, a necessidade de decidir sob pressão de um prazo ou urgência.

O mesmo tipo de indulgência terá que ser praticada em relação aos quatro pressupostos do discurso. Em discursos reais, alguns equívocos e mal-entendidos de compreensão costumam passar despercebidos e perdurar até o fim da discussão, o que violaria o pressuposto de inteligibilidade, mas, se não tiver privado os falantes de compreensão suficiente do núcleo principal daquilo com que concordaram, não terá prejudicado a validade do discurso. É frequente que os falantes usem argumentos com que não concordam inteiramente e rejeitem argumentos de que não discordam inteiramente apenas porque, no curso do debate, tais posturas mostrariam sob luz mais favorável a posição que pretendiam defender, o que violaria o pressuposto de sinceridade, mas, se não tiver levado os falantes a concordarem contra suas convicções mais profundas e sua vontade mais íntima, não terá tornado inválido o discurso. Em muitos casos, falantes que gozam de maior status, prestígio ou autoridade exterior ao discurso conseguem ser ouvidos com mais atenção e têm suas contribuições levadas em conta com maior peso, o que violaria o pressuposto de igualdade, mas, se não tiver feito um argumento mais fraco prevalecer com base exclusivamente em que o enunciou, não terá levado a um discurso inválido. Finalmente, o receio de divergir, a resistência dos ouvintes, o desejo de fomentar integração e evitar conflitos etc. fazem muitos falantes deixarem de levantar objeções e propor alternativas a uma resposta com que a maioria parece concordar enfaticamente, o que violaria o pressuposto da liberdade, mas, se não tiver levado os hesitantes a concordarem com posições que agridem suas convicções mais profundas e sua vontade mais íntima, também não terá invalidado o discurso.

Em cada caso, será preciso notar quando se está diante de uma aproximação suficiente ou insuficiente, de um afastamento justificado ou de uma violação aos pressupostos do discurso, pois isto distinguirá um discurso suficientemente próximo do ideal para ser considerado válido de um discurso de fato inválido. Um discurso em que os pontos principais do que foi acordado estão vertidos numa linguagem técnica ou especializada compreensível para apenas uma das partes da discussão (como ocorre em muitas negociações de contratos de trabalho e contratos de adesão) é sem dúvida um discurso inválido. Um discurso em que o falante consciente e intencionalmente fabricou dados, atribuiu ações ou declarações a quem jamais os fez ou forneceu relatos que se afastam dos fatos (como ocorre em muitas peças de publicidade e pronunciamentos políticos com fins eleitorais) é sem dúvida um discurso inválido. Um discurso em que falantes que seriam afetados pela decisão final foram excluídos da discussão (como ocorre em muitos discursos legislativos e judiciais) ou em que uma das partes abusou da credibilidade de que goza para convencer os demais de uma posição dificilmente defensável (como ocorre em muitos discursos familiares e religiosos) é sem dúvida um discurso inválido. Um discurso em que alguns dos falantes tinham fundado receio das consequências que poderiam atingi-los se divergissem da posição proposta pelos demais (como ocorre com muitos discursos no ambiente de trabalho e no cenário internacional) ou em que os que pretendiam divergir foram ignorados, ridicularizados, hostilizados e silenciados (como ocorre em muitos discursos sobre minorias) é também sem dúvida um discurso inválido. Em todos estes casos, a aparência de discurso terá sido usada para produzir um embuste de consenso, com intenção de sustentar como se fosse do comum acordo entre todos aquilo que é da opinião ou do interesse de apenas algumas das partes, geralmente as majoritárias ou as mais fortes e poderosas.

Por isto, a crítica que tantas vezes se ouve fazer contra Habermas, de que seu conceito de discurso é demasiadamente idealizado e de que é ingênuo de sua parte acreditar que as discussões do mundo real não sejam permeadas de interesse, poder e violência é uma acusação equivocada de pelo menos duas formas distintas. Primeiro, porque Habermas está perfeitamente ciente de que seu conceito é idealizado e de que discussões reais envolvem interesse, poder e violência. Ele apenas considera que, a menos que tenhamos em vista esta idealização, não conseguiremos explicar por que os sujeitos se engajam em discussões racionais nem por que tais discussões têm força de formação e mudança de suas opiniões. Se abrirmos mão da idealização do discurso, toda discussão nada será além de uma tentativa irracional falar sem ouvir e de convencer quem não se permitirá convencer (o que de fato é o caso de algumas discussões, as infrutíferas, mas nem todas são assim, do contrário, discutir não seria uma prática racional).

Em segundo lugar, a acusação é equivocada porque negligencia o papel que as idealizações desempenham em nossas práticas. Somente com a idealização, por exemplo, do agente responsável é possível considerá-lo imputável por suas ações; somente com a idealização da opinião e vontade homogênea de grandes grupos é possível falar de vontade majoritária; somente com a idealização de que todos reagimos da mesma forma aos mesmos estímulos, é possível compartilhar com outros a beleza de um pôr-do-sol ou de uma peça de Mozart. Não é como se o tratamento da realidade empírica despido de qualquer idealização fosse realmente uma alternativa disponível. No caso específico dos discursos reais, considera-los apenas como exercícios de interesse, poder e violência é não apenas esvaziá-los de seu potencial cognitivo, mas também declarar que o tratamento respeitoso e racional do outro é simplesmente impossível, que a única intersubjetividade que pode existir é a manipulação e exploração mais ou menos descarada – o que é ao mesmo tempo uma descrição inadequada das experiências de interação e troca genuína e respeitosa que todos já tivemos e uma sabotagem conveniente do diálogo e da democracia por aqueles que, descrendo da força das razões, provavelmente só acreditam no autoritarismo e na violência.

Fonte: Filósofo Grego

Filosofia do Direito: a coerência favorece o status quo?


por André Luiz Sousa Coelho

O direito valoriza a coerência. O ideal de um ordenamento jurídico é ser não apenas um sistema consistente, isto é, sem contradições, mas também um sistema coerente, em que os conteúdos das normas se reforcem entre si e todas elas possam ser justificadas com base nuns poucos princípios fundamentais. Neste caso, a coerência não é apenas um ideal abstrato com valor estético-matemático, mas é também um corolário da igualdade jurídica, pois um ordenamento positivo não está dando a todos os jurisdicionados um tratamento igual se não estiver regulando suas condutas nos vários ramos do direito e em relação aos mais diversos bens jurídicos sempre segundo os mesmos critérios.

A coerência exige que novas decisões se ajustem às anteriores. Cada vez que se requer uma nova decisão judicial, ela não pode ser tomada como se nunca antes se tivesse tratado sobre o assunto em questão. Pelo contrário, ela tem atrás de si não apenas a legislação a que precisa se ajustar, mas uma massa de conceitos dogmáticos e decisões jurisprudenciais fixados anteriormente em relação aos quais a nova decisão precisa se comprovar razoável. De algum modo, toda decisão nova precisa se provar como mais um elo na cadeia de continuidade com uma história de decisões do passado (mesmo que existam múltiplos graus e formas de construção desta continuidade).

Esta exigência dificulta mudanças medianas e praticamente impede mudanças radicais. Uma vez que decisões novas precisam ser coerentes com decisões do passado, os juízes tenderão a repetir padrões já existentes, a seguir entendimentos já fixados e apelar para argumentos que ultrapassaram a fase experimental e são aceitos não problematicamente. Todo desvio em relação a este eixo tem contra si o ônus dobrado de argumentação, porque precisa não apenas provar que existem boas razões para, no caso em questão, decidir de forma diferente, mas também que existe alguma razão para perturbar a sagrada monotonia do padrão dominante. Neste contexto, mudanças pequenas são simples de serem implementadas, mas mudanças medianas são trabalhosas e desgastantes e mudanças radicais se tornam raríssimas e praticamente impossíveis.  

Mudanças radicais por meio do direito só ocorrem com rupturas políticas com o padrão jurídico esperado. Mesmo se lembrarmos de julgamentos históricos em que o padrão até então vigente foi radicalmente subvertido (fim da segregação racial, autorização do aborto, aprovação da união homoafetiva etc.), dificilmente conseguiremos explicar tal subversão com base apenas na força das razões jurídicas. Quase sempre é necessária a intervenção de forte pressão política, com longa e habilidosa articulação das opiniões e das vontades através de jogos de bastidores, para que as coisas sejam decididas de modo distinto do que haviam sido até então. É sempre a muito custo que os juízes se afastam radicalmente da orientação reinante, e sempre são fortemente criticados por isto.

E aqui não adianta invocar Dworkin e o ideal do direito como integridade, dizendo que a coerência deve ser de princípios, e não de resultados, e que mesmo decisões que parecem rupturas com o padrão vigente podem ser reconciliadas com o histórico de decisões do passado se as virmos como continuidade reinterpretada dos mesmos princípios que orientaram as decisões com que elas parecem romper. A teoria de Dworkin é sobre como rupturas podem ser reinterpretadas como continuidades por outros meios, é sobre como decisões que produziram mudança social significativa não precisam ser vistas como quebras da coerência do sistema. Isto não muda o fato de que a coerência do sistema predispõe os juízes em favor do status quo e de que mudanças radicais são raras e muito custosas.

Contudo, uma vez conquistadas, as mudanças são protegidas e mantidas pela coerência. Esta é a outra face da mesma moeda. A coerência tem compromisso com manutenção de conteúdo, mas não de certo conteúdo específico, e sim de qualquer conteúdo que se tenha tornado oficialmente dominante. Uma vez que as mudanças radicais (como os direitos de minorias, por exemplo) se tornam parte do conteúdo do direito vigente, a coerência torna obrigatório que decisões futuras respeitem este novo conteúdo introduzido no sistema, ajudando as mudanças a se tornarem estáveis e definitivas. Não fosse por isto, a mudança que só se processou depois de mil batalhas teria ainda outras mil batalhas pela frente para manter-se vigente. A coerência neste caso, atua como um filtro que protege contra a mudança antes de ela acontecer, mas também contra a reação conservadora, isto é, a tentativa de mudança da mudança, depois que esta última foi conquistada.

Mas não se pode negar que a coerência torna o legislativo uma via mais apropriada para mudanças radicais. As mudanças mais significativas que se processaram por via do judiciário foram raras e custosas. Esta é um caminho que nem toda mudança social pode se dar ao luxo de trilhar. Muitas mudanças radicais não têm recursos materiais nem suficiente adesão popular para construir nos bastidores uma frente judicial de desvio do referencial dominante de decisão. A maioria delas não apenas seria derrotada no fórum judiciário, mas sua derrota seria silenciosa e discreta, nada que seria sequer percebido como distorção ou efeito colateral indesejado do sistema jurídico. Nestas circunstâncias, tais mudanças só têm um caminho a tomar, que é o da tentativa de reforma legislativa.

E contar apenas com o legislativo é sempre mau negócio para os que querem mudanças radicais. O legislativo é um órgão majoritário, que representa não apenas a maioria dos cidadãos, mas também a maioria das opiniões dominantes. Afastar-se do status quo para tomar uma decisão revolucionária e impopular pode significar o fim dos mandatos e mesmo das carreiras de todos os parlamentares envolvidos no processo. Pior ainda: O projeto de lei pode eliminar as perspectivas de reeleição dos que tiverem dado apoio a ele e no final pode nem sequer ser aprovado. Conseguir formar a maioria necessária de votos por meio de lobby e pressão é ainda mais complicado e envolve ainda mais recursos do que fazer esta articulação no judiciário. Para os proponentes de mudanças radicais, ter apenas o legislativo com que contar é como para um indivíduo não ter emprego e contar apenas com a loteria para ter moradia e alimentação para o próximo mês.

Além disto, recomendar a via do legislativo é o mesmo que reconhecer que é a política, e não o direito, quem pode proporcionar a mudança radical. Neste caso, mesmo que a reforma legislativa não fosse um sonho tão distante, os movimentos que reivindicam mudança social só investiriam nela todas as suas fichas caso estivessem convencidos de que a reforma por meio de decisão judicial é inviável. Se dissermos a eles que é tudo uma questão de introduzir o conteúdo novo no direito, pois a coerência resiste á mudança até que ela aconteça, mas a protege depois de realizada, estaremos admitindo exatamente o núcleo da acusação com que começamos este debate: que a coerência torna o direito hostil à mudança e o vincula ao status quo.

Fonte: Filósofo Grego

A condição humana na modernidade

Hannh Arendt


Considerações sobre Hannah Arendt e Chantal Mouffe
Miroslav Milovic
Para Martin Heidegger, a pergunta sobre os Outros vai ser apenas uma promessa – como dirá Jurgen Habermas – que ele nunca vai cumprir. A filosofia heideggeriana não é a filosofia dos Outros. Um específico egoísmo, talvez o europeu, domina sua filosofia. Assim, a filosofia de Heidegger se transforma numa específica geopolítica. Edmund Husserl também, falando sobre a crise atual da humanidade, aponta a Europa como a única alternativa. Mas o que dizer sobre a tradição européia e essa impossibilidade filosófica de incluir a questão sobre o Outro? O que dizer sobre esse específico autismo europeu? O conceito da Europa, por exemplo, iniciou-se e se fortaleceu – como algumas interpretações históricas estão sugerindo – com as Cruzadas, dentro dessa identidade militar e não dentro da pergunta sobre os Outros e sobre a diferença. Por causa disso, pode ser que o atual discurso sobre a grandeza européia seja somente a tentativa de esconder a sua mediocridade.
Por isso é compreensível a desconfiança que Jacques Derrida tem sobre Heidegger. A profunda filosofia heideggeriana não fez dele um democrata. Assim, parece que o projeto da confrontação com a tradição e a modernidade, o esboço da destruição da metafísica fica ainda aberto. O projeto não se realizou com a hermenêutica heideggeriana. É preciso pensar uma nova perspectiva, talvez uma nova articulação da diferença ontológica. É o ponto inicial da filosofia de Derrida; é o ponto para abordar a desconstrução da filosofia. A discussão começa já na confrontação com Husserl no livro Voz e fenômeno. Aqui a questão ainda parece só acadêmica, ligada à herança kantiana, porque se refere às condições da síntese da consciência transcendental. O que é importante para Derrida, nesse contexto inicial, é que a questão sobre a consciência, nem para Immanuel Kant, nem para Husserl, ficou ligada à problemática da linguagem. A linguagem chega tarde para quase toda a história da filosofia. Isso é o que Derrida quer questionar, mostrando que a linguagem está no centro da estrutura da consciência. As condições transcendentais da consciência não podem ser articuladas sem a linguagem. Os signos lingüísticos se referem aos objetos ausentes. A consciência, por um lado, precisa da síntese dos dados diferentes, e a síntese, por outro, precisa dos signos, precisa de algo que vai ocupar o lugar dos objetos ausentes. Assim, a linguagem é a condição da síntese na consciência. A consciência é sempre a relação com algo diferente, com a linguagem. A consciência é mediada pela linguagem e, por causa disso, não podemos falar sobre a subjetividade constitutiva. A identidade é sempre mediada pela diferença. Aqui temos o início do projeto derridiano de gramatologia. O que agora existe são apenas os signos ou, melhor dizendo, pegadas, porque Derrida, com essa idéia da linguagem, não quer criar o novo lugar da condição transcendental.
A subjetividade e outros lugares privilegiados do pensamento tradicional têm de ser desconstruídos. A metafísica que pensa a identidade – ou a metafísica da presença – tem de ser superada pelo pensamento da diferença. Essa específica emancipação ou afirmação do signo não se refere à hermenêutica e ao projeto heideggeriano. Derrida não é um autor hermenêutico ou estético, como pensa Gianni Vattimo. A hermenêutica de Heidegger ainda afirma os lugares privilegiados para pensar a autenticidade do ser. Assim, ela ainda não é a diferença verdadeira, a diferença que produz a diferença. A diferença de Heidegger parece mais uma diferença reificada, determinando – poderíamos dizer assim – os lugares para a aparição do autêntico. A diferença heideggeriana ainda não é utópica. Heidegger ficou preso no horizonte da moderna metafísica da subjetividade. Por isso, o projeto da destruição da metafísica tem de ser superado pelo projeto de sua desconstrução.
Acho que as diferenças entre Heidegger e Derrida podem ajudar a entender as diferenças entre Hannah Arendt e Chantal Mouffe. Arendt vai iniciar o projeto sobre a política no contexto da diferença ontológica de Heidegger. Política faz a diferença, cria a ontologia, a possibilidade de Novo. Por isso, Arendt ainda tem o otimismo pensando a dignidade da política.
Com os motivos heideggerianos, ela vai voltar ao mundo grego, onde a política nasceu. A vida é ação, fala Aristóteles no início da Política. Sim, a vida é ação dirá também Hannah Arendt tentando separar a vida de uma elaboração metafísica e ligando à condição humana. A inspiração fenomenológica e heideggeriana fica clara. Pensar a política significa separar-se da metafísica, do essencialismo. Só assim pode aparecer o Novo. A política é para Arendt o lugar da ruptura com a metafísica.
A modernidade vai, assim, cair atrás do pensamento grego, afirmar a vida na política, a vida biológica, quer dizer, as condições da sobrevivência e do trabalho. Para os gregos, o projeto político não era sobreviver, mas viver bem e aproximar-se do mundo eterno. A modernidade, aproximando o privado e a natureza da política, anunciará uma especifica despolitização. O mundo moderno é o mundo sem a política, o mundo da economia e das condições da sobrevivência. Nós somos testemunhas dessa herança. Hoje, para sobreviver, agora no contexto do terrorismo, temos de criar as novas formas da autoridade política. Sobreviver ainda é um projeto político, ou melhor dizendo, junto a Arendt, é um projeto da negação da política. Estamos muito distantes do projeto grego que tentou unir a política à liberdade e não à natureza.
Voltar para a política – esse é o projeto de Hannah Arendt. Ou melhor, voltar para a política além da racionalidade. Hannah Arendt, mesmo confrontando os gregos e os modernos não quer afirmar novamente a metafísica na política, mas, sim, a herança heideggeriana.
De tal modo, afirmar a política para além da racionalidade são os pontos que unem Hannah Arendt e Chantal Mouffe. No entanto, a inspiração de Chantal Mouffe é diferente, posto que esta não vem da filosofia heideggeriana, mas, primeiro, da experiência psicanalítica, em que o sujeito é sempre falta, sempre uma condição conflitiva e, segundo, da idéia derridiana da diferença.
A diagnose da modernidade entre as duas é semelhante também. Mouffe vai falar sobre a perspectiva econômica do liberalismo moderno, no qual a política desaparece. A despolitização é a diagnose que ela, junto a Arendt, vai fazer sobre a modernidade. A condição humana na modernidade, para Arendt e para Mouffe, é mais individual e econômica que política e coletiva. Por isso, a modernidade chega só até a uma democracia representativa e não até a uma democracia participativa. O mundo liberal não é necessariamente ligado à democracia. Esse é o ponto onde Mouffe, procurando a inspiração em Carl Schmidt, vai se confrontar com autores como John Rawls, Richard Rorty e Habermas. Precisamos então repensar a política para articular as condições de uma nova democracia que Mouffe, junto com Ernesto Laclau, vai chamar de democracia radical ou agonística.
Até esse ponto convergem os caminhos entre Mouffe e Arendt. As diferenças começam quando tratam do conceito do pluralismo na política. No livro sobre o paradoxo democrático, Mouffe vai dizer que o pluralismo em Arendt fica sem antagonismo, ou que o agonismo político fica sem antagonismo. É o ponto onde uma inspiração derridiana supera uma inspiração heideggeriana.
Em suas várias discussões sobre política, Hannah Arendt se refere à discussão fenomenológica, ajudando-nos a compreender a importância histórica dessa radicalização do cartesianismo dentro da fenomenologia husserliana. Hannah Arendt acredita que a separação platônica entre o ser e a aparência marca um passo histórico não só para a vida dos gregos, mas para todo o caminho posterior da civilização. A desvalorização da aparência e a afirmação do ser são os aspectos da reviravolta na vida dos gregos e do Ocidente europeu. Com isso, tem início uma específica tirania da razão e dos padrões em nossas vida. Isso é o que Nietzsche elabora como o começo do niilismo na Europa. A estrutura já determinada, estática, entre o ser e a aparência, tem conseqüências catastróficas para o próprio pensamento. Nesse mundo tão ordenado, quase não temos que pensar mais, o pensamento não muda a estrutura dominante do ser. Essa inabilidade do pensamento termina, no último momento, nas catástrofes políticas do nosso século. Tantos crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo que não pensa e se torna cúmplice dos crimes: essa é a banalidade do mal diagnosticada por Hannah Arendt como a conseqüência dessa tradição filosófica, que quase mumificou a estrutura do ser e nos marginalizou.
Pensar a política, junto com a fenomenologia, significa pensá-la sem a identidade. No projeto arendtiano, em que não existe uma identidade originaria da politica, nós não somos os seres políticos por natureza. A política pode ou não acontecer entre nós. Contrária às dificuldades husserlianas e heideggerianas sobre os outros, a ação política em Arendt é sempre uma interação.Os outros são pressupostos e não conseqüências de uma reflexão solitária. Em livro sobre Santo Agostinho, Arendt vai se liberar da ontologia heideggeriana ligada à morte e procurar uma afirmação dos outros, dos próximos. Claro, Arendt sabe que Santo Agostinho não vai ligar a liberdade à política. A liberdade para ele não é um projeto político. Assim, a modernidade vai herdar essa dimensão não política da liberdade advinda do cristianismo.
Dentro dessa reconstrução histórica, Arendt chega até à filosofia kantiana. Kant não é um pensador político, melhor dizendo, quando a política aparece na filosofia kantiana, é sempre relacionada à doutrina do direito. Não existe a política, pensa Kant, que articula a nossa liberdade. É por isso que Arendt tem de procurar a inspiração em outro lugar dentro da filosofia kantiana e ela encontra essa inspiração dentro da terceira crítica.
Com a faculdade estética do juízo, o ponto, pensa Kant, é como compreendemos a natureza e não o que ela é em si mesma. A questão “o que é a natureza?” é uma pergunta cognitiva e, portanto, não pertence à Terceira crítica. A natureza existiria mesmo se não houvesse nenhum sujeito transcendental. Ela só não seria determinada conceitualmente. Mas, sem o sujeito, a natureza não seria bela. Ainda assim, aquilo que se torna o discurso possível sobre o belo não é mais o pensamento teórico. Enquanto as condições de possibilidade da experiência, no que diz respeito à forma, podem ser buscadas na razão, as condições referentes ao conteúdo são fundamentadas pela relação geral das faculdades espirituais. Aqui temos dois motivos importantes para Arendt. Por um lado, uma implícita intersubjetividade do juízo e, por outro, essa intersubjetividade não é fundamentada nos conceitos. Temos a possibilidade do prático, ou político, que não depende da racionalidade; temos a separação entre o teórico e o prático que Habermas depois vai criticar, porque essa separação cria as condições de uma forte estetização da política. Estetização da política pode significar a política desligada das pessoas, o que Arendt coloca, falando sobre a modernidade, mas pode ser a política desligada da teoria e dos argumentos.
Parece que essa articulação da intersubjetividade significa uma tentativa de Arendt de localizar, articular os lugares privilegiados na política e, de uma certa maneira, reificar a política. Arendt procura as soluções e não uma abertura para o caráter aberto e conflitivo da política que Chantal Mouffe quer defender.
Chantal Mouffe
Chantal Mouffe quer elaborar uma concepção antifundamentalista da política. A inspiração é, como mencionei, por um lado derridiana, pensando o conceito da diferença, e, por outro, psicanalítica, pensando o caráter conflitivo da natureza humana. Nesse sentido, Mouffe, inclusive, fala sobre os perigos de uma teoria que procura as soluções consensuais e assim marginaliza os verdadeiros conflitos. Pensei, nesse contexto, no meu país, a ex-Iugoslávia, cujo conflito também pode melhor ser entendido dentro dessa reconstrução de Chantal Mouffe. O comunismo postulou um certo consenso, a solidariedade ou irmandade dos povos dentro do universal projeto da sua realização. Assim, os verdadeiros conflitos entre os povos nunca chegaram à articulação política. Depois da morte de Josip Tito, o conflito aberto apareceu. O governo dele não conseguiu, nas palavras de Mouffe, transformar o antagonismo no agonismo, transformar o conflito numa competição política.
O conflito iugoslavo mostra o perigo das soluções consensuais que excluem a política. Consenso esconde conflitos. Na ex-Iugoslávia, mostrou-se que crer em consenso pode ser uma grande ilusão. Só que Hannah Arendt não é pensadora do consenso e também poderia criticar a experiência titoista dentro da crítica geral ao marxismo. Mesmo assim, penso que a busca de uma implícita ou explícita intersubjetividade, em que o caso iugoslavo também poderia, de uma certa maneira, ser colocado, cria os problemas para a política. A Iugoslávia podia, eventualmente, sobreviver baseada nos conflitos e não no consenso ou na intersubjetividade comunista. Aqui a gente chega até o ponto nevrálgico da discussão: por um lado, pensar a intersubjetividade na política pode criar as condições da reificação. Por outro lado, sem a intersubjetividade, sem a possibilidade do julgar junto aos outros, facilmente se chega até a banalidade do mal.
Agora, na teoria de Chantal Mouffe, mesmo falando sobre a democracia radical, a afirmação do caráter conflitivo da diferença não se tematiza de um jeito radical. Falando sobre o pluralismo político, Mouffe simplesmente o postula. O pluralismo não é uma afirmação ontológica, mas um fato histórico. É o próprio início da modernidade liberal. Derrida ficaria, eu acho, com muitas dúvidas com essa ligação entre o liberalismo e o pluralismo. Liberalismo é só uma forma da identidade social capitalista e não a afirmação da diferença. Outro problema é que Mouffe, e isso a aproxima de Habermas, quer ainda seguir o projeto moderno e europeu. Parece-me difícil imaginar a possibilidade da diferença e do pluralismo dentro desse explícito eurocentrismo.
Assim, por um lado, a desconstrução das identidades políticas fica ainda um projeto aberto. Por outro lado, é provável que a desconstrução das políticas da identidade crie a possibilidade da democracia. A filosofia e a cultura quase sempre instauraram a ausência no ser humano, que deveria ser superada na perspectiva do tempo linear; e esse tempo é o tempo do cristianismo, capitalismo, hegelianismo. Desconstruindo a metafísica da presença, Derrida articula o vazio que nunca deve ser preenchido. Preencher o vazio significaria o estabelecimento da nova identidade. Criticar a identidade, afirmando a diferença significa que o lugar da política e do direito tem de ficar vazio para não criar as novas formas da ideologia. Ou, com as palavras de Claude Lefort, “a soberania popular junta-se à imagem de um lugar vazio, impossível de ser ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não poderiam pretender se apropriar dela”. Nesse vazio político, Chantal Mouffe vai entender o sentido do paradoxo democrático. A democracia cria o paradoxo, porque a realização dela seria já a sua desintegração.
Miroslav Milovic
é professor de filosofia da UnB

Fonte: Revista Cult, nº 118

Rawls: filósofo político do século 20


“O político visa à próxima eleição, o estadista, à próxima geração. É papel do estudante de filosofia visar às condições permanentes e aos reais interesses de uma sociedade democrática justa e boa”, John Rawls
O filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002) costumava dizer que a última coisa de que gostaria era de se tornar assunto de teses acadêmicas. Não podia evitá-lo, porém. O que a frase acima indica é que ele preferia que seu pensamento servisse de inspiração para que outros implementassem, ou levassem adiante, suas idéias, em vez de se limitar a alimentar teses e doutores. Dedicou boa parte de sua vida acadêmica, se não toda ela, à elaboração de uma teoria da justiça, à qual deu o nome de “Justiça como eqüidade” (Justice as fairness). Sua teoria foi apresentada de modo mais consistente, em 1971, em Uma Teoria da Justiça, e a partir daí se ocupou em responder às críticas e corrigir ou alterar aspectos dela. O conjunto de sua produção converge de maneira impressionante para seu tema central: como tornar as sociedades mais justas?
Seus conceitos têm sido incorporados na teoria e na prática políticas, com freqüência sem nos darmos conta disso. Exemplo disso é a teoria da renda mínima, ou básica, já incorporada, com variações, em muitos municípios brasileiros pela União e presente também em outros países.
Outro campo ao qual se pode relacionar a teoria de Rawls é o das ações afirmativas. Rawls é ao mesmo tempo fruto dessa política e seu ideólogo. Foi no contexto das lutas pela ampliação dos direitos sociais, pela igualdade racial, eventualmente pelo protesto contra a guerra do Vietnã, na década de 1960, que se forjou sua teoria. No entanto, como construção muito bem-acabada, retiraram-se os andaimes e essa relação não é quase nunca explicitada. Que essa relação existe fica claro pela interpretação do segundo princípio (ver boxe), especialmente pela primeira parte do segundo princípio, a saber, o de igualdade de oportunidades. Antes, é necessário um breve resumo de sua teoria.
Rawls não se restringe a descrever uma situação de injustiça social; aliás, raramente o faz. Parte do pressuposto de que a desigualdade é inerente à condição do homem em sociedade, e que o homem é intrinsecamente auto-interessado, um “egoísta racional”. Ainda assim, julga, ele pode superar essa condição ao se associar a outros para estabelecer os princípios da vida em comum. Para que a escolha dos princípios não seja distorcida por esses interesses, tal escolha se efetua por trás de um “véu de ignorância”, os agentes ignorando sua posição atual bem como suas chances futuras na sociedade, assim como as dos demais. A essa situação chama de “posição original”.
Uma vez escolhidos os princípios para essa sociedade, que são, argumenta, o “princípio da liberdade igual para todos” e o “princípio da diferença”, caberá a cada sociedade, em seu plano doméstico, deliberar sobre a forma de pôr em prática esses princípios
A igualdade de oportunidades só pode ser efetiva se todos se beneficiarem das mesmas condições formais de educação, saúde e alimentação, dentre outros bens primários. Caso todos possuam acesso pelo menos aos bens básicos, a condição inicial será justa. Isso não significa que não haja mais desigualdade, mas essa desigualdade será pelo menos aceitável para os que se encontram na base da pirâmide social, que é o enunciado do princípio da diferença. Como diz Rawls, “igualdade de oportunidades é um certo conjunto de instituições que assegura igualmente boa educação e chances de cultura para todos e que mantém aberta a competição para posições com base em qualidades razoavelmente relacionadas à performance”.
A teoria da justiça como eqüidade não constitui um igualitarismo rasteiro. Trata-se de mexer na distribuição até o ponto em que se possa fazê-lo sem afetar a renda da sociedade como um todo, o que é conhecido como o princípio maximin. Este defende que se pode elevar a renda e as condições de vida dos que têm menos, ao mesmo tempo em que se taxa progressivamente (ou por meio de um imposto de consumo) a renda dos que têm mais, até o ponto em que uma maior alteração afetaria negativamente as condições econômicas da sociedade em geral. Em linguagem mais simples, quer dizer que a desigualdade se justifica se e somente se aqueles que estão na parte mais baixa da pirâmide são mais beneficiados pela presente repartição (desigual) de bens e oportunidades do que seriam se o sistema fosse mais igualitário.
A teoria de John Rawls foi uma das mais lúcidas contribuições no campo da filosofia política no século 20, justificando a afirmação de Robert Nozick: “A partir de John Rawls, e de seu Uma Teoria da Justiça [1971], o filósofo político tem de trabalhar no âmbito de sua teoria, ou então explicar por que não o faz”. Rawls teve a coragem de abandonar a metafísica, em opção decidida pela política, em nome do consenso por sobreposição. Se sua teoria fosse aceita, ele se daria por satisfeito. E temos elementos para pensar que isso tem acontecido e tem tudo para continuar ocorrendo.
Os princípios de Rawls
“Estes são os dois princípios de Rawls, tais como aparecem em sua última formulação: Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos.”
“As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o princípio da diferença).”
(Rawls, Justiça como eqüidade. Trad.: Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003).
Luiz Paulo Rouanet
é Doutor em Filosofia pela USP, professor da PUC-Campinas e da Universidade São Marcos; tradutor e editor. Autor de Rawls e o enigma da Justiça (São Paulo: Unimarco, 2002) e organizador de Razão Mínima (São Paulo: Unimarco, 2004).

Fonte: Revista Cult, nº 97

quinta-feira, 28 de março de 2013

Castells vê “expansão do não-capitalismo”


Culturas econômicas alternativas teriam sido reforçadas pela crise. Mas sociólogo adverte: sistema não entrará em colapso por si mesmo
Entrevista a Paul Mason. Tradução: Gabriela Leite para o Outras Palavras
O professor Manuel Castells é um dos sociólogos mais citados no mundo. Em 1990, quando os mais tecnologicamente integrados de nós ainda lutavam para conseguir conectar seus modens, o acadêmico espanhol já documentava o surgimento da Sociedade em Rede e estudava a interação entre o uso da internet, a contracultura, movimentos de protesto urbanos e a identidade pessoal.

Paul Mason, editor de notícias econômicas da rádio BBC, entrevistou o professor Castells na London School of Economics (Escola de Economia de Londres) sobre seu último livro, “Aftermath: The Cultures of Economic Crisis” (“Resultado: as Culturas da Crise Econômica”), ainda sem tradução para português.
Castells sugere que talvez estejamos prestes a ver o surgimento de um novo tipo de economia. Os novos estilos de viver dão sentido à existência, mas a mudança tem também um segundo motor: consumidores que não têm dinheiro para consumir.
São práticas econômicas não motivadas pelo lucro, tais como o escambo, as moedas sociais, as cooperativas, as redes de agricultura e de ajuda mútua, com serviços gratuitos – tudo isso já existe e está se expandindo ao redor do mundo, diz ele. Se as instituições políticas vão se abrir para as mudanças que acontecem na sociedade – é cedo para saber. Seguem trechos da conversa.
O que é surgimento de novas culturas econômicas?
Quando menciono essa Cultura Econômica Alternativa, é uma combinação de duas coisas. Várias pessoas têm feito isso já há algum tempo, porque não concordam com a falta de sentido em suas vidas. Agora, há algo mais — é a legião de consumidores que não podem consumir. Como não consomem — por não terem dinheiro, nem crédito, nem nada — tentam dar sentido a suas vidas fazendo alguma coisa diferente. Portanto, é por causa das necessidades e valores — as duas coisas juntas — que isso está se expandindo.
Você escreveu que as economias são culturais. Pode falar mais sobre isso?
Se queremos trabalhar para ganhar dinheiro, para consumir, é porque acreditamos que comprando um carro novo ou uma nova televisão, ou um apartamento melhor, seremos mais felizes. Isso é uma forma de cultura. As pessoas estão revertendo essa noção. Pelo contrário: o que é importante em suas vidas não pode ser comprado, na maioria dos casos. Mas elas não têm mais escolha porque já foram capturadas pelo sistema. O que acontece quando a máquina não funciona mais? As pessoas dizem “bem, eu sou mesmo burro. Estou o tempo todo correndo atrás de coisa nenhuma”.
Qual a importância dessa mudança cultural?
É fundamental, porque desencadeia uma crise de confiança nos dois maiores poderes do mundo: o sistema político e o financeiro. As pessoas não confiam mais no lugar onde depositam seu dinheiro, e não acreditam mais naqueles a quem delegam seu voto. É uma crise dramática de confiança – e se não há confiança, não há sociedade. O que nós não vamos ver é o colapso econômico per se, porque as sociedades não conseguem existir em um vácuo social. Se as instituições econômicas e financeiras não funcionam, as relações de poder produzem transformações favoráveis ao sistema financeiro, de forma que ele não entre em colapso. As pessoas é que entram em colapso em seu lugar.
A ideia é que os bancos vão ficar bem, nós não. Aí está a mudança cultural. E grande: uma completa descrença nas instituições políticas e financeiras. Algumas pessoas já começam a viver de modo diferente, conforme conseguem – ou porque desejam outras formas de vida, ou porque não têm escolha. Estou me referindo ao que observei em um dos meus últimos estudos sobre pessoas que decidiram não esperar pela revolução para começar a viver de outra maneira – o que resulta na expansão do que eu chamo de “práticas não-capitalistas”.
São práticas econômicas, mas que não são motivadas pelo lucro – redes de escambo, moedas sociais, cooperativas, autogestão, redes de agricultura, ajuda mútua, simplesmente pela vontade de estar junto, redes de serviços gratuitos para os outros, na expectativa de que outros também proverão você. Tudo isso existe e está se expandindo ao redor do mundo.
Na Catalunha, 97% das pessoas que você pesquisou estavam engajadas em atividades econômicas não-capitalistas.
Bem, estão entre 30-40 mil os que são engajados quase completamente em modos alternativos de vida. Eu distinguo pessoas que organizam a vida conscientemente através de valores alternativos de pessoas que têm vida normal, mas que têm costumes que podem ser vistos como diferentes, em muitos aspectos. Por exemplo, durante a crise, um terço das famílias de Barcelona emprestaram dinheiro, sem juros, para pessoas que não são de sua família.
O que é a Sociedade em Rede?
É uma sociedade em que as atividades principais nas quais as pessoas estão engajadas são organizadas fundamentalmente em rede, ao invés de em estruturas verticais. O que faz a diferença são as tecnologias de rede. Uma coisa é estar constantemente interagindo com pessoas na velocidade da luz, outra é simplesmente ter uma rede de amigos e pessoas. Existe todo tipo de rede, mas a conexão entre todas elas – sejam os mercados financeiros, a política, a cultura, a mídia, as comunicações etc –, é nova por causa das tecnologias digitais.
Então, nós vivemos numa Sociedade em Rede. Podemos deixar de viver nela?
Podemos regredir a uma sociedade pré-eletricidade? Seria a mesma coisa. Não, não podemos. Apesar de agora muitas pessoas estarem dizendo “por que não começamos de novo?” É um grande movimento, conhecido como “decrescimento”. Algumas pessoas querem tentar novas formas de organização comunitária etc.
No entanto, o interessante é que, para as pessoas se organizarem e debaterem e se mobilizarem pelo decrescimento e o comunitarismo, elas têm que usar a internet. Não vivemos numa cultura de realidade virtual, mas de real virtualidade, porque nossa virtualidade – significando as redes da internet – é parte fundamental da nossa realidade. Todos os estudos mostram que as pessoas que são mais sociáveis na internet são também mais sociáveis pessoalmente.
Existem diversos grupos que hoje protestam sobre o assunto A, amanhã sobre o assunto B, e à noite jogam World of Warcraft (jogo RPG online de aventura). Mas será que eles vão conseguir o que Castro e Guevara conquistaram?
O impacto nas instituições políticas é quase insignificante, porque elas são hoje impermeáveis a mudanças. Mas, se você olhar para o que está acontecendo em termos de consciência… há coisas que não existiam três anos, como o grande debate sobre a desigualdade social.
Em termos práticos, o sistema é muito mais forte do que os movimentos nascentes… você atinge a mente das pessoas por um processo de comunicação, e esse processo, hoje, acontece fundamentalmente pela internet e pelo debate. É um processo longo, que vai das mentes das pessoas às instituições da sociedade. Vamos usar um exemplo histórico: a partir do fim do século XIX, na Europa, existiam basicamente os Conservadores e os Liberais, direita e esquerda. Mas então alguma coisa aconteceu – a industrialização, os movimentos da classe trabalhadora, novas ideologias. Nada disso estava no sistema político. Depois de vinte ou trinta anos, vieram os socialistas e depois a divisão dos socialistas… e os liberais basicamente desapareceram. Isso mudará a política, mas não por meio de ações políticas organizadas da mesma maneira. Por quê? Porque as redes não necessitam de organizações hierárquicas.
Onde isso vai dar?
Tudo isso não vai virar uma grande coalizão eleitoral, não vai virar nenhum novo partido, nenhum novo coisa nenhuma. É simplesmente a sociedade contra o Estado e as instituições financeiras – mas não contra o capitalismo, aliás, contra instituições financeiras, o que é diferente.
Com esse clima, acontece que nossas sociedades se tornarão cada vez mais ingovernáveis e, em consequência, poderá ocorrer todo tipo de fenômeno – alguns muito perigosos. Veremos muitas expressões de formas alternativas de política, que escaparão das correntes principais de instituições políticas tradicionais. E algumas, é claro, voltando ao passado e tentando construir uma comunidade primitiva e nacionalista para atacar todos os outros movimentos e, finalmente, conseguir ter uma sociedade excluída do mundo, que oprime seu próprio povo.
Mas acontece que, em qualquer processo de mudança social desorganizada e caótica, todos esses fenômenos coexistem. E o modo como atuam uns contra os outros vai depender, em última análise, de as instituições políticas abrirem suficientemente seus canais de participação para a energia de mudança que existe na sociedade. Então talvez elas possam superar a resistência das forças reacionárias que também estão presentes em todas as sociedades.

domingo, 24 de março de 2013

Um passeio pelas principais correntes da filosofia da ciência

Thomas Kuhn (físico e filósofo da ciência norte-americano)
(*1922 - +1996)



Marcos Rodrigues da Silva


Um dos campos da filosofia que teve um grande desenvolvimento no século XX foi o da filosofia da ciência. Concebida como uma ferramenta conceitual destinada a refletir acerca de vários aspectos da ciência, a filosofia da ciência é atualmente compreendida como uma disciplina integrante dos grandes debates em torno dos temas do conhecimento científico.

Histórico do desenvolvimento da filosofia da ciência
Usando a expressão num sentido bastante amplo, "filosofia da ciência" se refere a um conjunto de reflexões acerca do conhecimento científico, e neste sentido uma filosofia da ciência estaria presente desde o nascimento da filosofia grega. Assim, podemos considerar, por exemplo, algumas obras de filósofos modernos – tais como René Descartes e George Berkeley – como exposições filosóficas sobre a ciência. Entretanto, enquanto disciplina específica – ou seja: enquanto portadora de uma agenda programática, de um vocabulário padronizado etc –, há um certo consenso quanto à sua origem: o Círculo de Viena.
O Círculo foi uma reunião de filósofos, cientistas, matemáticos e intelectuais de algumas outras áreas que se reuniram (entre as décadas de 20 e 30 do século passado) em torno do interesse de discutir o conhecimento científico, sobretudo o conhecimento da física, que se transformou decisivamente nessa época, com Albert Einstein, Neils Borh e Werner Heisenberg, entre outros grandes nomes. Dentre tantas figuras de destaque do Círculo, podemos mencionar Moritz Schlick e Rudolf Carnap, sendo este último considerado o principal representante da posição filosófica do grupo, a qual ficou conhecida como "positivismo lógico". Esta posição ficou caracterizada de forma ampla como uma tentativa de compreender o conhecimento científico tendo por parâmetro a construção de uma linguagem da ciência – uma linguagem que não descreveria uma suposta realidade por detrás das aparências. Outro ponto de destaque do positivismo lógico é a exigência de que a filosofia apresente critérios de racionalidade para a ciência. Por conta da defesa de uma série de posições acerca do conhecimento científico, a tradição positivista do Círculo de Viena foi objeto de críticas ao longo da história da filosofia. Porém, é importante o registro de que o positivismo lógico foi responsável pela organização de uma agenda programática para a filosofia da ciência.
Contemporâneo do positivismo lógico, Sir Karl Popper foi um dos mais influentes filósofos da ciência do século XX. Dentre suas várias contribuições podemos destacar a ênfase na relação entre experimentação e teoria; para Popper, as teorias sempre precedem as observações e os testes experimentais. Deste modo, uma concepção de ciência é sugerida: a ciência não tem início na observação, mas sim com construções teóricas ou mesmo, admite Popper, com especulações metafísicas. Para Popper esse procedimento não seria censurável, dado que ele seria complementado: as teorias científicas precisam ser testadas diante da experiência; logo, mesmo que toda especulação seja possível de ser proposta, ela só será aceita como digna de reconhecimento científico caso se submeta à experimentação.
Um importante ponto de contato entre o positivismo lógico e Karl Popper é a ênfase na distinção, proposta por Hans Reichenbach em 1937, entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação, sendo que não interessaria ao filósofo da ciência compreender como uma teoria foi construída (contexto da descoberta), mas sim como ela pode ser validada (contexto da justificação).
Outro grande acontecimento da filosofia da ciência foi o surgimento de A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn, em 1962. Nesta obra o autor, ainda que mantendo certas preocupações filosóficas já expressas pela tradição do positivismo lógico, propôs, no entanto, algumas questões que, se não eram exatamente uma novidade na filosofia da ciência, foram colocadas no centro dos debates da época. Em especial, Kuhn enfatizou que uma compreensão da estrutura e do desenvolvimento da ciência deveria ser conduzida em uma parceria entre a própria filosofia da ciência e a história da ciência. Sugerida de modo contundente por Kuhn, ele mesmo foi um dos autores a seguir esse plano metodológico geral, a partir do qual estabeleceu um conceito filosófico que ainda hoje é acionado como uma categoria útil para a compreensão da dinâmica da ciência: o conceito de paradigma. Na perspectiva de Kuhn esse conceito seria útil em vista de que, tomando-o como a expressão de uma estrutura geral capaz de reunir os membros de uma comunidade científica, ele nos auxiliaria a compreender de que modo, por exemplo, certos conceitos científicos são aceitos em uma época, mas rejeitados em outra. Entretanto , ao lado de contribuições que realmente se consolidaram como orientações para a pesquisa em filosofia da ciência, Kuhn também se expôs a diversas críticas da comunidade filosófica, sobretudo por sua defesa de princípios que, argumentaram alguns filósofos, desafiavam a noção clássica de que a ciência seria um empreendimento racional, sobretudo suas teses de que não se poderia comparar paradigmas rivais (a chamada tese da incomensurabilidade) e de que a ciência não seria um empreendimento rumo à verdade (a chamada tese do relativismo).
Aceitas ou não suas teses mais ousadas, o fato é que a orientação programática geral de Kuhn se estabeleceu em várias escolas e foi seguida por vários autores, dentre os quais se destacam Imre Lakatos, Paul Feyerabend e Larry Laudan, filósofos decisivos tanto para nossa compreensão da ciência quanto para um entendimento dos – em certo sentido – novos rumos que a filosofia da ciência estava tomando.

Novos horizontes
Uma das grandes contribuições de Kuhn à nossa compreensão de ciência foi tornar explícita a sugestão – já adiantada pelo lógico, epistemólogo e filósofo da linguagem Willard Quine – de que os conceitos científicos adquirem um significado não em vista de sua própria definição, ou de suas virtudes como denotadores de realidades, mas em função do papel que ocupam em grandes redes teóricas (os paradigmas de Kuhn). Tal sugestão foi e tem sido desenvolvida em seus aspectos formais (a partir da contribuição da lógica e da semântica) pela chamada concepção estruturalista, associada a nomes como C. Ulisses Moulines e em seus aspectos ligados à psicologia da descoberta científica, por exemplo com Paul Thagard. Também se pode dizer que essa sugestão tem sido, de algum modo, incorporada à prática historiográfica.
Por outro lado, grandes pontos de inflexão da obra de Kuhn ainda repercutem. O relativismo, por exemplo, se tornou uma marca das chamadas concepções sociológicas da ciência, que têm em Bruno Latour um nome de destaque ainda atual. A percepção da complexidade das leis científicas já conduziu a física e filósofa Nancy Cartwrigh a afirmar no título de um de seus livros que "as leis da física são mentirosas", pelo fato não de serem programadas para nos enganarem e nos conduzirem ao relativismo, mas por serem muito amplas e compreensivas. Sem compromisso com o relativismo, mas um crítico de certo uso da palavra "verdade" quando aplicada à ciência, o filósofo empirista Bas van Fraassen é atualmente um dos filósofos mais comentados e fundamentais para nossa compreensão do conhecimento científico, sendo seu enfoque pragmático uma orientação poderosa para a filosofia da ciência e, apesar de pouco explorado, um enfoque igualmente útil para a historiografia da ciência.
Do ponto de vista especificamente da historiografia da ciência, Kuhn foi um dos responsáveis por ter fornecido intuições básicas que por vezes podem ser úteis para o historiador, tais como a de procurar situar o assunto, que se quer cobrir historicamente, em sua complexidade natural histórica. Deste modo a emergência de, por exemplo, uma hipótese, deve ser compreendida não apenas em função da estrutura interna e teórica da hipótese, mas pelas relações que a hipótese estabelece com outras hipóteses e, em alguns casos, pelas relações da hipótese com seu próprio modo de produção (o que antes chamamos de "contexto da descoberta").
E, tendo em vista a ampla institucionalização do campo chamado "ensino de ciências", não podemos omitir que uma outra consequência da obra de Kuhn foi a utilização de concepções filosóficas sobre a ciência na reflexão e prática do ensino de ciências. Um nome importante nessa utilização é Michael Matthews, que em 1994 publicou seu influente Science teaching, livro no qual procurou discutir de forma aprofundada diversos temas ligados à inclusão de história e filosofia da ciência no ensino de ciências. Além disso, a obra de Matthews forneceu igualmente uma agenda ainda atual de problemas e discussões. Do ponto de vista teórico, a discussão proposta por ele se insere nas discussões mais gerais a respeito das deficiências do ensino de ciências e dos problemas da formação científica de alunos e professores. Nesse contexto, a filosofia da ciência é utilizada com a finalidade de fornecer instrumentais de reflexão das mais variadas práticas pedagógicas, bem como com o objetivo de auxiliar a esclarecer a natureza da ciência.

Temas em filosofia da ciência
A filosofia da ciência lida com temas e problemas que possuem uma certa estabilidade na literatura. Dentre os grandes temas podemos mencionar: 1) a construção das teorias científicas – de que modo as teorias, hipóteses e modelos científicos são construídos? As teorias são construídas sob quais regras? O contexto comunitário da ciência exerce algum papel nessa construção?; 2) a aceitação das teorias científicas – em que condições uma comunidade de pesquisadores aceita uma hipótese científica aparentemente bem sucedida?; 3) o papel dos valores na ciência – a ciência é uma atividade que incorpora valores em sua prática? De que modo tais valores seriam incorporados e que papel eles ocupam na construção e aceitação das teorias científicas?
Além desses grandes temas, e algumas vezes a eles associados, há outros tais como: 4) a questão da existência das entidades postuladas pelos cientistas em suas explicações de fenômenos; 5) o estatuto de cientificidade dos grandes sistemas científicos (por que podemos afirmar sua cientificidade, sob quais critérios?). Por fim é importante mencionar que a filosofia da ciência também opera numa plataforma de temas de natureza bastante conceitual, sobretudo a partir de questionamentos gerais como: o que é racionalidade? O que é cientificidade? O que é a verdade na ciência? Temas que acabam muitas vezes aproximando a filosofia da ciência a discussões de outras áreas filosóficas relacionadas e associadas, tais como a teoria do conhecimento, a metafísica, a lógica e a filosofia da linguagem.

A filosofia da ciência no Brasil
No Brasil, atualmente, são vários os programas de pós-graduação que contemplam estudos em filosofia da ciência, além, é claro, da disciplina já estar consolidada nos cursos de graduação em filosofia, bem como em outros cursos de graduação, geralmente em cursos de ciências naturais.
Em termos institucionais, destaque-se o evento bienal organizado pelo Núcleo de Epistemologia e Lógica, da Universidade Federal de Santa Catarina. Este evento, Simpósio Internacional Principia, conta invariavelmente com grandes nomes nacionais e internacionais da filosofia da ciência, sendo inegavelmente o maior fórum específico de debates da área, além de abrigar outras importantes áreas relacionadas. Além do Principia, outros eventos também merecem destaque, tais como o Encontro de Filosofia e História da Biologia (organizado pela Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia, ABFHiB) e o Encontro de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul(organizado pela Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul, AFHIC). Outros eventos, que não se propõem a divulgar especificamente a filosofia da ciência, mas que têm certa proximidade com a área, também têm aberto espaço para a discussão e reflexão sobre a ciência, como é o caso do Workshop Berkeley, e doCongresso Internacional de Filosofia Analítica. Por fim, congressos e eventos de natureza geral também abrem espaço para a inserção da filosofia da ciência.
Um papel importante na produção de pesquisas e na disseminação da filosofia da ciência vem sendo ocupado pelas associações acadêmicas. Além das mencionadas acima, temos também a Associação Filosófica Scientiae Studia, a Sociedade Brasileira de História da CiênciaSociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e, no âmbito da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), está localizado o GT de Filosofia da Ciência, o qual se reúne a cada dois anos nos congressos da ANPOF. Há ainda grupos institucionais de pesquisa como o GFHIC (Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências), o Grupo de Teoria e História da Ciência, da Unicamp, os grupos de pesquisa Filosofia e História da Biologia Lógica e Filosofia da Ciência, ambos doPrograma de Pós-Graduação em Filosofia, da UNB, os grupos de pesquisa Ensino de Ciências, História das CiênciasFilosofia das Ciências, todos do programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências, da Universidade Federal da Bahia e Universidade Estadual de Feira de Santana, o Centro de Epistemologia e História da Ciência, do Departamento de Filosofia da UFRJ, e os grupos de pesquisa em Ensino de Ciências e História da Ciência que atuam tanto no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da Universidade Estadual de Londrina quanto no Museu de Ciência e Tecnologia dessa universidade.
A produção em filosofia da ciência no Brasil, além de ser divulgada por meio de livros e artigos em revistas de natureza filosófica geral, é também apresentada em periódicos específicos, tais como as revistas: Principia,Scientiae StudiaCadernos de História e Filosofia da CiênciaFilosofia e História da BiologiaCognitio e Episteme.
Encerrando esta breve apresentação, não se pode deixar de mencionar a importância histórica do CLE (Centro de Lógica e Epistemologia, sediado na Unicamp). Esta entidade acadêmica reúne, desde a década de setenta do século passado, diversos pesquisadores ligados à filosofia da ciência, lógica, filosofia da matemática, epistemologia, filosofia da mente e áreas afins. Em todos os três itens acima mencionados (eventos, formação de comunidades de investigadores em associações e disseminação editorial da produção), o CLE se apresenta como uma contribuição inestimável à filosofia da ciência por meio da reunião de pesquisadores interessados em refletir, discutir e produzir em torno das temáticas ligadas à ciência.

Conclusão
A filosofia da ciência, embora praticada profissionalmente por filósofos, pode ser utilizada por virtualmente todos aqueles interessados em uma introdução aos grandes temas científicos. O filósofo Peter Lipton declarou certa vez que a filosofia da ciência poderia ser considerada inútil para muitos uma vez que, é argumentado, que a ciência se desenvolve de modo independente da filosofia. Sem mencionar aqui que em muitos avanços científicos a filosofia se fez presente de modo decisivo, ainda se pode contra-argumentar que um esclarecimento das práticas científicas, da relação da ciência com a sociedade, da produção do conhecimento etc, dificilmente poderia ser considerado uma inutilidade. Em conjunto com a própria ciência, e em conjunto com outras disciplinas, a filosofia da ciência pode oferecer excelentes contribuições para a reflexão sobre o conhecimento científico.


Marcos Rodrigues da Silva é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina e pesquisador da Fundação Araucária do Paraná.

Fonte de referência: http://comciencia.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-76542010000600007&lng=es&nrm=iso