quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A utopia e o pensamento utópico (Por Rogério Rocha)

Neste vídeo apresento o conceito do que se convencionou chamar de utopia, tecendo algumas considerações acerca das características que dão forma ao pensamento utópico, bem como analisando questões pertinentes ao modo como a filosofia, a sociologia e a literatura abordam o tema. Ao final, indico algumas obras que podem introduzir os interessados no universo das utopias.




domingo, 30 de novembro de 2014

Compreendendo o 'mito da caverna'

Vídeo onde faço considerações acerca do "mito da caverna" de Platão, apresentando algumas interpretações dos significados nele presentes, abordando, ainda, o modo como o filósofo ateniense pensou a construção do conhecimento humano, numa metáfora do caminho que vai do plano do sensível ao inteligível. 




Obs.: Link para a tirinha de Maurício de Sousa citada neste vídeo.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

As reformas religiosas


As Reformas Religiosas.
Quando foi? Século XVI.
Onde foi? Inicialmente na Alemanha e posteriormente na Suíça, Suécia, Noruega e Inglaterra até se espalhar por toda Europa.
O que foi? Foi um movimento reformista cristão do século XVI que criticava os abusos da Igreja Católica. Essas críticas, que iniciaram com Martinho Lutero, levaram ao rompimento com a Igreja e desencadearam o surgimento de várias religiões cristãs protestantes.
Antecedentes: Sabemos que a Igreja Católica foi a instituição mais poderosa da Idade Média. Contudo durante o século XV as críticas sobre a atuação da Igreja ganharam força, pois se acreditava que ela deveria se manter somente ligada aos negócios da fé e não se meter com os assuntos mundanos e matérias como sempre fizera.
Dois fatos colaboraram para agravar ainda mais a situação da Igreja ao longo dos séculos XV e XVI: A vida desregrada do clero (corrupção, venda de indulgências, relíquias religiosas, concubinagens, etc) e os abusos políticos dos papas que se envolviam em abusos e golpes políticos.


Figura 1 Xilogravura do século XVI que retrata a venda de indulgências pelo papa.

A Igreja estava desmoralizada e a insatisfação era generalizada na Europa. Principalmente entre os burgueses que não podiam desempenhar atividades comerciais como a cobrança de juros (usura).
Soma-se a isso o Renascimento que com sua postura antropocêntrica chega à conclusão de que o homem não precisa de um interlocutor com Deus.
Gradativamente , foram sendo criadas na Europa as condições para o surgimento de religiões mais adaptadas ao espírito capitalista.
Neste quadro de insatisfações o inglês John Wycliffe, torna-se o primeiro reformista por defender a livre interpretação da bíblia. Inspirado por ele o tcheco John Huss defendia o uso da língua vulgar nas missas, chegando até mesmo a traduzi-la em seu idioma. Huss foi condenado por sacrilégio e morto na fogueira em 1417.
A Reforma Protestante na Alemanha: No século XVI a Alemanha fazia parte do Sacro Império Romano-Germânico que era dividido em diversas regiões independentes. A Igreja Católica e o Império disputavam a influência sobre estas regiões o que já havia gerado diversos conflitos.

Martinho Lutero(1483-1546): 
foi um estudioso monge alemão que conhecia profundamente a Bíblia. A discordância de Lutero com relação à Igreja Católica começou após uma viagem que fez à Roma, onde teve oportunidade de conhecer o Vaticano.
Lutero ficou chocado com a riqueza, o luxo e a opulência do Vaticano. O problema era que toda esta ostentação contrastava com a pobreza do povo europeu naquela época. Então ele voltou para a Alemanha e em outubro de 1517 afixou na porta da catedral de Wittenberg suas 95 teses.
O papa Leão X, exigiu a retratação, o que não ocorreu, prolongando conflito por três anos. Em 1520, Lutero foi excomungado e para demonstrar a insatisfação ele queimou a bula papal em plena praça pública. Por seu radicalismo Lutero foi expulso do Império, mas logo acolhido pelo príncipe Frederico da Saxônia.
Protegido no castelo traduziu a Bíblia do latim para o Alemão e desenvolveu as três ideias básicas do protestantismo: só a fé salva, mas está fé deve ser baseada nas sagradas escrituras e sem a intervenção da igreja. Além disso, criticava a idolatria às imagens e os sacramentos mantendo apenas o batismo e a eucaristia. Fez com que a missa fosse rezada na língua local de cada país e não mais em latim, defendeu a ideia de que a Igreja deveria renunciar a todos os bens materiais e o fim do celibato para os pastores.
O alto clero e a nobreza alemã, que viviam em conflito coma Igreja de Roma, se apossaram rapidamente da ideia e das terras dela. Contudo, os protestantes encontraram muitas resistências e a guerra civil se tornou inevitável. Somente em 1555 os protestantes conseguiram a liberdade de culto. Rompendo-se definitivamente com a Igreja de Roma.
O fortalecimento do luteranismo na Alemanha influenciou o surgimento de outras religiões.

O Calvinismo: João Calvino (1509-1564) começou a pregar a reforma religiosa na França mas foi perseguido, refugiando-se na cidade Suíça de Genebra, onde foi apoiado pela burguesia local.
Suas principais ideias eram: a salvação só é atingida através da fé; Predestinação: a salvação é concedida por Deus somente para algumas pessoas eleitas; Todo homem é pecador por natureza; A realização de culto religioso deve ser feito em local simples e sem imagens. O culto deve ser composto apenas por comentários bíblicos, sem cerimônias; Realização da eucaristia e do batismo.
Suas ideias iam ao encontro das necessidades burguesas, pois valorizavam o acúmulo de capital e o trabalho.

Símbolo da Igreja Anglicana
O Anglicanismo: A Igreja católica possuía muitas terras na Inglaterra, o que a fazia muito rica e influente. O rei Henrique VIII pretendia fortalecer a monarquia inglesa e para isso era necessário reduzir a influência do papa dentro do país.
A crise com a Igreja veio quando esta se recusou a dissolver o casamento entre Henrique VIII e Catarina de Aragão (que não podia lhe dar um filho herdeiro). Mesmo sem o aval da Igreja, que o excomungou, o rei separou-se de Catarina e casou-se com Ana Bolena (decapitada posteriormente a mando do rei). O rei ainda casou-se outras seis vezes.
O rompimento oficial veio em 1534, quando o parlamento inglês aprovou o Ato de Supremacia, que colocava a Igreja sob a autoridade do rei.

Papa Paulo III
A Contrarreforma: foi a reação da Igreja Católica às Reformas Protestantes que se espalhavam pelo continente. Ela começa oficialmente em 1545, quando o papa Paulo III convoca o Concílio de Trento. Muitos livros são proibidos (Index), a organização interna da Igreja é modificada, ocorre a proibição da venda de indulgências e o Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) é reativado. A Contrarreforma ainda possibilitou o surgimento de novas ordens religiosas como a Companhia de Jesus (considerados soldados do catolicismo), que marcaram enormemente a história de países americanos como o Brasil.

Fonte: Página do Will (com adaptações)

OS TRÊS FILTROS DE SÓCRATES


Na Grécia Antiga, Sócrates foi famoso por sua sabedoria e pelo grande respeito que professava a todos.
Um homem foi ao encontro de Sócrates, levando ao filósofo uma informação que julgava de seu interesse:
- Mestre, o senhor não imagina o que me contaram a respeito de um amigo seu. Disseram que o... Nem chegou a completar a frase e Sócrates aparteou:
- Espere um pouco! Disse o Mestre.- O que você vai me contar já passou pelo crivo das três peneiras?
- Peneiras? Que peneiras, mestre?
- Explico. Disse Sócrates. - A primeira é a peneira da VERDADE: Você tem certeza de que este fato é absolutamente verdadeiro?
- Não. Não tenho, não. Como posso saber? O que sei foi que me contaram. Mas acho que... E novamente foi interrompido.
- Então sua história já vazou a primeira peneira. Vamos então para a segunda peneira  que é a da BONDADE. O que você vai me contar, gostaria que os outros também dissessem a seu respeito?
- Claro que não! Disse o homem assustado.
- Então. Continua Sócrates. - Sua história vazou também a segunda peneira. Vamos ver a terceira peneira, que é a da NECESSIDADE. Convém contar? É realmente importante a divulgação desta informação? Resolve alguma coisa? Ajuda a comunidade?
- Devo confessar que não. Disse o homem envergonhado.
- Então. Disse-lhe o sábio, se o que queres me contar não é VERDADEIRO, nem BOM e nem NECESSÁRIO...Guarde apenas para ti.
E ainda arrematou:
- Sempre que passar pelas três peneiras, conte! Caso contrário, esqueça e enterre tudo. Será uma fofoca a menos para envenenar o mundo e fomentar discórdia.

Fonte: Página do Will

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Infernos - Documentário sobre a obra/vida do poeta Nauro Machado

Tive a honra de participar de um encontro em meados dos anos 2000, na verdade um pequeno sarau com jovens poetas maranhenses, ocasião em que esteve presente o mestre Nauro Machado. Naquela noite pude ler uma de minhas poesias para ele.  O poeta por sua vez me honrou com sua generosidade ao elogiar um de meus poemas. 

Além dessa, por várias outras vezes encontrei-o a andar pela cidade, confundindo-se com suas ruas, praças, cantos e recantos, tomando cerveja em bares do centro antigo, conversando com os pequenos comerciantes, homens comuns, do povo, e habitando ebriamente a solidão vulcânica de seus delírios poéticos.


Para mim Nauro Machado é o maior poeta maranhense de todos os tempos. Nele há, e em sua pouco conhecida obra, algo de único, singular e atordoante. Sua poesia alcançou um patamar de burilamento ontológico incomum, confundindo-se com ele mesmo e com tudo o que existe a seu redor.


Reverencio-te, pois, ó meu poeta!


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O animal Político

Para Aristóteles, o homem é um animal político. Entenda por que esta máxima do filósofo de Estagira é uma das bases da Filosofia Política


Por Daniel Rodrigues Aurélio


Platão
Aristóteles estudou na Academia de Platão ou Academia de Atenas, fundada por volta de 387 a.C pelo filósofo ateniense Platão (428/427 a.C – 348/347 a.C). Anos depois, Aristóteles criaria o seu próprio centro de estudos, o Liceu (336/335 a.C), originando o círculo filosófico Peripatos ou Escola Peripatética.
Zoon Politikon (Animal Político) é uma expressão utilizada pelo filósofo grego Aristóteles de Estagira (384 a.C – 322 a.C), discípulo de a Platão, para descrever a natureza do homem – um animal racional que fala e pensa (zoon logikon) – , em sua interação necessária na cidade-Estado (pólis). O animal político aristotélico é um dos conceitos mais exaustivamente estudados na filosofia política e um dos argumentos fundamentais para a organização social e política. 


Magna Moralia
Um dos principais pensadores da chamada Escola de Frankfurt, o filósofo e sociólogo alemão Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969) publicou, no final dos anos 1940, uma coletânea de aforismos intitulada “Mínima Moralia”, em alusão à obra de Aristóteles.

Em uma definição sumária, sem firulas e rodeios filosofantes, pode-se afirmar que, para Aristóteles, o homem é um animal político na medida em que se realiza plenamente no âmbito da pólis. Segundo Aristóteles, a “cidade ou a sociedade política” é o “bem mais elevado” e por isso os homens se associam em células, da família ao pequeno burgo, e a reunião desses agrupamentos resulta na cidade e no Estado (“Política”, cap.I, Livro Primeiro). Todavia, esta rápida acepção carece de uma explicação detalhada, indispensável para uma melhor compreensão do termo. Até porque, bem sabemos, o autor de “Política”, “Ética a Nicômaco” e a " Magna Moralia” deixou-nos acima de tudo um legado de extremo rigor lógico que não pode ser jamais desconsiderado. 


Estagira
Fundada pelos colonos jônicos, a cidade de Estagira pertencia à região da Macedônia. Sua fama se deve sobretudo por ter sido o local de nascimento do filósofo tematizado neste texto.
Para o filósofo de Estagira, o homem é tão capaz de “desejos” e “afecções” (vontade ou alma desiderativa) quanto está apto a adquirir inteligência (razão ou alma racional). Complexo, o homem é o único zoon com capacidade para agir orientado por uma moral, de modo que suas ações e juízos resultam ora em vício, ora em virtude. Mas o que define essa moral? Existe nela um conteúdo invariável?

Para começar a responder a essas indagações preliminares, é preciso resgatar um pensamento aristotélico que remete ao núcleo do modelo republicano: a sociedade precede o indivíduo. Em outras palavras, o todo precede a parte. Para Aristóteles, um homem incapaz de “viver em sociedade” ou alheio ao Estado é um “bruto ou uma divindade”. Em algumas edições de “Política”, a frase dele é assim traduzida: “O todo deve, necessariamente, ser posto antes da parte”. Isso, obviamente, seria próprio de uma tendência gregária detectável em várias espécies. Mas, de acordo com Aristóteles, o diferencial do homem está no fato de ele não se unir aos demais apenas para a satisfação de seus desejos imediatos (reprodução, proteção, alimentação, etc.), saciados no seio da família ou da aldeia. Ele tende a ir além, dar vazão às suas potencialidades, e nesse ponto entra a importância da pólis para sua realização.


Evidentemente, e amparado pelos debates sobre o tema, creio ser reveladora a ênfase dada por Aristóteles à comunicação humana. Ao conceituar as coisas (significar, classificar) e estabelecer relações mediadas pela palavra (retórica, argumentação), o homem detém a condição de quantificar e qualificar (racionalizar) suas ações, locais e objetos. E é também a partir da formação intelectual, moral e física que ele encontra o equilíbrio vital para atingir a virtude. Em Aristóteles, presumo, a virtude é agir conforme a razão dos valores universais de uma determinada pólis. Ou seja, o que desejo como bom deve equivaler àquilo considerado bom para a minha sociedade. E sejam quais forem as especificidades dessas regras, o bem comum será invariavelmente a felicidade, a justiça, o bem viver na sociedade política.

Assim, o homem é um animal político, pois, na pólis, ele consegue orientar-se pela conduta moral mediada por leis estabelecidas pelos elementos intelectuais (adquiridos no processo de formação) e moral (lapidada pelos hábitos racionais e pela experiência vivida). O homem é, portanto, um receptáculo pronto a receber e experimentar ensinamentos e vivências, sem os quais sua existência ficaria incompleta, sendo comandada apenas pelas vontades. A propósito, eis a razão para a prudência ser tão estimada na pólis aristotélica: somente com a experiência e a inteligência consegue-se antever as consequências de um ato desviante à moral do grupo.

É interessante perceber que o pensamento aristotélico não oferece uma receita dogmática fechada. Depreendemos da obra do filósofo grego que a grande chave da moral é o racionalismo, sendo o conteúdo dela determinado pelo consenso da sociedade política. Arrisco-me a interpretar que Aristóteles entendeu o mundo como uma combinação de acasos e circunstâncias variáveis de acordo com o tempo, o espaço e as relações.

Em suma, o homem busca a pólis para viver a plenitude de suas potencialidades enquanto espécie, e para suprir condições que outros agrupamentos (família, aldeia) estão, quando isoladas, aquém de proporcionar. A pólis não exclui a dimensão da família, na qual o homem se reproduz e se abriga; na verdade, a pólis é a arena na qual ele faz escolhas e se relaciona por meio de regras que podem levá-lo à virtude. Observo, por fim, que Aristóteles não vê os homens como “naturalmente” virtuosos; eles possuem, na realidade, os predicados necessários para, na condição de animal político, obter a felicidade e o bem comum. O seu sentido de completude.

ARISTÓTELES: PRECEPTOR DE ALEXANDRE, O GRANDE
Integrante, junto de Sócrates e Platão, da “santíssima trindade” dos filósofos da Grécia Antiga ou Clássica, pilares do pensamento ocidental, Aristóteles foi preceptor do lendário rei da Macedônia, Alexandre, o Grande. Já reconhecido pelo seu gênio e saberes, Aristóteles assumiu, a pedido do pai de Alexandre, Filipe II, a educação do futuro imperador e comandante militar.

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Escala, col. Mestres Pensadores, 2008.
LOPES, Marisa. Animal Político: estudos sobre justiça e virtude em Aristóteles. São Paulo: Singular, 2009. STRATHERN, Paul. Aristóteles em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
VINI, François. Compreender Aristóteles. São Paulo: Vozes, 2006.

*Daniel Rodrigues Aurélio é sociólogo, escritor, bacharel em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e pós-graduado em Globalização e Cultura pela Escola Pós- Graduada de Ciências Sociais

Fonte: Revista Filosofia UOL

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

"Animales Racionales y Dependientes" de Alasdair MacIntyre - Maximiliano...

El segundo Studium - Estudio Comunitario - del Centro Pieper se realizó el martes 29 de Mayo del 2012 en Mar del Plata, en cuya oportunidad se presentó el libro: "Animales Racionales y Dependientes. Por qué los Seres Humanos Necesitamos las Virtudes" de Alasdair MacIntyre, a cargo del Lic. Maximiliano Loria.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A verdadeira amizade de Damon e Pítias



Essa história se passa em Siracusa, cidade-estado da Sicília, no século IV, a.C., e foi narrada por Cícero, acerca de Damon e Pítias (também chamado de Fíntias), seguidores de Pitágoras.

Damon e Pítias eram grande amigos desde a infância. Confiavam um no outro como se fossem irmãos e ambos sabiam, no fundo do coração, que nada havia que não fizessem um pelo outro. Chegou o dia em que precisaram demonstrar a profundidade dessa amizade. Aconteceu assim:

Dionísio, rei de Siracusa, aborreceu-se ao tomar conhecimento dos discursos que Pítias vinha fazendo. O jovem pensador andava dizendo ao público que nenhum homem deveria ter poder ilimitado sobre outro e que os tiranos absolutos eram reis injustos. Num assomo de cólera, Dionísio mandou chamar Pítias e seu amigo.

- Quem você pensa que é, espalhando a inquietação entre as pessoas? - exortou.
- Divulgo apenas a verdade - respondeu Pítias. - Não haver nada errado nisso.
- E sua verdade sustenta que os reis têm poder demais e que suas leis não são boas para os súditos?
- Se um rei apossou-se do poder sem a permissão do povo, sim, é o que falo.
- Isto é traição! - gritou Dionísio - Você está conspirando para me depor. Retire o que disse ou arque com as conseqüências.
- Não retiro nada - respondeu Pítias.
- Então você morrerá. Tem algum último desejo?
- Sim, permita-me ir em casa apenas para dizer adeus à minha mulher e meus filhos e deixar em ordem os assuntos domésticos.
- Vejo que não somente me considera injusto, mas também estúpido - Dionísio riu sarcástico. - Se sair de Siracusa, tenho certeza de que nunca mais o verei.
- Dou-lhe uma garantia nesse mundo você me poderia dar para fazer-me crer que algum dia voltará? - Exclamou Dionísio.
Nesse momento, Damon, que permanecia calado ao lado do amigo, deu um passo à frente.
- Eu serei a garantia - disse. - Mantenha-me em Siracusa como seu prisioneiro até o retorno de Pítias. Nossas amizade é bem conhecida. Pode ter certeza de que Pítias voltará se eu ficar retido aqui.
Dionísio examinou em silêncio os dois amigos.
- Muito bem - disse por fim. - Mas se estás disposto a tomar o lugar do seu amigo, deve se dispor a aceitar a mesma sentença, se ele quebrar a promessa. Se pítias não voltar a Siracusa, você morrerá em lugar dele.
- Ele cumprirá a palavra - respondeu Damon. - Não tenho a menor dúvida.
Pítias recebeu permissão para partir e Damon foi atirado na prisão. Muitos dias se passaram e, como Pítias não voltava, Dionísio se deixou vence pela curiosidade e foi à prisão ver se Damon já estava arrependido de ter feito o acordo.
- Seu tempo está chegando ao fim - o rei de Siracusa escarneceu. - Será inútil implorar misericórdia. Você foi um tolo ao confiar na promessa do seu amigo. Pensou realmente que ele iria sacrificar a vida por você, ou por qualquer outra pessoa?
- É um mero atraso - Damon rebateu com firmeza. - Os ventos não permitiram que navegasse, ou talvez tenha encontrado um imprevisto na estrada. Mas se for humanamente possível chegará a tempo. Tenho tanta certeza da sua virtude como da minha própria existência.
Dionísio admirou-se da confiança do prisioneiro.
- Logo veremos - disse ele, deixando Damon sozinho na cela.
Chegou o dia fatal. Damon foi retirado da prisão e levado à presença do algoz. Dionísio saudou-o com um sorriso presunçoso.
- Parece que seu amigo não apareceu - ele riu - Que acha dele agora?
- É meu amigo - Damon respondeu. - Confio nele.
Nem terminara de falar e as portas se abriram, deixando entrar Pítias cambaleante. Estava pálido, ferido e a exaustão tirava-lhe o fôlego. Atirou-se aos braços do amigo.
- Você está vivo, graças aos deuses - soluçou. - Os fados pareciam conspirar contra nós. Meu navio naufragou numa tempestade, bandidos me atacaram na estrada. Mas recusei-me a perder a esperança e finalmente consegui chegar a tempo estou pronto a cumprir minha sentença de morte.
Dionísio ouviu com espanto essas palavras. Abriam-se seus olhos e o seu coração. Era-lhe impossível resistir ao poder de tal lealdade.
- A sentença está revogada - declarou ele. - Jamais acreditei que pudessem existir tamanha fé e lealdade na amizade. Você mostraram como eu estava errado e é justo que os recompense com a liberdade. Em troca, porém, peço grande auxílio.
- Que auxílio? - Perguntaram os amigos.
- Ensinem-me a ter parte em tão sólida amizade.

Fonte: O livro da virtudes. William J. Bennett

Clóvis de Barros Filho | Facebook, bullying eletrônico e ilhas afetivas

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Quadrinho filosófico do dia

Castigo (por Wesley Cragg)

Wesley Cragg
 
Tradução de Lucas Miotto
 
História, literatura, religião e a observação prática, todas sugerem que o castigo sempre desempenhou um papel central na organização das relações humanas. Por diversas razões, isso não é surpreendente nem perturbador. Por outras razões, é as duas coisas. Para entender o fenômeno e os desafios morais que apresenta, as duas perspectivas precisam de uma exploração cuidadosa.

As relações humanas são caracteristicamente regidas por regras. Há muitas razões para isso. Em várias fases da vida os seres humanos são incapazes de satisfazer até mesmo as suas necessidades mais básicas sem a ajuda de outros. Cada um de nós precisa do apoio e proteção de adultos, se quisermos sobreviver. Em todas as fases de nossas vidas, cada um de nós é vulnerável à agressão física, furto e destruição da propriedade. As regras fornecem a estrutura para a assistência mútua e para a cooperação. Ajudam a definir o que é permitido e o que é proibido. Se não forem executadas, não podem fazer o seu trabalho e a cooperação se torna mais difícil ou, talvez, até impossível.

O castigo tem um lugar natural nessa conjuntura. Responde à ira, ressentimento e sentido de injustiça que geram quem viola as regras básicas. Funciona como um desincentivo. É uma maneira de assegurar que quem respeita as regras não termina em piores condições do quem não as respeita.

Por outro lado, o castigo é moralmente problemático. Uma das regras mais básicas da sociedade civilizada é que infligir dor e sofrimento deliberadamente aos outros requer sempre uma justificação cuidadosa. No passado, o castigo era quase sempre acompanhado de dor e sofrimento, às vezes de uma natureza brutal e bárbara. Mesmo hoje, a pena de morte é largamente praticada. Mesmo onde foi abolida, os transgressores podem ser, e o são, frequentemente, sentenciados a longas penas em instituições onde as condições de vida são difíceis, monótonas e, frequentemente, perigosas. No entanto, o castigo, particularmente os castigos severos, não se tem mostrado uma ferramenta eficiente ou efetiva para a execução da lei. Além disso, normalmente, o peso do castigo cai mais pesadamente sobre os pobres e os membros marginalizados da sociedade.

Por todas estas razões, o castigo precisa de ser justificado tanto em princípio, quanto na prática. Fornecer essa justificação exige responder a quatro perguntas:
  1. A prática do castigo é em qualquer ocasião justificável e, neste caso, sob que condições?
  2. Que espécies de castigo se justificam? Estas precisam de envolver sofrimento?
  3. Quem temos o direito de castigar?
  4. Quem tem a autoridade moral para infligir castigos?
Tradicionalmente, as respostas para essas questões têm sido ou retrospectivas ou prospectivas. As justificações de retrospectivas veem o castigo como uma resposta às transgressões morais. Um crime, por sua própria natureza, cria uma injustiça ao infligir um dano desmerecido numa vítima ou ao conferir um benefício desmerecido e injusto ao transgressor. O propósito do castigo é remover o benefício desmerecido e corrigir o dano feito impondo uma pena ou privação ao criminoso que corresponda à gravidade do crime cometido. De acordo com esta explicação, o castigo constitui a justa retribuição para transgressões voluntárias ou intencionais.

As justificações retributivistas do castigo encontram-se na filosofia ocidental grega, medieval e moderna e estão profundamente incrustadas nas teologias judaica, cristã e islâmica, apesar de em nenhuma destas tradições religiosas serem a única explicação oferecida para o castigo. Têm sido articuladas e defendidas por alguns dos mais influentes filósofos na história do pensamento moderno como, por exemplo, Immanuel Kant e G. W. F. Hegel. Finalmente, as justificações retributivistas têm tido um profundo impacto no desenvolvimento das instituições jurídicas ocidentais. O direito de testemunho, a exigência de a culpabilidade ser estabelecida para lá de qualquer dúvida razoável e o princípio da mens rea1, todos comprovam esse fato.

A preocupação mais comum e premente com o retributivismo é a sua associação, na mente de muitos, com a ideia de vingança. Não se justifica, contudo, que se confunda as duas. A perseguição de vingança ou retaliação é quase sempre indisciplinada e intemperante. Aqueles que procuram retaliação frequentemente julgam mal o dano ou a ofensa aos quais estão reagindo e reagem de uma maneira excessivamente dura, perpetrando por seu turno mais injustiça. O resultado é frequentemente um ciclo de retaliação com gradativas reações das quais não parece haver escapatória. Consequentemente, apesar de a vingança ser frequentemente exigida em nome da justa retribuição, raramente tem essa qualidade. Ao contrário, a justa retribuição exige juízes imparciais guiados por leis que asseguram um julgamento justo, os quais são orientados a assegurar que o castigo se ajuste aos crimes cometidos e seja imposta somente àquelas pessoas tidas como culpadas pelas ofensas pelas quais estão a ser punidas num tribunal.

As justificações retributivistas do castigo, contudo, encontram outras dificuldades a que não é tão fácil fugir. Justificar um sistema apropriado de multas ou penalidades é uma delas. Aqui, apela-se freqüente e popularmente à lex talionis: “Olho por olho, dente por dente.” No entanto, tais preceitos rapidamente sucumbem em face da engenhosidade com que os seres humanos infligem dano injustificado uns aos outros. O que indica a lex talionis, por exemplo, como uma pena apropriada para uma violação sexual brutal, difamação, fraude, sequestro ou terrorismo? Por outro lado, se a lex talionis for abandonada, os retributivistas ficam com um princípio de proporcionalidade que recomenda simplesmente que a punição infligida varie com a gravidade moral do crime cometido. Apesar de esta recomendação ter claramente algum valor, não provê orientações que determinem as espécies de castigo que são moralmente justificáveis — pena de morte, por exemplo, ou castigos corporais, ou confinamento solitário, ou multas pesadas, e assim por diante.

As explicações retributivistas têm sido criticadas também por outras razões. Os seus críticos argumentam que os retributivistas fundem as transgressões legais e morais de modo que parece particularmente inapropriado nas sociedades pluralistas ocidentais. Parecem deixar pouco espaço para valores importantes, como a compaixão, perdão e piedade, quando reagem aos criminosos. Talvez a crítica mais eficaz, contudo, é a de que o retributivismo exige que o culpado seja castigado mesmo quando é claro que nem o criminoso nem a comunidade se beneficiarão diretamente do resultado do castigo.

Opostas ao retributivismo, as justificações de prospectivas exigem que o castigo seja aplicado somente onde conferir benefícios que superem o sofrimento que impõe. Tradicionalmente, esses benefícios têm sido de dois tipos: benefícios relativos ao indivíduo objeto do castigo e benefícios relativos às vítimas e à sociedade. Para muitas pessoas, a idéia de que o castigo possa ser imposto com vista ao bem-estar da pessoa a castigar tem um caráter paradoxal. Apesar disso, está profundamente enraizada historicamente nas discussões sobre o tema, por exemplo, no livro de Job do Velho Testamento e no Protágoras, de Platão. As teorias do castigo deste gênero orientam-se tipicamente pelo bem-estar e focam o castigo como um instrumento de reabilitação, tratamento, correção, reforma ou educação moral.

As teorias que visam a prevenção também têm sido desenvolvidas para justificar o castigo. Um dos benefícios desta via é que parece fornecer uma orientação clara, bem como limites claros na sentenciação de criminosos. Deste ponto de vista, não se deve infligir qualquer castigo que imponha mais dano ou sofrimento ao criminoso do que a que evita ao prevenir que o criminoso repita o crime, ou ao reduzir a probabilidade de outros seguirem os passos do criminoso.

Apesar de tanto as teorias que visam o bem-estar como as que visam a prevenção terem encontrado defensores diversificados e sofisticados e terem exercido considerável influência no desenvolvimento da teoria do castigo e da sentenciação neste século, admite-se em grande parte que ambas estão sujeitas à mesma crítica. Se o objetivo é puramente de aspecto prospectivo, porquê castigar somente quem transgride a lei intencionalmente ou voluntariamente? Porquê esperar pessoas que quem ameaça a sociedade cometa crimes antes de exigir que se submetam a tratamento ou reabilitação? De fato, por que não substituir a linguagem moralista de culpado e inocente, castigo e retribuição pelo vocabulário de tratamento, reabilitação e modificação comportamental, por exemplo? Em suma, não é de todo claro que haja lugar nas teorias puramente prospectivas para a idéia de justiça.

Estas críticas às duas justificações tradicionais do castigo têm estimulado uma vasta série de respostas. Alguns teorizadores (por exemplo, Jeffrie Murphy e Jean Hampton, Wesley Cragg) voltaram-se para o reexame do retributivismo e da sua relação com a justiça, piedade, perdão, ódio e ressentimento. Outros (por exemplo, R. A. Duff, Jacob Adler) têm tentado associar noções seculares de castigo com a idéia de penitência. Tem-se tentado construir explicações híbridas do castigo, combinando as melhores características das justificações retributivistas e utilitaristas (por exemplo, H. L. A. Hart, R. A. Duff), tentativas estas que têm sido muitíssimo criticadas (por exemplo, Nicola Lacey, Wesley Cragg). A relação entre castigo e sofrimento ou tratamentos opressivos, tem sido muitíssimo explorada. Finalmente, a função e o papel do castigo na execução da lei, sentenciação e correções tem sido analisado.

Duas conclusões emergem dos debates contemporâneos acerca da natureza e papel do castigo numa sociedade democrática moderna. Primeiro, o conceito de castigo é complexo e objeto de contestação. Segundo, a despeito de a teoria moderna do castigo não conseguir prover uma justificação convincente e persuasiva, os instrumentos formais do castigo continuam a ser considerados pelos teorizadores e igualmente pelo público como uma componente essencial da sociedade contemporânea.

Wesley Cragg
Extraído de The Philosophy of Law: An Encyclopedia, dir. Christopher Berry Gray (Garland Publishing: Nova Iorque e Londres, 1999)

Nota do tradutor

  1. Para um ato ser considerado um crime, o seu praticante deve satisfazer no mínimo dois requisitos: um mental e outro material. O requisito mental é o requisito de que o agente praticante do ato deve ou deveria saber que aquele ato é proibido. Este requisito varia de acordo com o crime, sendo que em alguns crimes se exige que o praticante saiba que o ato que praticou é proibido e mesmo assim o comete, e noutros basta que o praticante não se importe se o ato que pratica é crime ou não. Tal requisito mental é conhecido como mens rea. As condições necessárias da mens rea para cada crime são controversas, sendo a sua discussão bastante relevante na discussão acerca de que atos devem ser criminalizados.

Referências

  1. Adler, Jacob. The Urgings of Conscience: A Theory of Punishment. Philadelphia: Temple University Press, 1991.
  2. Bentham, Jeremy. “Principles of Penal Law.” In The Works of Jeremy Bentham, vol. 1, ed. J.Bowing. Edinburgh: W.Tait, 1838.
  3. Cragg, Wesley. The Practice of Punishment: Toward a Theory of Restorative Justice. London: Routledge, 1992.
  4. Duff, R.A. Trials and Punishments. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
  5. Hart, H.L.A. Punishment and Responsibility. Oxford: Clarendon Press, 1968.
  6. Hegel, G.W.F. Philosophy of Right. Trad. T. M. Knox. Oxford: Oxford University Press, 1942.
  7. Honderich, Ted. Punishment: The Supposed Justifications. Harmondsworth: Penguin Books, 1969.
  8. Kant, Immanuel. Philosophy of Law. Trad. E. Hastie. Edimburgo, 1887.
  9. Lacey, Nicola. State Punishment. London: Routledge, 1988.
  10. Martin, Rex. A System of Rights. Oxford: Clarendon Press, 1993.
  11. Murphy, Jeffrie G., and Jean Hampton. Forgiveness and Mercy. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
  12. Plato. Protagoras. In The Great Dialogues of Plato, trans. W.H.D.Rouse. New York: Mentor Books, 1956.
Fonte: Crítica na Rede

David Hume e o empirismo britânico: O argumento cético que abalou a filosofia

 
David Hume - filósofo escocês do Séc. XVIII


Por José Renato Salatiel

É comum termos a impressão de que a filosofia é algo muito abstrato, distante de nossa realidade. É o caso de algumas metafísicas construídas com base em conceitos que carecem de qualquer significado mais concreto.

Na história das ideias, dificilmente encontramos um pensamento tão fatal para esse tipo de metafísica quanto aquele que o filósofo escocês David Hume (1711-1776) expôs em suas Investigações sobre o Entendimento Humano (1748).

Os argumentos de Hume foram tão convincentes que despertaram Kant de seu "sono dogmático" e influenciaram algumas das principais correntes contemporâneas da filosofia angloamericana.

A obra Investigações sobre o Entendimento Humano trata, essencialmente, da teoria do conhecimento, que é aquele ramo da filosofia que busca responder questões sobre a origem e a validade de tudo que podemos conhecer.

A este respeito, Hume era empirista, ou seja, acreditava que todo conhecimento provém da experiência. Mas, diferente de Locke, para quem a mente do homem, ao nascer, era uma "folha em branco" a ser preenchida pela experiência sensível, Hume era também cético a respeito de uma fundamentação para o que aprendemos com base na experiência.

Fontes do conhecimento
Para Hume, tudo aquilo que podemos vir a conhecer tem origem em duas fontes diferentes da percepção:

  • Impressões: são os dados fornecidos pelos sentidos. Podem ser internas, como um sentimento de prazer ou dor, ou externas, como a visão de um prado, o cheiro de uma flor ou a sensação tátil do vento no rosto.
  • Ideias: são as impressões tais como representadas em nossa mente, conforme delas nos lembramos ou imaginamos. A lembrança de um dia no campo, por exemplo.
    De acordo com o filósofo, as ideias são menos vívidas que as impressões e, por isso, são secundárias: "(...) todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são cópias de nossas impressões, ou percepções mais vivas."

    Por isso, a experiência seria a base de todo conhecimento, que podemos chamar de raciocínio sobre questões de fato. Enquanto que o segundo modo dos objetos externos se apresentarem à razão é chamado relação de ideias.

    As ideias, por sua vez, se relacionam umas com as outras de três modos:
  • por semelhança (uma fotografia que nos leva a ter a ideia do fato original);
  • por contiguidade de tempo e lugar (o dizer algo a respeito de um cômodo de uma casa me leva a perguntar sobre os demais); e
  • por causalidade (ao nos recordarmos de uma pessoa ferida, imediatamente pensamos também na dor que ela deve ter sentido - o ferimento, neste exemplo, é a causa; a dor, o efeito).
    Nas relações de ideias, o conhecido obtido é chamado de demonstrativo, intuitivo ou dedutivo. É o caso da matemática e da geometria.

    Examinemos dois exemplos dados por Hume. No primeiro, temos a seguinte proposição: "O quadrado da hipotenusa (1) é igual à soma dos quadrados dos dois lados (2)". Ela expressa a relação entre a ideia (1) e (2), que são, ambas, figuras geométricas.

    No segundo exemplo, a afirmação "Três vezes cinco (1) é igual à metade de trinta (2)" resulta da relação entre números: 3 x 5 (1) e metade de 30 (2).

    A partir daí podemos inferir três coisas: (a) que esse tipo de conhecimento independe completamente de objetos externos; (b) que é necessariamente correto, seguro; e (c) que sua prova é dada inteiramente pela razão: seria um absurdo lógico dizer o contrário daquilo que é afirmado, como, por exemplo, que dois mais dois é igual a cinco, não quatro.

    Mas, e em se tratando de questões de fato, ou seja, de coisas que afirmamos acerca da realidade? Tome-se a seguinte proposição: "As rosas são vermelhas". Nada me impede de pensar, e dizer, que as rosas são brancas, ou mesmo azuis ou verdes. Não haverá qualquer contradição lógica, mesmo que isso não corresponda, de fato, à rosa a qual me refiro.

    Em outro exemplo, dado por Hume, dizer que "O Sol não nascerá amanhã", não é menos absurdo, do ponto de vista lógico, do que dizer "O Sol nascerá amanhã". Qual deve ser, então, o fundamento do conhecimento empírico?

    Causalidade Segundo Hume, todo raciocínio empírico, sobre questões de fato, se assenta sobre relações de causa e efeito. Na proposição "A pedra esquenta porque foi exposta aos raios solares" tenho uma afirmação que parte de duas impressões sensíveis, uma tátil ("a pedra esquenta") e outra visual ("exposta aos raios solares"). O que une essas duas impressões é uma relação de causalidade: a pedra esquenta (efeito) porque foi exposta aos raios solares (causa).
    Portanto, para saber qual é o fundamento do conhecimento empírico, Hume precisou analisar o fundamento dessa relação causal.

    A primeira coisa que se pode dizer é que não há aqui nenhuma base lógica, dedutiva. Se tenho uma pedra em minha mão e a solto, espero que, como efeito, ela caia no solo. Mas poderia naturalmente pensar que ficasse suspensa no ar ou voasse em direção ao céu. Podem ser coisas impossíveis de acontecer, mas concebíveis pelo intelecto.

    Isso significa que, por meio da razão, é impossível chegar da causa (a) para o efeito (b). São duas coisas completamente diferentes: a pedra se soltar da minha mão (a) e cair no solo (b). Para relacionar duas impressões sensíveis, preciso primeiro tê-las, isto é, preciso ver a pedra caindo no solo para, então, dizer com segurança que ela caiu porque eu a soltei de minha mão.

    Diz Hume: "O intelecto jamais poderá encontrar o efeito numa suposta causa, mesmo pelo mais acurado estudo e exame, porquanto o efeito difere radicalmente da causa, e por isso não pode de nenhum modo ser descoberto nela (...). Uma pedra ou um pedaço de metal erguido no ar e deixado sem nenhum apoio cai imediatamente; mas quem considera esse fato a priori poderá descobrir na situação alguma coisa que sugira a ideia de um movimento para baixo e não para cima, ou qualquer outro movimento na pedra ou no metal?"

    Qual deve ser, então, o fundamento da causalidade e, assim, do conhecimento empírico? Para Hume, não há nenhum, a não ser o costume, o hábito que temos, pelo fato de inúmeras vezes termos visto, anteriormente, pedras caindo no solo e o Sol nascendo a cada manhã. Esperamos que aconteça sempre a mesma relação causal devido a uma crença, de cunho psicológico e subjetivo. Nunca podemos, portanto, ter certeza do que estamos dizendo a cerca de questões de fato.

    Metafísicas Este é, em resumo, o argumento cético de Hume sobre a causalidade. Ele foi devastador para a filosofia porque todas as metafísicas também apelam para esse tipo de relação causal para explicar o mundo. Por exemplo: Deus existe porque é a causa de tudo que existe (Santo Tomás de Aquino) ou as ideias claras e distintas da razão são causas de nossos conhecimentos sobre a natureza (Descartes).
    Não que Hume fosse avesso à filosofia, pelo contrário. O que ele dizia é que tais sistemas filosóficos carecem de amparo nas impressões sensíveis, são muito abstratos e usam métodos demonstrativos da matemática que não servem de fundamento para questões de fato.

    O que Hume queria era fazer uma espécie de "faxina" na filosofia, de modo a livrá-la de suas pretensões e ideias estéreis. Assim, ele influenciou Immanuel Kant, Auguste Comte, filósofos pragmatistas como Charles Sanders Peirce, os empiristas lógicos e a filosofia analítica, entre outras importantes correntes do pensamento contemporâneo.
José Renato Salatiel, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação é jornalista e professor universitário.

Bibliografia

  • HUME, David. "Investigações sobre o Entendimento Humano". São Paulo: UNESP, 2004.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Uma apreciação crítica a respeito dos princípios da Liberdade e da Diferença na obra “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls

Rogério Henrique Castro Rocha1


Resumo: Neste artigo desenvolve-se uma breve análise da obra “Uma Teoria da Justiça”, mostrando alguns conceitos básicos de sua fundamentação, bem como expondo e analisando os dois princípios de justiça (liberdade e diferença), a partir da noção neocontratualista, defendida pelo autor na formulação de seu projeto ético-político para a efetivação de um modelo de sociedade bem ordenada, conforme apresentado na obra ora em comento. Esboça-se ainda uma apreciação crítica a respeito de algumas das noções centrais presentes na exposição de sua teoria da justiça.

Palavras-chave: Teoria da justiça, contrato, posição original, véu da ignorância, princípios de justiça, liberdade, igualdade, diferença.

1 INTRODUÇÃO


O filósofo político americano John Rawls é autor da obra “Uma teoria da Justiça” (A theory of justice, 1971), onde desenvolve sua teoria da justiça como equidade (justice as fairness), importante contribuição ao debate contemporâneo acerca do tema, comum tanto ao Direito quanto à jusfilosofia. Nessa obra, tomando para si a tarefa de elevar a um grau superior o contratualismo presente no pensamento kantiano e nos clássicos liberais, o pensador insculpe uma série de princípios e garantias a serem implantados num modelo de sociedade bem ordenada, com fundamento na prevalência do justo sobre o bem.

O esforço intelectual de Rawls na construção de seu modelo teórico é notadamente reconhecido nos meios acadêmicos, tendo a sua TJ (teoria da justiça) passado a servir de referência quando da análise da conformação ético-política contemporânea – em que pesem as severas críticas que recaem sobre o referido modelo teórico, sobretudo quanto a alguns de seus aspectos conceituais.
 
Outrossim, sua obra foi também responsável pela deflagração de acirrado debate acadêmico entre liberais e comunitaristas, sobretudo nos Estados Unidos e Europa, dando lugar ao surgimento de seguidas reformulações tanto no pensamento do próprio autor quanto nas bases argumentativas que fundamentam as teorias que lhe são opositoras.

Antes de se ingressar diretamente na apreciação proposta acerca dos dois princípios fundamentais da doutrina rawlsiana, é necessário tecer certas considerações de caráter preliminar, para melhor compreensão da natureza de sua obra.

2 A TEORIA DA JUSTIÇA


          Na obra “Uma teoria da Justiça”, Rawls propõe a formulação de um modelo de sociedade democrática de base constitucional, fundada sobre a idéia de um novo contrato social. Sua concepção desse sistema recebe influência direta das idéias do liberalismo político, bem como da filosofia moral kantiana, além de colocar-se na posição do que denominou tratar-se de uma “análise sistemática alternativa da justiça” (RAWLS, 1993, p. 14). Também se explicita nessa obra a intenção do autor em fornecer uma teoria, ao mesmo tempo, crítica e opositora à concepção do utilitarismo tradicional.

A idéia de justiça como equidade, desenvolvida por Rawls, encontra-se alinhada a uma concepção política de justiça, tendo por fim a estruturação de uma sociedade bem ordenada e, por conseqüência, justa para com seus cidadãos, garantindo-lhes uma gama considerável de direitos e liberdades fundamentais.

A sociedade descrita em sua teoria baseia-se num sistema equitativo de cooperação, tendo por pressuposto inicial que os indivíduos que a compõem, por condição natural, são livres e iguais, capazes de perseguir as suas aspirações e projetos pessoais, detendo a condição de sujeitos razoáveis e portadores de racionalidade, sendo aptos, portanto, a elaborar concepções próprias de bem e justiça.

Mas para que haja de fato uma sociedade bem ordenada, é preciso escolher e estabelecer princípios norteadores, que servirão de critério para a efetivação da ideia de justiça em cada caso. Daí a necessidade de se proceder, conforme ressalta o autor, na busca de um acordo, racional e imparcialmente produzido. Desse acordo é que sairão os princípios de justiça que deverão reger dada sociedade.

Nesse ponto Rawls cria o artifício de imaginar que tal acordo, ou seja, as bases de um novo contrato social, fundador de uma sociedade que se espera bem ordenada, corresponderia a uma situação hipotética, na qual certos representantes do corpo social, postos em condição de igualdade mútua, escolheriam tais princípios. A essa condição igualitária entre os parceiros, que decidirão sobre os princípios regentes da sociedade, Rawls denomina de “posição original”. Nas palavras do próprio pensador, temos a seguinte explicação:

Na teoria da justiça como equidade, a posição de igualdade original corresponde ao estado natural na teoria tradicional do contrato social. (...) Deve ser vista como uma posição puramente hipotética, caracterizada de forma a conduzir a uma outra concepção de justiça. (Idem, p.33)

Ainda acerca da compreensão do pressuposto teórico da posição original (ou posição originária), assevera ainda Rawls que a introdução de tal ideia deu-se

...porque não há melhor maneira de elaborar uma concepção política da justiça para a estrutura básica a partir da idéia intuitiva fundamental da sociedade como um sistema equitativo de cooperação entre cidadãos como pessoas livres e iguais. (1992, p. 43)

Para assegurar-se da efetiva imparcialidade nas escolhas dos participantes da posição original, Rawls os coloca como que encobertos por aquilo que chamou de “véu da ignorância” (veil of ignorance), que é outro artifício que utiliza para dar sustentação a sua teoria. Sob a condição do véu da ignorância, os parceiros do pacto social desconheceriam suas situações sociais particulares, seus talentos, suas inclinações políticas, bem como seus julgamentos morais, tendências religiosas, etc. Dessa forma, imaginava poder dotá-los de imparcialidade no ato de deliberação e na escolha dos princípios, tornando-os, portanto, os mais acertados, visto tratar-se, a partir do critério observado, de um processo não impregnado por interesses que favorecessem as condições particulares dos participantes da posição original.

Assume grande destaque no âmbito dessa teoria, sobretudo no que concerne à formação do contrato social, a questão do consenso, que deve prevalecer entre os parceiros quando da deliberação dos princípios básicos que servirão de esteio à sociedade e suas instituições. Nessa condição, os participantes do acordo decidem, enquanto entidades morais e sem ter conhecimento algum dos seus objetivos particulares, princípios de justiça aos quais terão de conformar suas concepções sobre o seu próprio bem (Cf. RAWLS, 1993, p.46).

3 OS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA



A partir da definição da importância da escolha dos princípios e de sua finalidade, segue-se que os mesmos deveriam, a posteriori, ser alçados à instância constitucional, funcionando ainda como parâmetro para o sistema de cooperação social que se formaria dentro da sociedade, visando o bem dos seus participantes. Assim sendo, afirma Rawls:

Uma vez adotada uma concepção da justiça, podemos supor que serão escolhidas uma constituição, um sistema de produção de leis e assim por diante, escolhas essas a efectuar de acordo com os princípios da justiça inicialmente adoptados. (Idem, p.34)

Logo, pode-se observar com clareza que uma das grandes preocupações do filósofo americano seria a de apontar os caminhos para que se viabilizasse, na implantação concreta de seus princípios de justiça, a existência de uma sociedade estável, pluralista e democrática, regida pela força da lei positiva, inscrita em uma constituição. Para tanto, seria necessário que os cidadãos livres e iguais desta sociedade chegassem a um entendimento compartilhado sobre uma noção fundamental de justiça pública, aplicável à estrutura básica social. Finalmente, respaldada na escolha consensual de uma concepção de justiça, tal modelo poderia então levar a termo um amplo processo de cooperação social, gerador de vantagens mútuas e benefícios eqüitativos entre seus membros.

Num artigo do ano de 1975, intitulado “Uma concepção kantiana de igualdade” (A kantian conception of equality), onde, de forma breve, aprofunda a análise da visão exposta na TJ sobre a sua concepção de igualdade e demais princípios, Rawls assim se posiciona:

Um conjunto de princípios é requerido para arbitrar entre arranjos sociais que dêem forma a essa divisão de vantagens. Assim, o papel dos princípios de justiça é atribuir direitos e deveres na estrutura básica da sociedade e especificar a maneira pela qual as instituições devem influenciar a distribuição geral dos retornos da cooperação social. (2007, p.110)


Na teoria rawlsiana, partindo-se da centralidade e da profunda atenção que é dada à escolha e efetiva implantação dos seus princípios de justiça, é visível a preocupação em que sejam estabelecidas condições mínimas, formais e materiais, para a possibilidade da construção de uma sociedade humana viável. Razão pela qual estão presentes nessa teoria não só uma noção de pessoa, de bem e de justiça, mas também a de direitos e deveres fundamentais dos indivíduos.

Em torno da noção de justiça, o pensador americano elabora seu discurso ético-político. Tal noção acaba por assumir enorme relevância face à organização do modelo societário proposto na obra, constituindo-se em verdadeiro princípio ordenador. Bem assim, sua teoria responde a exigências típicas de nossa época, demonstrando concordância com princípios democráticos e jurídicos universalmente consagrados, tais como o da dignidade da pessoa humana, o respeito às diferenças e à liberdade, reabilitando e trazendo ao debate contemporâneo a questão do direito natural.

Conforme nos lembra PEGORARO (2002, p. 15), analisando o tema: “Os cidadãos que subjetivamente cultivam o senso de justiça procuram transpô-lo numa ordem jurídica equitativa para todos”. No fundo, é o que os indivíduos racionais, razoáveis, livres e iguais, responsáveis pela escolha autônoma de suas próprias regras básicas (na posição original), sejam capazes de reproduzir tais normas, tornando-as como que máximas a reger suas condutas no plano coletivo e, de igual modo, na estrutura de suas instituições públicas.

Feitas tais considerações, passemos a analisar mais pontualmente os dois princípios de justiça eleitos na posição original, tecendo alguns comentários sobre os mesmos.

3.1 O princípio da liberdade

Ao contrário do que possam imaginar os críticos da teoria rawlsiana, os dois princípios de justiça aplicáveis às instituições não surgem gratuitamente, ou seja, não aparecem do nada. Ambos se originam de um conceito ordinário de justiça; algo como uma espécie de senso comum presente nas pessoas, nos grupos e na própria sociedade. Surge, portanto, de um senso da justiça contido na experiência histórica dos indivíduos em qualquer tempo.

O princípio da liberdade, bem como o segundo princípio, recebe na TJ duas redações. Uma de caráter provisório, encontrada no parágrafo terceiro (RAWLS, 1993, p.35). Outra, já definitiva, encontra-se no parágrafo 46, a qual passamos a reproduzir integralmente, como segue: “Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema de liberdades para todos.” (Idem, p.239)

Da exposição acima, pode-se retirar algumas posições determinantes da teoria.

Pelo teor do enunciado, deste que é o primeiro princípio de justiça da sociedade bem ordenada, vemos que os representantes na posição original primariam por garantir, em primeiro plano, um máximo possível de liberdades básicas aos indivíduos. A cada pessoa, dever-se-ia garantir um “direito igual” de usufruir do “mais amplo sistema total de liberdades básicas”.

Percebe-se na formulação desse princípio que a questão da liberdade nas modernas democracias constitucionais ocupa lugar de destaque. É quase impossível falar-se em Estado democrático de direito, em instituições justas, em realização dos fins a que se propõem os variados modelos sociais, sem se falar em liberdade.

Requisito essencial para a efetivação do caráter autônomo dos indivíduos que participam da sociedade bem ordenada, com seus projetos de vida e aspirações particulares, a liberdade é, acima de tudo, um direito. Um direito natural, conforme amplamente consagrado nas lições da boa doutrina jurídica e filosófica. Trata-se, portanto, de caractere inerente à condição humana, dada sua capacidade racional. Sobretudo da intuição de que existem princípios de direito válidos em qualquer tempo, independentemente até mesmo do padrão cultural dos seres humanos.

A escolha do princípio da liberdade tem estreita relação com os preceitos filosóficos da doutrina do liberalismo político (defendida por Rawls na concepção de sua TJ), com o jusnaturalismo, com o legado do pensamento iluminista e com as principais declarações de direitos. É a liberdade um direito fundamental do homem. Portanto, garanti-la enquanto princípio ordenador de uma sociedade é assegurar que as suas instituições permitam uma convivência digna e igual entre as pessoas. Por isso mesmo, possui como característica básica o fato de ser um direito irrenunciável – e ainda, segundo Rawls, inegociável.

Como bem salientou o mestre José Afonso da Silva (1995, p.227):

O conceito de liberdade humana deve ser expresso no sentido de um poder de atuação do homem em busca de sua realização pessoal, de sua felicidade. (...) Vamos um pouco além, e propomos o conceito seguinte: liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal.

O princípio da liberdade aqui enunciado refere-se, desse modo, à liberdade de agir, ou seja, à liberdade tratada, sobretudo, em seu aspecto político, e não à mera liberdade metafísica. Prioridade máxima (quer na esfera pública, quer na vida privada), a liberdade deve ser garantida a todas as pessoas, num rol o mais extensivo possível. E mais ainda, tal garantia deve tornar-se possível em condições iguais para todos. O que implica em se falar aqui em liberdade igualitária, deduzindo-se, da exposição acima citada, uma espécie de sub-princípio ou princípio complementar ao de liberdade, estando a ele diretamente vinculado.

É oportuno citar RADBRUCH (2004, p. 190), quando o mesmo nos lembra que:

O conceito de pessoa permanece um conceito de igualdade na medida em que se equiparam o poderoso e o impotente, o proprietário e o desprovido de bens, a frágil pessoa individual e a poderosíssima pessoa coletiva.

E com a mesma propriedade, conclui:

A concepção social não dissolve, de modo algum, esse conceito de igualdade nos vários tipos do patrão, do empregado, do operário, do funcionário. Patrão, empregado, operário, funcionário são para ela apenas situações distintas em que se encontram as mesmas pessoas, supostas como iguais. Se, no fundo de cada um desses tipos sociais não estivesse o conceito igualitário de pessoa, faltaria o denominador comum, sem o qual seria impensável qualquer comparação e igualação, qualquer consideração de justiça, qualquer direito privado, e talvez até mesmo qualquer direito. (Idem, p. 190-191)

Em suma, o princípio de liberdade em Rawls correlaciona-se a um princípio de igualdade, reafirmando o direito legal às liberdades fundamentais e aos direitos invioláveis da pessoa humana, seja em sua estrita individualidade, seja no convívio social. Sendo assim, no corpo desta importante contribuição à filosofia do nosso tempo, o autor unifica num só sistema, pensamento político e ética, resgatando assim a esperança de que estas duas práticas, outrora intrínsecas, possam, enfim, reatar seus laços originários, há muito rompidos.


3.2 O princípio da diferença

Dando continuidade a análise, passa-se agora a expor a formulação definitiva do princípio da diferença, situado no parágrafo 46 da TJ, que trás a seguinte assertiva:

As desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas por forma a que, simultaneamente: a) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados, de uma forma que seja compatível com o princípio da poupança justa, e b) sejam a conseqüência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade eqüitativa de oportunidades. (RAWLS, 2003, p.239)

Na interpretação do segundo princípio, depreende-se que, segundo Rawls, devemos aceitar as desigualdades sociais e econômicas, bem como as diferenças mesmas entre os indivíduos, enquanto membros da sociedade. Ressalta, entretanto, que tais diferenças só devam existir na medida em que aos menos favorecidos seja garantida uma posição mais satisfatória quanto a distribuição de benefícios e renda, em igualdade de condições para com os demais membros mais abastados da coletividade. (RUSS, 2006, p. 50)

Enquanto o primeiro princípio assegura um amplo rol das liberdades básicas e explicita a prioridade conferida à liberdade, apenas excepcionalmente podendo vir a sofrer alguma restrição (desde que a serviço da própria liberdade), o segundo princípio é consagrado à distribuição de renda e riqueza ou oportunidades, conferindo-se, quanto ao mesmo, a prioridade da justiça frente à eficiência do bem-estar.

O autor defende em sua teoria uma igualdade de natureza democrática. Tal igualdade deverá ser fundada com base numa eqüitativa igualdade de oportunidades e na existência de desigualdades (segundo ele, aceitáveis).

Seu conceito de justiça como eqüidade implica, conforme se pode observar, no estabelecimento da igualdade de condições no acesso às oportunidades, que deverá ser estendida a todos os indivíduos, sabendo-se, todavia, que seu resultado será sempre desigual. Ou seja, deve-se esperar que (mesmo numa sociedade bem ordenada) nem todas as pessoas contempladas com as iguais condições de acesso às oportunidades necessariamente tenham êxito em desenvolver de modo integral as suas capacidades. Isto ocorre em função de uma série de circunstâncias impeditivas (falta de certas habilidades, ausência de talento, classe social a que pertençam, limitações físicas, intelectuais, orgânicas, etc.), o que termina justificando a própria noção de desigualdade. Nesse sentido, em Rawls a desigualdade é não só esperada, como também admissível.

Ainda na visão de RUSS (Idem, p.51), Rawls opera sua teoria fazendo um verdadeiro balanceamento de filosofias políticas antitéticas, quando destaca tanto o empreendedorismo e a livre iniciativa econômica dos agentes sociais das classes favorecidas (visão liberal), quanto a necessária distribuição de renda, proventos, bens, oportunidades e benefícios aos desfavorecidos (visão socialista). Verdadeira síntese entre duas tradições que a história mostrou antagônicas.

Ao cominar igualdade e diferença, “pode-se dizer que há, aí, uma preocupação com a eqüidade, um levar em conta as desigualdades, um exame flexível e humano do espetáculo das injustiças da vida.” (Idem, Ibidem)

Por isso, temos, na opinião de ALMEIDA (2006, p.09):

Uma vez garantidas as liberdades individuais e, portanto, toleradas as diferentes concepções de vida, deve-se buscar o máximo de igualdade possível, por meio de arranjos institucionais. (...) Através desse princípio de diferença permitem-se desigualdades ainda remanescentes, desde que beneficiem os mesmos privilegiados.

É nítida em Rawls a preocupação em se conciliar a desigualdade com a liberdade, propondo uma forma de mitigação das diferenças, mediante a garantia do direito à igualdade eqüitativa de oportunidades, reforçando ainda mais o caráter igualitarista de sua teoria. Ainda assim, consideramos problemática tal posição, visto que se configura extremamente difícil equalizar desigualdades sociais e econômicas, motivações diversas, conflitos de interesse e descontentamentos com a satisfação de desejos dos numerosos grupos de indivíduos dentro de uma sociedade complexa e pluralista.

Em virtude disso, passamos a entender melhor a razão das constantes e inúmeras críticas ao trabalho de Rawls. Sobretudo em relação ao seu princípio da diferença, quase sempre objetado, dada sua difícil sustentação. Muitas são as indagações que podemos lançar, em função do segundo princípio. Afinal, que pessoas e/ou grupos seriam chamados de ‘menos favorecidos’? A partir de que critérios defini-los, dentro de uma realidade social complexa e multifacetada? Como se falar em justiça e eqüidade, com a manutenção das desigualdades sócio-econômicas? Como esperar que sujeitos por natureza egoístas escolham princípios que privilegiem os desfavorecidos?

Apesar de serem os parceiros na posição original levados a considerar o bem dos outros pelo viés de seu próprio desconhecimento de informações a respeito de si mesmo e da posição dos demais implicados, ainda assim, terão por base seus interesses particulares, ou seja, interesses egoísticos. Embora resultado do consenso e de um ato racional e ponderado dos parceiros, a escolha dos princípios de justiça rawlsianos põe sob suspeita suas reais motivações.

Conclusão

Buscou-se aqui apresentar, de forma sintética e breve, a formulação dos princípios de justiça que se inscrevem na obra “Uma teoria da justiça” e que dão fundamento à efetivação de um sistema político-jurídico numa sociedade bem ordenada, de caráter constitucional e democrático, que Rawls denomina também de democracia de proprietários. Tentou-se também, por meio desse artigo, melhor divisar a concepção subjacente à escolha dos princípios de liberdade e diferença, com a prioridade do primeiro sobre o segundo. Viu-se também o quão presente na teoria rawlsiana o sentimento de necessidade da partilha eqüitativa dos bens na estrutura básica da sociedade, a fim de favorecer os menos assistidos.
Inspirado na noção kantiana de igualdade e autonomia dos indivíduos livres e iguais perante a condição de escolha de um ideal de justiça aplicável às instituições, bem assim no imperativo categórico (na obra representado pelo dever de seguir livre e racionalmente os princípios eleitos), John Rawls nos propõe a elaboração de um novo contrato social, responsável pela instauração de uma nova ordem, que origina-se de um procedimento de negociação que visa o consenso e a estabilidade.

Trata-se de uma teoria polêmica, acusada pelos críticos de possuir certo déficit de fundamentação e de ser portadora de algumas lacunas importantes. Entretanto, e na mesma proporção de seus problemas, converteu-se, sem sombra de dúvidas, em obra referencial, que contribui decisivamente com o debate das práticas políticas e jurídicas das grandes sociedades contemporâneas, conciliando, em seu esforço de elaboração, ética e política, direito e filosofia, tornando-se paradigma inquestionável a toda e qualquer proposta futura de reconstrução ou superação do modelo de sociedade nela descrito.

REFERÊNCIAS


ALMEIDA, Gabriel Bertin de. Os princípios de justiça de John Rawls: o que nos faria segui-los? In: Cadernos de ética e filosofia política. nº 8, jan., 2006, p. 07-18.

PEGORARO, Olinto A. Ética e justiça. 7.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Coleção justiça e direito)

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. de Carlos Pinto Correia. Lisboa: Editorial Presença, 1993.

____________. Uma concepção kantiana de igualdade. In: Veritas. V. 52, nº1, Porto Alegre, mar., 2007, p. 108-119.

____________. Justiça como eqüidade: uma concepção política, não metafísica. Lua Nova [online]. 1992, n.25, pp. 25-59. ISSN 0102-6445.

RUSS, Jacqueline. Pensamento ético contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2006.

SILVA, José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. 10. ed. revista. São Paulo: Malheiros Editores, 1995.

1 Graduado em Filosofia pela UFMA, Pós-graduado em Filosofia (Paradigmas da pesquisa em ética) pelo IESMA, Bacharel em Direito pela UFMA, Pós-graduado em Direito Constitucional pela rede LFG/UNIDERP – Universidade Anhanguera.