sábado, 22 de abril de 2017

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE SÓCRATES

Neste vídeo apresento a vocês as principais noções sobre a filosofia do
pensador grego Sócrates. Falaremos sobre o método dialético, a maiêutica
socrática e as contribuições deixadas por ele ao pensamento filosófico do ocidente.

terça-feira, 18 de abril de 2017

O DESPERTAR (excerto do livro 'SIDARTA', de HERMANN HESSE)

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O DESPERTAR

Enquanto Sidarta saía do bosque, onde permanecia o Buda, o Perfeito, onde também permanecia Govinda, sentia que deixara atrás, nesse aprazível lugar, toda a sua vida anterior, a qual daí por diante se separaria dele. Essa sensação que tomava conta de seu espírito preocupou-o durante a vagarosa caminhada. Sidarta refletia profundamente. Mergulhava até o fundo dessa emoção, assim como se mergulha na água, para alcançar o ponto onde repousam as causas. Pois lhe parecia que o verdadeiro pensar consistia no reconhecimento das causas e que, desse modo, o sentir se convertia em saber, o qual, em vez de dissipar-se, criaria forma concreta e irradiaria o seu teor.

Enquanto lentamente avançava pelo caminho, Sidarta refletia. Verificou que já não era adolescente, senão homem maduro. Constatou que uma coisa se distanciara dele, assim como a pele gasta se despega da serpente, e que ele cessara de sentir aquele desejo que o acompanhara através de toda a sua juventude, fazendo parte de sua personalidade: desejo de ter mestres e de receber ensinamentos. Sidarta acabava de abandonar o último mestre que surgira no curso de sua jornada; abandonara também a ele, o mestre supremo, o mais sábio de todos, o Santíssimo, o Buda. Fizera-se necessário distanciar-se dele. Já não fora possível aceitar os preceitos de Gotama.

Caminhando cada vez mais devagar, absorvido pelos pensamentos, Sidarta perguntou-se: "Mas que desejaste aprender de teus mestres e extrair de seus preceitos? Que será aquilo que eles, que tanto te ensinaram, não conseguiram propiciar-te?" E ele encontrou a resposta: "Era meu desejo conhecer o sentido e a essência do eu, para desprender-me dele e para superá-lo. Apenas logrei aludi-lo. Consegui sim, fugir dele e furtar-me às suas vistas. Realmente,nada neste mundo preocupou-me tanto quanto esse eu, esse mistério de estar vivo, de ser um indivíduo, de achar-me separado e isolado de todos os demais, de ser Sidarta! E de coisa alguma sei menos de que sei quanto a mim, Sidarta!"

Como que agarrado a esse raciocínio, o jovem interrompeu a lenta caminhada e de um pensamento nasceu outro, diferente: "O fato de eu não saber nada a meu próprio respeito, o fato de Sidarta ter permanecido para mim um ser estranho, desconhecido, tem sua explicação numa única causa: tive medo de mim; fugi de mim mesmo! Procurei o Átman, procurei o Brama, sempre disposto a fraturar e a pelar meu eu, a fim de encontrar em meu âmago ignoto o núcleo de todas as cascas, o Átman, a vida, o elemento divino, o Último. Mas enquanto fazia isso, perdi-me a mim mesmo."

Abrindo os olhos, Sidarta olhou ao seu redor, com o rosto iluminado por um sorriso. Perpassava-lhe o corpo, até os dedos dos pés, a profunda sensação de ter acordado de um sonho prolongado. Em seguida, reiniciando sua marcha, estugou o passo como quem sabe o que lhe convém realizar.

"Ah, não!" - pensou, aliviado, respirando a plenos pulmões - "daqui em diante não admitirei nunca mais que Sidarta me escape! Nunca mais meu pensar e minha vida terão por ponto de partida o Átman e o sofrimento do mundo! Cessarei de matar-me e de fraturar-me, com o intuito de achar um mistério atrás dos destroços. Não me deixarei orientar nem pelo Yoga-Veda, nem por ascetas, nem por doutrina alguma. Aprenderei por mim mesmo; serei meu próprio aluno; procurarei conhecer-me a mim e desvendar aquele segredo que é Sidarta!"

Olhou o mundo ao seu redor como se o enxergasse pela primeira vez. Belo era o mundo! Era variado, era surpreendente e enigmático! Lá, o azul; acolá, o amarelo! O céu a flutuar e o rio a correr, o mato a eriçar-se e a serra também! Tudo lindo, tudo misterioso e mágico! E no centro de tudo isso achava-se ele, Sidarta,a caminho de si próprio. Todas essas coisas, esse azuis, amarelos, rios, matos, penetravam nele pela primeira vez, através de seus olhos. Já não eram feitiço de Mara. Deixavam de ser o véu de Maia. Não havia mais aquela multiplicidade absurda, casual, do mundo dos fenômenos, desprezada pelos profundos pensadores brâmanes, que rejeitam a multiplicidade e esforçam-se por achar a unidade. O azul era azul, o rio era rio e, posto que nesse azul e nesse rio abrangidos por Sidarta, existisse, escondida, a ideia da unidade, o Divino, era, contudo, peculiar do Divino ser amarelo aí e azul lá, céu ali e mato acolá, e também ser Sidarta aqui, neste lugar. O sentido e a essência não se encontravam em algum lugar atrás das coisas, senão em seu interior, no íntimo de todas elas.

"Andei deveras surdo e insensível!" - disse de si para si, enquanto avançava rapidamente pela estrada. - "Quem se puser a decifrar um manuscrito, cujo significado lhe interessar, tampouco menosprezará os sinais e as letras, qualificando-os de ilusão, de causalidade, de invólucro vil, senão os lerá, estuda-los-á, ama-los-á, letra por letra. Eu, porém, que almejava ler o livro do mundo e o livro de minha própria essência, desprezei os sinais e as letras, em prol de um significado que lhes atribuía de antemão. Chamei de ilusão o mundo dos fenômenos. Considerei meus olhos e minha língua apenas aparentes, casuais, desprovidos de valor. Ora, isso passou. Despertei. Despertei de fato. Nasci somente hoje".

No curso desses pensamentos, Sidarta estacou mais uma vez, de repente, como se uma cobra lhe cruzasse o caminho. 

Pois, subitamente, outra coisa ainda se decantava em em seu espírito: ele, que realmente se parecia com uma pessoa que acabava de acordar ou de renascer, deveria iniciar nesse instante uma vida totalmente nova. Ao abandonar, na manhã desse mesmo dia, o bosque de Jetavana, o jardim daquele ser sublime, já estivera a ponto de despertar, de encontrar o caminho que o levasse ao próprio eu. Fora então sua intenção e se lhe afigurara perfeitamente natural regressar ao torrão natal, para junto do pai, depois de tantos anos de ascetismo. A essa altura, porém, nesse momento em que se detinha, como se se deparasse com uma serpente, impôs-se-lhe a percepção: "Já não sou aquele que tenho sido. Cessei de ser sacerdote, de ser brâmane. Que farei então lá em casa, ao lado de meu pai? Estudar? Sacrificar? Entregar-me à meditação? Tudo isso pertence ao passado, deixou de ladear meu caminho."

Sidarta parou. Quedou-se imóvel. Notando a que ponto iria sua solidão, sentiu, por um instante, pela duração de um respiro, que o coração se lhe gelava no peito, estremecendo de frio, como um bichinho, um pássaro, uma lebre. Durante muitos anos andara sem lar e, no entanto, não o percebera. Nesse momento, porém, dava-se conta da falta. Sempre, ainda, que se distanciasse de tudo, nas mais longínquas meditações, prosseguira sendo o filho de seu pai, fora brâmane, aristocrata, intelectual. Daí por diante, seria apenas Sidarta, o homem que acabava de acordar e nada mais. Com toda a sua força, aspirou o ar. Por um momento, tremeu de frio e de horror. Ninguém estaria tão solitário quanto ele. Não havia nenhum nobre que não fizesse parte dos nobres; nenhum artesão que não pertencesse à classe dos artesãos, encontrando agasalho entre seus semelhantes, vivendo a vida deles e falando a mesma língua; nenhum brâmane que não se incluísse no grupo de seus pares e convivesse com eles; nenhum asceta que não pudesse buscar abrigo entre os samanas. Nem sequer o mais isolado de todos os ermitões da selva era um homem só, não levava uma existência solitária, portanto, também ele pertencia a uma classe que lhe propiciava um lar. Govinda tornara-se monge, e milhares de monges eram seus irmãos, vestiam os mesmos trajes, tinham a mesma fé, falavam a mesma língua. E ele, Sidarta? Qual seria seu lugar? Participaria ele da existência de outrem? Haveria pessoas que falassem a mesma língua que ele?

Desse minuto, durante o qual o mundo que o cercava dissolvia-se em nada, durante o qual Sidarta estava só como um astro no firmamento, desse minuto transido de frio e de temores, emergiu Sidarta, mais eu do que nunca, mais firme, mais concentrado. Sentiu nitidamente: aquilo fora o derradeiro tremor do despartar; o último espasmo do parto. E logo tornou a caminhar, em marcha rápida, impaciente, afastando-se de sua terra, do lar paterno, de tudo quanto jazia atrás dele.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

A PERMANÊNCIA DE HANNAH ARENDT

Aos 110 anos de seu nascimento,os fundamentos lançados pela pensadora continuam férteis

MÁRCIO FERRARI | ED. 250 | DEZEMBRO 2016

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Filósofa política alemã de origem judaica, foi uma das mais influentes do século XX

Passados 110 anos de seu nascimento, completados em 14 de outubro, e 41 anos de sua morte, a pensadora alemã Hannah Arendt adquiriu status de autor clássico e desfruta de consenso em torno da importância de sua obra, segundo Celso Lafer, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP). Lafer foi aluno de Hannah Arendt em 1965 na Universidade Cornell (Estados Unidos), época em que, segundo ele, a pensadora era conhecida, mas controversa, entre outros motivos, por seu diagnóstico da atuação de Adolf Eichmann, alto funcionário da Alemanha nazista encarregado da deportação em massa de judeus para campos de concentração. Para Arendt, o militar era como a peça de uma engrenagem, que agia sem os benefícios da razão e do pensamento, um homem comum, o que a levou a cunhar a expressão pela qual é mais conhecida do grande público, “a banalidade do mal”.

Sua reflexão sobre o julgamento de Eichmann em Israel (1961) foi publicada primeiro como reportagem para a revista New Yorker e depois no livro Eichmann em Jerusalém (1963). Arendt foi acusada de minimizar ou relativizar a crueldade do nazismo, sem que se percebesse a coerência de uma obra que teve seu marco fundador no livro As origens do totalitarismo (1951), no qual descreveu os regimes nazista e stalinista como voltados para uma dominação absoluta e que não poderiam ser estudados com referências do passado, dadas suas características inéditas.

É essa coerência, de acordo com Lafer, que hoje se reconhece e permite que sua obra produza reflexões em artigos e livros publicados anualmente. O ex-aluno recorre às condições reunidas pelo cientista político italiano Norberto Bobbio (1909-2004): sua obra é uma interpretação esclarecedora do século XX, instiga contínuas leituras e releituras, e seus conceitos se mantêm válidos para entender o mundo atual. “O que ela escreveu continua reverberando nos problemas com os quais nos defrontamos”, afirma Lafer, ex-presidente da FAPESP.

Os escritos de Arendt hoje não se restringem aos estudos exclusivos sobre teoria política – que a pensadora reivindicava como sua área de atuação, rejeitando o epíteto de filósofa –, mas se tornam ferramentas para pensar a educação (ver Pesquisa FAPESP nº 247), a condição da mulher, as relações internacionais ou as instituições norte-americanas (a pensadora viveu nos Estados Unidos de 1941 até sua morte, em 1975). “O desafio que Hannah Arendt se impôs foi como lidar com um mundo que perdeu os andaimes conceituais da tradição, sem recorrer ao corrimão de conceitos corroídos pela realidade”, diz Lafer. “Vem daí a importância da atividade do julgar, em toda sua complexidade, atentando para as singularidades de cada caso, sem subsumi-los a categorias universais.”

No lugar de conceitos utilizados de antemão, Hannah Arendt propôs a experiência. Nesse aspecto, foi uma autora privilegiada para a abordagem dos direitos humanos. A pensadora viveu a situação de apátrida desde que, por ser judia, foi perseguida, presa e destituída da nacionalidade alemã pelo regime nazista, em 1937, até conseguir a nacionalidade norte-americana, em 1951. Não é por outro motivo que o Centro de Estudos Hannah Arendt, ligado à Faculdade de Direito da USP, escolheu, como tema do colóquio dedicado a marcar os 110 anos do nascimento da pensadora, o tema A questão das migrações e os direitos humanos.

“Ela era muito crítica em relação aos direitos humanos estabelecidos pela Revolução Francesa”, diz Laura Mascaro, pesquisadora e coordenadora do centro, ao lado de Claudia Perrone-Moisés, professora da Faculdade de Direito da USP. “Para ela, esse conceito estaria vinculado ao pertencimento a um Estado e cessaria na medida em que estrangeiros não fossem mais úteis ao país em que se encontravam, o que levaria ao acolhimento de imigrantes apenas de forma precária.” Surge daí o conceito do “direito a ter direitos”, próprio de toda a humanidade e que deveria ser o fundamento de todo o direito internacional.

Laura é, com os pesquisadores Luciana Garcia de Oliveira e Thiago Dias da Silva, a responsável pela tradução dos artigos reunidos em Escritos judaicos, lançado este ano pela primeira vez no Brasil pela editora Manole. São ensaios a respeito de “uma das poucas causas em que ela se engajou, a construção da Palestina como um Estado federado binacional”, e relacionados à obtenção de direitos pelo povo judeu, destituído de pátria ao longo de séculos.

Segundo Laura, entre outros interesses atuais do texto, Hannah Arendt previa que, sem diálogos e acordos entre judeus e palestinos, além dos países vizinhos, Israel estaria destinado a se tornar um país em permanente estado de guerra. Sua proposta era a criação de um Estado binacional judeu-palestino estruturalmente diferente dos Estados-nações europeus. Seria uma democracia fundada em governos locais autônomos formados por judeus e árabes. As duas partes se organizariam para discutir os problemas comuns, em uma federação vertical de diversos níveis de conselhos.

Mundo compartilhado
A ideia da organização política por meio de um mundo compartilhado era cara a Hannah Arendt e fazia parte da preocupação com a necessidade de ampliar a democracia dos Estados modernos. O principal fator para isso seria a ação política de todo ser humano. “A ação política transborda a ideia de democracia representativa por não se restringir ao campo das instâncias definidas pelo direito”, esclarece André Duarte, docente do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), estudioso da obra da alemã.

De acordo com o pesquisador, o estudo da pensadora sobre o modus operandi do totalitarismo a fez detectar o estabelecimento da lógica de uma ideia – no caso do nazismo, a superioridade ariana. Essa lógica passa a ter condição de premissa, o que leva o Estado a prescindir de outros fundamentos, e isso produz solidão individualista e desconfiança geral na sociedade. “Um Estado não vinculado a fundamentos morais demandaria os espaços de compartilhamento, no qual a ação política constituiria sua própria essência”, afirma Duarte. Nem mesmo a liberdade seria uma finalidade em si, mas uma condição para a ação política.

Adriano Correia, professor de ética e filosofia política da Universidade Federal de Goiás (UFG), lembra que, para Arendt, a ação política só se exerce por quem ama o mundo. “Uma política que não é amada pelos indivíduos não abre espaço para a participação”, explica. Correia é autor da revisão técnica da nova edição (a 13ª) de A condição humana (1958), lançada em outubro pelo selo Forense Universitária do Grupo Editorial Nacional (Gen), com introdução da cientista política inglesa Margaret Canovan, hoje aposentada. Segundo ele, um dos aspectos fundamentais do livro é a apresentação da crítica da autora às democracias modernas por terem promovido o primado da economia sobre o campo da política. Embora Hannah Arendt tenha escrito o livro no período da Guerra Fria, observa Correia, ele tem sido mais discutido após a queda do Muro de Berlim (1989), em grande medida devido ao poder alcançado pelo capital internacional.

A filósofa Yara Frateschi, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), considera o pensamento político de Arendt continuamente fértil “porque é muito crítico em relação ao funcionamento da sociedade, mas ao mesmo tempo interessado em seus potenciais”. De acordo com a pesquisadora, a pensadora defende que é preciso contrabalançar os conceitos universalistas com as diversidades, os contextos e as especificidades. “Para ela, o universalismo por si só poderia se tornar um fantasma que perpetuaria injustiças”, conta.

Segundo Yara, Arendt era uma entusiasta da desobediência civil e via os períodos revolucionários como propícios a experiências políticas interessantes, mas rejeitava absolutamente a violência política por ser “a destruição de pontes que propiciam a construção de acordos e leis para uma vida comum – toda violência levaria ao perigo da dissolução absoluta do indivíduo, como no totalitarismo”. 

Fonte: Revista Pesquisa FAPESP edição online