Aos 110 anos de seu nascimento,os fundamentos lançados pela pensadora continuam férteis
MÁRCIO FERRARI |
ED. 250 | DEZEMBRO 2016
Filósofa política alemã de origem judaica, foi uma das mais influentes do século XX |
Passados 110 anos de seu nascimento, completados em 14 de outubro, e
41 anos de sua morte, a pensadora alemã Hannah Arendt adquiriu status
de autor clássico e desfruta de consenso em torno da importância de sua
obra, segundo Celso Lafer, professor emérito da Universidade de São
Paulo (USP). Lafer foi aluno de Hannah Arendt em 1965 na Universidade
Cornell (Estados Unidos), época em que, segundo ele, a pensadora era
conhecida, mas controversa, entre outros motivos, por seu diagnóstico da
atuação de Adolf Eichmann, alto funcionário da Alemanha nazista
encarregado da deportação em massa de judeus para campos de
concentração. Para Arendt, o militar era como a peça de uma engrenagem,
que agia sem os benefícios da razão e do pensamento, um homem comum, o
que a levou a cunhar a expressão pela qual é mais conhecida do grande
público, “a banalidade do mal”.
Sua reflexão sobre o julgamento de Eichmann em Israel (1961) foi publicada primeiro como reportagem para a revista New Yorker e depois no livro Eichmann em Jerusalém
(1963). Arendt foi acusada de minimizar ou relativizar a crueldade do
nazismo, sem que se percebesse a coerência de uma obra que teve seu
marco fundador no livro As origens do totalitarismo (1951), no
qual descreveu os regimes nazista e stalinista como voltados para uma
dominação absoluta e que não poderiam ser estudados com referências do
passado, dadas suas características inéditas.
É essa coerência, de acordo com Lafer, que hoje se reconhece e
permite que sua obra produza reflexões em artigos e livros publicados
anualmente. O ex-aluno recorre às condições reunidas pelo cientista
político italiano Norberto Bobbio (1909-2004): sua obra é uma
interpretação esclarecedora do século XX, instiga contínuas leituras e
releituras, e seus conceitos se mantêm válidos para entender o mundo
atual. “O que ela escreveu continua reverberando nos problemas com os
quais nos defrontamos”, afirma Lafer, ex-presidente da FAPESP.
Os escritos de Arendt hoje não se restringem aos estudos exclusivos
sobre teoria política – que a pensadora reivindicava como sua área de
atuação, rejeitando o epíteto de filósofa –, mas se tornam ferramentas
para pensar a educação (ver Pesquisa FAPESP nº 247),
a condição da mulher, as relações internacionais ou as instituições
norte-americanas (a pensadora viveu nos Estados Unidos de 1941 até sua
morte, em 1975). “O desafio que Hannah Arendt se impôs foi como lidar
com um mundo que perdeu os andaimes conceituais da tradição, sem
recorrer ao corrimão de conceitos corroídos pela realidade”, diz Lafer.
“Vem daí a importância da atividade do julgar, em toda sua complexidade,
atentando para as singularidades de cada caso, sem subsumi-los a
categorias universais.”
No lugar de conceitos utilizados de antemão, Hannah Arendt propôs a
experiência. Nesse aspecto, foi uma autora privilegiada para a abordagem
dos direitos humanos. A pensadora viveu a situação de apátrida desde
que, por ser judia, foi perseguida, presa e destituída da nacionalidade
alemã pelo regime nazista, em 1937, até conseguir a nacionalidade
norte-americana, em 1951. Não é por outro motivo que o Centro de Estudos
Hannah Arendt, ligado à Faculdade de Direito da USP, escolheu, como
tema do colóquio dedicado a marcar os 110 anos do nascimento da
pensadora, o tema A questão das migrações e os direitos humanos.
“Ela era muito crítica em relação aos direitos humanos estabelecidos
pela Revolução Francesa”, diz Laura Mascaro, pesquisadora e coordenadora
do centro, ao lado de Claudia Perrone-Moisés, professora da Faculdade
de Direito da USP. “Para ela, esse conceito estaria vinculado ao
pertencimento a um Estado e cessaria na medida em que estrangeiros não
fossem mais úteis ao país em que se encontravam, o que levaria ao
acolhimento de imigrantes apenas de forma precária.” Surge daí o
conceito do “direito a ter direitos”, próprio de toda a humanidade e que
deveria ser o fundamento de todo o direito internacional.
Laura é, com os pesquisadores Luciana Garcia de Oliveira e Thiago
Dias da Silva, a responsável pela tradução dos artigos reunidos em Escritos judaicos,
lançado este ano pela primeira vez no Brasil pela editora Manole. São
ensaios a respeito de “uma das poucas causas em que ela se engajou, a
construção da Palestina como um Estado federado binacional”, e
relacionados à obtenção de direitos pelo povo judeu, destituído de
pátria ao longo de séculos.
Segundo Laura, entre outros interesses atuais do texto, Hannah Arendt
previa que, sem diálogos e acordos entre judeus e palestinos, além dos
países vizinhos, Israel estaria destinado a se tornar um país em
permanente estado de guerra. Sua proposta era a criação de um Estado
binacional judeu-palestino estruturalmente diferente dos Estados-nações
europeus. Seria uma democracia fundada em governos locais autônomos
formados por judeus e árabes. As duas partes se organizariam para
discutir os problemas comuns, em uma federação vertical de diversos
níveis de conselhos.
Mundo compartilhado
A ideia da organização política por meio de um mundo compartilhado era cara a Hannah Arendt e fazia parte da preocupação com a necessidade de ampliar a democracia dos Estados modernos. O principal fator para isso seria a ação política de todo ser humano. “A ação política transborda a ideia de democracia representativa por não se restringir ao campo das instâncias definidas pelo direito”, esclarece André Duarte, docente do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), estudioso da obra da alemã.
A ideia da organização política por meio de um mundo compartilhado era cara a Hannah Arendt e fazia parte da preocupação com a necessidade de ampliar a democracia dos Estados modernos. O principal fator para isso seria a ação política de todo ser humano. “A ação política transborda a ideia de democracia representativa por não se restringir ao campo das instâncias definidas pelo direito”, esclarece André Duarte, docente do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), estudioso da obra da alemã.
De acordo com o pesquisador, o estudo da pensadora sobre o modus operandi do
totalitarismo a fez detectar o estabelecimento da lógica de uma ideia –
no caso do nazismo, a superioridade ariana. Essa lógica passa a ter
condição de premissa, o que leva o Estado a prescindir de outros
fundamentos, e isso produz solidão individualista e desconfiança geral
na sociedade. “Um Estado não vinculado a fundamentos morais demandaria
os espaços de compartilhamento, no qual a ação política constituiria sua
própria essência”, afirma Duarte. Nem mesmo a liberdade seria uma
finalidade em si, mas uma condição para a ação política.
Adriano Correia, professor de ética e filosofia política da
Universidade Federal de Goiás (UFG), lembra que, para Arendt, a ação
política só se exerce por quem ama o mundo. “Uma política que não é
amada pelos indivíduos não abre espaço para a participação”, explica.
Correia é autor da revisão técnica da nova edição (a 13ª) de A condição humana
(1958), lançada em outubro pelo selo Forense Universitária do Grupo
Editorial Nacional (Gen), com introdução da cientista política inglesa
Margaret Canovan, hoje aposentada. Segundo ele, um dos aspectos
fundamentais do livro é a apresentação da crítica da autora às
democracias modernas por terem promovido o primado da economia sobre o
campo da política. Embora Hannah Arendt tenha escrito o livro no período
da Guerra Fria, observa Correia, ele tem sido mais discutido após a
queda do Muro de Berlim (1989), em grande medida devido ao poder
alcançado pelo capital internacional.
A filósofa Yara Frateschi, do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), considera o
pensamento político de Arendt continuamente fértil “porque é muito
crítico em relação ao funcionamento da sociedade, mas ao mesmo tempo
interessado em seus potenciais”. De acordo com a pesquisadora, a
pensadora defende que é preciso contrabalançar os conceitos
universalistas com as diversidades, os contextos e as especificidades.
“Para ela, o universalismo por si só poderia se tornar um fantasma que
perpetuaria injustiças”, conta.
Segundo Yara, Arendt era uma entusiasta da desobediência civil e via
os períodos revolucionários como propícios a experiências políticas
interessantes, mas rejeitava absolutamente a violência política por ser
“a destruição de pontes que propiciam a construção de acordos e leis
para uma vida comum – toda violência levaria ao perigo da dissolução
absoluta do indivíduo, como no totalitarismo”.
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP edição online
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