sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Antirreducionismo e Normatividade na Teoria Pura do Direito: Análise a Partir do Texto de Andrei Marmor

Andrei Marmor (1959 - )



O Prof. Andrei Marmor assina o verbete dedicado à Teoria Pura do Direito na Enciclopédia Stanford de Filosofia (acessível em inglês aqui). O texto é visivelmente uma adaptação do capítulo sobre o assunto em seu Philosophy of Law e ainda carrega fortes traços do propósito com que foi escrito para aquela obra. Ali Marmor queria demonstrar o fracasso da teoria de Kelsen em fundar uma teoria completamente antirreducionista do direito e queria usar este exemplo de fracasso em favor da tese do fato social, que prevalece pelo menos desde Hart como uma das pedras de toque do positivismo jurídico anglofônico. Mais ainda, Marmor queria pavimentar o caminho para sua conclusão de que a única explicação do direito que consegue ser positivista sem perder de vista a normatividade é uma que associe o direito ao conceito de convenção social, daí a necessidade de mostrar o fracasso de Kelsen em compor positivismo e normatividade em bases exclusivamente não redutivas, isto é, sem apelar para nenhum tipo de fato ou prática social. Para isso, Marmor enfatiza o que acredita ser a tensão irreconciliável no interior da teoria kelseniana do direito, a saber, a tensão entre, de um lado, uma teoria não reducionista e relativista que funda o direito em um ponto de vista que só pode ser apreendido a partir da norma fundamental e, de outro lado, uma teoria positivista que pretende atribuir ao direito normatividade sobre a conduta individual. Marmor duvida que se possa elaborar uma explicação não reducionista da normatividade do direito. A tensão que Marmor aponta na teoria de Kelsen poderia ser configurada da maneira seguinte:



(a)    Tese antirreducionista que leva ao relativismo: Recusando-se a fundar as normas em fatos de qualquer natureza, Kelsen funda normas apenas em outras normas, criando no início da cadeia de fundamentação a norma fundamental pressuposta. Como tal norma fundamental, contudo, depende apenas da aceitação de certo ponto de vista, o direito, bem como a moral e a religião, se torna um sistema não constringente, que poderia ser recusado no todo por quem quer que não aceitasse o ponto de vista de sua normatividade própria, como no famoso exemplo do anarquista.

(b)   Tese da normatividade que recusa o relativismo: Por outro lado, Kelsen considera que a normatividade do direito consiste no fato de que, se uma norma jurídica ordena fazer certa coisa, isso constitui uma razão para fazer esta coisa. Esta característica seria mais simples de ser explicada se cada norma jurídica trouxesse consigo um peso moral, mas este peso moral é um dos elementos que Kelsen recusa associar com o direito. Assim, Kelsen teria que indicar uma fonte não moral da normatividade do direito de modo não relativista, isto é, tornando-a normatividade obrigatória para todos os agentes independentemente de assumirem certo ponto de vista sobre o direito.

(c)    Impossibilidade de equacionar as duas teses: Para Marmor, uma teoria que afasta a norma jurídica da moral dá ao direito um déficit de normatividade que só poderia ser compensado com sua associação com fatos sociais que constituíssem boas razões para o destinatário se comportar em conformidade com o que as normas jurídicas lhe ordenam; se, no entanto, esta teoria também recusa a associação das normas jurídicas com fatos sociais capazes de fornecer estas boas razões e se recolhe a uma posição relativista em que a norma jurídica só tem normatividade para quem aceite a norma fundamental e, assim, o ponto de vista particular a partir do qual esta normatividade se impõe, cria-se uma normatividade contingente e facultativa, deficiente e incapaz de explicar o fenômeno jurídico.

O argumento tem uma relação mais que evidente com a tese de Marmor de que apenas a interpretação das normas jurídicas em termos de certo tipo de fato social, a saber, as convenções sociais, é capaz de conferir a elas uma normatividade que não precisa apelar para a associação com a moral. Portanto, nenhuma teoria positivista do direito, que faça a separação estrita entre direito e moral, é capaz de compensar o déficit de normatividade que resulta desta separação a não ser percebendo que o modo como as normas jurídicas criam razões para agir que afetam os destinatários pode ser explicado com ajuda da noção de convenção social. A convenção social é uma regra cuja validade consiste em sua eficácia, sendo esta eficácia generalizada o elemento que gera para o agente razões para se comportar em conformidade com ela. Uma vez que, para Marmor, esta é a única possível explicação positivista da normatividade do direito, se torna urgente demonstrar que a saída de Kelsen não é viável.

Assim, a crítica de Marmor a Kelsen serve para pavimentar o caminho rumo à conclusão final da teoria de Marmor. Contudo, saber disso apenas ajuda a entender a crítica, mas não a refuta. É legítimo que um autor critique outro para mostrar por que sua teoria é mais atraente que a dele, bem como é legítimo também que use a teoria de outro autor para mostrar o fracasso necessário de qualquer tentativa de seguir por um caminho diferente do que quer nos indicar depois. A questão é que, para isso, tem que provar pelo menos três coisas: (1) que fez uma descrição adequada das teses da teoria criticada; (2) que estas teses apontam para uma dificuldade de fato insuperável; e (3) que esta dificuldade insuperável surgiria também em qualquer outra teoria que adotasse teses semelhantes à da teoria criticada. A meu ver, Marmor não foi bem sucedido em nenhuma destas três tarefas. Mostrarei abaixo por que penso assim:

(1)      Deixando de lado outras imprecisões da descrição que Marmor fornece da teoria de Kelsen, há um ponto crucial da teoria que foi omitido e que prejudica a caracterização daquela suposta tensão irreconciliável entre relativismo e normatividade, o qual seria o pano de fundo cético-relativista no qual a teoria da normatividade do direito se elabora em Kelsen.

Marmor desconsidera que para Kelsen a razão tem apenas papel especulativo, e não prático, ou seja, ela serve para conhecer o que é, nunca para orientar sobre o que deve ser. Isto é assim não porque não seja possível extrair de nenhum estado de coisas razões para agir desta ou daquela forma, mas precisamente pelo contrário, porque é possível extrair múltiplas razões para agir a depender do ponto de vista, dos valores e da interpretação com que se aborde o estado de coisas em questão. E tais razões múltiplas para agir são igualmente fundadas em valores, e não na razão, de modo que é impossível fazer uma escolha racional entre elas. Portanto, Kelsen jamais atribuiria ao direito uma normatividade que dependesse das razões que o agente poderia extrair da circunstância de que certa norma está vigente e lhe ordena fazer certa coisa.

(2)      Outro ponto negligenciado por Marmor é o papel da coerção física como elemento capaz de romper o círculo entre relativismo e normatividade. Isso tornaria o problema apontado por Marmor na teoria de Kelsen um problema real, mas superável uma vez que se recorra ao elemento da sanção. A normatividade do direito não está na norma de conduta, e sim na norma de sanção. É a coerção física, e sua capacidade quase universal de motivar a conduta, que torna possível a união improvável entre relativismo antirreducionista e normatividade.

O direito, então, é, sim, uma ordem cuja normatividade só pode ser reconhecida por aquele que, aceitando a norma fundamental, já adota desde o princípio o ponto de vista da obrigatoriedade do direito. Neste sentido, a abordagem de Kelsen é, de fato, relativista. Mas isso não torna o acatamento ao direito facultativo. O que é facultativo não é a conduta prática, e sim certa perspectiva teórica. É facultativo adotar o ponto de vista para o qual o direito é uma ordem obrigatória de conduta. Mas não é facultativo obedecer à norma jurídica, porque esta faz sua desobediência ser seguida de uma sanção. Esta sanção consiste num ato de coerção física que tem força motivadora quer para quem adota o ponto de vista da normatividade do direito, quer para quem se recusa a adotá-lo. Isso quer dizer que mesmo o anarquista, que, do ponto de vista teórico, se recusa a atribuir qualquer normatividade que seja ao direito, terá, do ponto de vista prático, uma razão para agir em conformidade com esta ordem cuja normatividade ele recusa, qual seja, a razão de evitar que se aplique sobre ele um ato de coerção. Daí se ressalta que Marmor cobra de Kelsen não alguma explicação da normatividade, mas uma que funde esta normatividade noutro tipo de razão de agir que não a sanção.

Isto é compreensível. Pesa sobre Marmor a influência da crítica de Hart a toda teoria que entenda as normas jurídicas como comandos com base em ameaças. Ora, da maneira como esta crítica foi assimilada pela posteridade de Hart, isso quer dizer que obrigação não pode ser explicada em termos de coação, isto é, dever obedecer não é o mesmo que ser forçado a obedecer, de modo que qualquer teoria que queira atribuir ao direito verdadeira normatividade precisa mostrar não apenas que o direito pode coagir, mas também que pode obrigar. Assim como seu mentor Joseph Raz, Marmor assimilou muito bem esta crítica, entendendo a normatividade do direito como normatividade não coativa. Contudo, se normatividade for entendida nestes termos, então, para Kelsen, não há qualquer normatividade não apenas no direito, mas também na moral, na religião etc. A normatividade em Kelsen é necessariamente coativa, não existe obrigação sem sanção, de modo que ao procurar em Kelsen uma explicação da normatividade do direito em termos mais do que coativos, Marmor está perseguindo apenas um fantasma. Mais do que isso, desta maneira também ficaria claro que o verdadeiro ponto de divergência entre Marmor e Kelsen não está no fato de que, ao contrário de Kelsen, Marmor considera impossível uma explicação antirreducionista da normatividade do direito, e sim que, ao contrário de Kelsen, Marmor considera necessária uma explicação da normatividade do direito que não recorra ao elemento da coerção.

(3)      Se estivermos certos nos dois pontos anteriores, então, o problema da união entre relativismo e normatividade em Kelsen ou tem solução, ou não é um problema. Se a normatividade puder ser coativa, então, a sanção é o elemento que dá ao direito normatividade prática, sem comprometer o relativismo teórico de sua obrigatoriedade. Neste caso, o problema tem solução. Se a normatividade, por outro lado, não puder ser coativa, se tiver que ser uma normatividade semelhante à que normalmente é atribuída à moral, então, o problema sequer existe na Teoria Pura do Direito, porque Kelsen jamais se comprometeu com atribuir ao direito tal normatividade. Marmor, assumindo a crítica de Hart à concepção coativa de normatividade, recusará implicitamente ver na sanção o elemento informador da normatividade do direito. Este é o ponto de vista de Marmor sobre Kelsen, que ele se propôs algo de que sua teoria não podia dar conta. Qual seria, contudo, o ponto de vista de Kelsen sobre Marmor?

Em primeiro lugar, em conformidade com o ponto (1), Kelsen reputaria como ingênua a abordagem segundo a qual o direito pode ter algum tipo de normatividade que se imponha a todos independentemente de seus respectivos pontos de vista. A ideia de que certos fatos sociais (como as convenções, em que Marmor aposta todas as fichas) são tais que constituem para todos os sujeitos razões para agir de determinada forma ignora que nenhum fato em si mesmo pode ser razão para agir, mas apenas quando interpretado segundo algum esquema de valor. Por sua vez, esquemas de valor são múltiplos e facultativos, não havendo qualquer esquema de valor que seja adotado por todos os indivíduos nem que se possa afirmar como superior a todos os esquemas de valor alternativos. Uma teoria que acredita que certos fatos sociais podem ser razões para agir que afetem todos os agentes ou considera falsamente que seja possível que fatos em si mesmos, sem valores, constituam razões para agir (e neste caso comete um erro lógico) ou considera falsamente que todos os agentes interpretam os mesmos fatos segundo os mesmos esquemas de valor (e neste caso comete um erro empírico). Kelsen duvidaria, portanto, da viabilidade do tipo de normatividade com que Marmor está se comprometendo.

Em segundo lugar, em conformidade com o ponto (2), Kelsen apontaria a impossibilidade de unir o relativismo com a normatividade do direito não como um problema real de sua teoria, mas como o tipo de pseudoproblema que emerge toda vez que, como Marmor, se queira atribuir ao direito uma normatividade que esteja para além da coerção. Kelsen afirmaria que a coerção física organizada é a técnica por excelência de controle da conduta desenvolvida pelo direito e que, não fosse por ela, outras ordens normativas, como a moral ou os costumes, seriam mais eficazes que o direito. Para ele, a explicação da conduta de um agente que se conforma com as normas jurídicas como levando em conta outras razões que não a possibilidade de aplicação da sanção contra si seria até possível, mas seria a descrição de uma conduta que poderia ter acontecido por qualquer outra razão que não o direito. A conformação da conduta mediante a ameaça da sanção é a modalidade de comportamento especificamente jurídica. Qualquer descrição da conduta dos destinatários do direito que não leve em conta o papel central que as sanções desempenham como razões é deficiente e idealizada.

Neste caso, a crítica de Marmor ilustraria o tipo de ponto de vista ingênuo e deficiente que resulta de uma teoria reducionista do direito. Por um lado, embora Marmor não seja um imperativista clássico, sua abordagem teria o defeito do reducionismo empírico, típico do positivismo jurídico anterior a Kelsen, de supor que fatos podem gerar normas sem mediação, violando a separação entre ser e dever ser. Por outro lado, embora Marmor não associe o direito com a moral,  sua abordagem teria o defeito do reducionismo normativo, típico do jusnaturalismo tradicional, de exigir do direito um tipo de normatividade conectado a algum elemento intrínseco das próprias normas, e não ao elemento extrínseco da sanção. Contra ambos os erros, Kelsen recomendaria o mesmo remédio neokantiano de uma teoria pura, capaz de extrair apenas de elementos jurídicos a justificação da normatividade do direito.

Fonte: Blog Filósofo Grego

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

"O Solitário" (Rainer Maria Rilke)


            Rainer Maria Rilke


O Solitário

Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda
onde não há mais nada ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, só, no imenso mar
das coisas, e uma luz depois do escuro,
um rosto extremo do desejo obscuro
exilado em um nunca-apaziguar.

ainda um rosto de pedra, que só sente
a gravidade interna, de tão denso:
as distâncias que o extinguem lentamente
tornam seu júbilo ainda mais intenso.

(tradução: Augusto de Campos)

domingo, 25 de novembro de 2012

Noam Chomsky: Como é tentar sobreviver na maior prisão a céu aberto do mundo


Noam Chomsky visitou a Faixa de Gaza  de 25 a 30 de outubro

Impressões de uma visita a Gaza

Na Faixa de Gaza, a área de maior densidade populacional do planeta, um milhão e meio de pessoas estão constantemente sujeitas a eventuais e amiúde ferozes e arbitrárias punições, cujo propósito não é senão humilhar e rebaixar a população palestina e ulteriormente garantir tanto o esmagamento das esperanças de um futuro decente quanto a nulidade do vasto apoio internacional para um acordo diplomático que sancione o direito a essas esperanças. O artigo é de Noam Chomsky.

Noam Chomsky, em Carta Maior

Uma noite encarcerado é o bastante para que se conheça o sabor de estar sob total controle de uma força externa. E dificilmente demora mais de um dia em Gaza para que se comece a perceber como é tentar sobreviver na maior prisão a céu aberto do mundo. Na Faixa de Gaza, a área de maior densidade populacional do planeta, um milhão e meio de pessoas estão constantemente sujeitas a eventuais e amiúde ferozes e arbitrárias punições, cujo propósito não é senão humilhar e rebaixar a população palestina e ulteriormente garantir tanto o esmagamento das esperanças de um futuro decente quanto a nulidade do vasto apoio internacional para um acordo diplomático que sancione o direito a essas esperanças.

O comprometimento a isso por parte das lideranças políticas israelenses foi ilustrado expressivamente nos últimos dias, quando eles advertiram que ‘enlouqueceriam’ se os direitos palestinos fossem reconhecidos, mesmo que limitadamente pela ONU. Essa postura não é nova. A ameaça de ‘enlouquecer’ (‘nishtagea’) tem raízes profundas, lá nos governos trabalhistas dos anos 1950 e em seus respectivos “complexos de Sansão”: “se nos contrariarem, implodimos as paredes do Templo à nossa volta”. À época, essa ameaça era inútil; hoje não é mais.

A humilhação deliberada também não é nova, apesar de adquirir novas formas constantemente. Há trinta anos, líderes políticos, inclusive alguns dos mais notórios ‘falcões’ (sionistas mais conservadores), apresentaram ao primeiro-ministro um relato detalhado de como colonos regularmente violavam palestinos da forma mais vil e com total impunidade. A proeminente analista Yoram Peri notou com repugnância que a tarefa do exército não é a de defender o Estado, mas de “acabar com os direitos de pessoas inocentes somente porque são araboushim (uma ofensa racial) vivendo numa terra que Deus nos prometeu”.

O povo de Gaza foi selecionado para punições particularmente cruéis. É quase miraculoso que eles suportem tal existência. Raja Shehadeh descreveu como eles o fazem num eloquente livro de memórias, A Terceira Via, escrito há 30 anos. O texto relata seu trabalho como advogado empenhado na tarefa de tentar proteger direitos elementares num sistema legal feito para ser insuficiente, além de sua experiência como um resistente que vê sua casa tornar-se uma prisão por ocupantes violentos e nada pode fazer além de “aguentar”.

A situação piorou muito desde o texto de Shehadeh. Os acordos de Oslo, celebrados com muita cerimônia em 1993, determinaram que Gaza e a Cisjordânia eram uma só entidade territorial. Os EUA e Israel puseram sua estratégia de separá-los para funcionar já naquela época, de forma a barrar um acordo diplomático e punir os araboushim em ambos os territórios.

A punição aos moradores de Gaza tornou-se ainda mais severa em janeiro de 2006, quando eles cometeram um crime hediondo: votaram no “lado errado” na primeira eleição do mundo árabe, elegendo o Hamas. Demonstrando seu amor pela democracia, os EUA e Israel, apoiados pela tímida União Europeia, impuseram um sítio brutal e ataques militares ostensivos logo de cara. Os norte-americanos também imediatamente recorreram ao procedimento operacional padrão para momentos em que populações desobedientes elegem o governo errado: prepararam um golpe militar para restabelecer a ordem.

O povo de Gaza cometeu um crime ainda pior um ano depois. Barraram a tentativa de golpe, levando a uma forte escalada do sítio e das ofensivas militares. Isso culminou, no inverno de 2008-9, na Operação Chumbo Fundido, um dos mais covardes e perversos exercícios de poder militar na memória recente, na qual uma população civil sem defesa e enclausurada ficou sujeita à implacável ofensiva de um dos mais avançados sistemas militares do mundo, que conta com o apoio das armas e da diplomacia estadunidense. Um testemunho inesquecível do morticínio – infanticídio, nas palavras deles – é o livro Eyes in Gaza, de dois corajosos doutores noruegueses, Mads Gilbert e Erik Fosse, que à época trabalhavam no principal hospital de Gaza.

O Presidente Obama não foi capaz de dizer uma palavra além de reiterar sua sincera simpatia pelas crianças sob ataque – na cidade israelense de Sderot. A investida minuciosamente planejada foi levada a cabo justamente antes do empossamento de Barack, assim ele pôde dizer que era hora de vislumbrar o futuro, não o passado.

Obviamente, havia pretextos – sempre há. O de costume, apresentado assim que necessário, é a “segurança”: neste caso, os foguetes caseiros de Gaza. Como de costume, também, o pretexto carecia de credibilidade. Em 2008, estabeleceu-se uma trégua entre Israel e o Hamas. E o governo israelense reconheceu formalmente que o Hamas cumpriu a trégua. Nenhuma bomba do Hamas foi disparada até que Israel rompeu a trégua encoberto pelas eleições presidenciais norte-americanas de 4 de novembro de 2008, invadindo Gaza por motivos ridículos e matando meia-dúzia de membros do Hamas. O governo de Israel foi aconselhado por suas mais altas autoridades de inteligência de que a trégua poderia ser retomada por suavizar o bloqueio criminoso e acabar com as ofensivas militares. Mas o governo de Ehud Olmert, por reputação um “pombo” (termo para os sionistas “moderados”), preferiu rejeitar estas opções e lançar mão de sua enorme vantagem no quesito violência: a Operação Chumbo Fundido.

O modelo de bombardeio da Operação Chumbo Fundido foi analisado cuidadosamente pelo respeitado defensor dos direitos humanos Raji Sourani, natural de Gaza. Ele aponta que o bombardeio concentrou-se ao norte, mirando civis indefesos nas áreas de maior densidade populacional, sem qualquer desculpa do ponto de vista militar. O objetivo, ele sugere, talvez tenha sido mover a população intimidada para o sul, próximo à fronteira com o Egito. Mas, apesar da avalanche terrorista, os resistentes não se moveram.

Outro objetivo provavelmente era movê-los para lá da fronteira. Desde o início da colonização sionista dizia-se que os árabes não tinham motivo para estar na Palestina. Eles podiam continuar felizes noutro lugar e deveriam ser “transferidos” de maneira educada, sugeriam os pombos. Esta, que claramente não é uma preocupação menor do governo egípcio, talvez seja a razão pela qual o Egito não abre sua fronteira seja para civis, seja para os suprimentos dos quais o país necessita desesperadamente.

Sourani e outras fontes dignas de reconhecimento notam que a disciplina dos resistentes oculta um barril de pólvora que pode explodir inesperadamente, como aconteceu na primeira Intifada em Gaza em 1989, após anos de repressão indigna de qualquer interesse ou nota.

Só para mencionar um dos inumeráveis casos, pouco antes da eclosão da Intifada, uma menina palestina, Intissar al-Atar, foi assassinada no pátio da escola pelo morador de um assentamento judeu próximo. Ele era um dos milhares de colonos israelenses trazidos para Gaza, o que violava leis internacionais, sob proteção da enorme presença de um exército que assumiu o controle das terras e da escassa água da Faixa.

O assassino da estudante, Shimon Yifrah, foi preso. No entanto, foi solto rapidamente quando o tribunal determinou que “o delito não foi severo o suficiente” para justificar a detenção. O juiz comentou que Yifrah só pretendia assustar a garota por atirar na direção dela, não matá-la, assim, “o caso não é o de um criminoso que deve ser punido com um aprisionamento”. Yifrah recebeu uma pena suspensa de 7 meses, o que levou os outros colonos presentes à sala de tribunal a dançar e cantar. E o silêncio, pra variar, reinou. Afinal, a rotina é essa.

Assim que Yifrah foi libertado, a imprensa israelense reportou que uma patrulha armada atirou no pátio de um colégio para meninos de 6 a 12 anos num campo de refugiados da Cisjordânia, ferindo cinco crianças. O ataque só pretendia “assustá-los”. Não houve punições e o evento, para variar, não atraiu atenção. Era só mais um episódio do programa de “analfabetismo como punição”, disse a imprensa israelense, programa que incluía o fechamento de escolas, uso de bombas de gás, espancamento de estudantes a coronhadas, bloqueio de auxílio médico para vítimas; e para além das escolas predominou a mesma brutalidade, que até asseverou-se durante a Intifada, sob ordens do Ministro da Defesa Yitzhak Rabin, outro bem conceituado “pombo”.

Minha impressão inicial, depois de uma visita de alguns dias, foi de admiração ao povo palestino. Não só pela habilidade de levar a vida, mas também pela vitalidade da juventude, particularmente a universitária, com a qual eu passei um bom tempo numa conferência internacional. Mas também fui capaz de perceber que a pressão pode tornar-se grande demais. Relatos apontam que entre a população masculina jovem há uma frustração crescente e o reconhecimento de que, sob comando dos EUA e de Israel, o futuro não é promissor.

A Faixa de Gaza parece uma típica sociedade de terceiro mundo, com bolsões de riqueza rodeados por uma pobreza medonha. Não é, entretanto, um lugar “subdesenvolvido”. Na verdade, é “des-desenvolvido”, e de maneira muito sistemática, pegando emprestado um termo de Sara Ray, a maior especialista acadêmica em Gaza. Gaza poderia ter se tornado uma região mediterrânea próspera, com rica agricultura, uma promissora indústria pesqueira, praias maravilhosas e, como descobriu-se há dez anos, a perspectiva de uma extensa reserva de gás natural dentro dos limites de suas águas. Coincidentemente ou não, foi há uma década que Israel intensificou seu bloqueio naval, levando navios pesqueiros em direção à costa.

As perspectivas favoráveis foram frustradas em 1948, quando a Faixa tornou-se abrigo da enxurrada de refugiados palestinos que fugiram ou foram expulsos à força do que hoje é Israel.

Na verdade, eles continuaram sendo expulsos quatro anos depois, como informou no periódico Haaretz (25.12.2008) o estudioso Beni Tziper. Ele afirma que, já em 1953, “avaliava-se necessário varrer os árabes da região”.

Isso foi em 1953, quando a necessidade de militarização ainda não se insinuava. As conquistas israelenses de 1967 ajudaram a administrar os golpes posteriores. Vieram então os terríveis crimes já mencionados, que continuam até hoje.

É fácil notar os sinais de tais crimes, mesmo numa visita breve. Num hotel perto da costa pode-se ouvir as metralhadoras israelenses empurrando pescadores para fora das águas de Gaza, em direção à própria costa. Assim, eles são levados a pescar em águas que estão poluidíssimas porque norte-americanos e israelenses não permitem a reconstrução dos sistemas de esgoto e energia que eles próprios destruíram.

Os Acordos de Oslo planejavam duas usinas de dessalinização, imprescindíveis em função da aridez da região. Uma, instalação muito avançada, foi construída – em Israel. A segunda é em Khan Yunis, sul da Faixa de Gaza. O engenheiro encarregado de tentar obter água potável para a população explicou que essa usina foi projetada de forma tal que é incapaz de usar água do mar, ela depende de reservas subterrâneas, um sistema mais barato que, no entanto, degrada o aquífero já deficiente. Mesmo assim, a água é limitadíssima. A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), que cuida dos refugiados (mas não dos outros moradores de Gaza), recentemente lançou um relatório advertindo que os danos ao aquífero podem em breve tornar-se “irreversíveis”, e que, sem ações reparadoras, Gaza talvez deixe de ser um “local habitável” em 2020.

Israel permite a entrada de concreto para projetos da UNRWA, mas não para os palestinos comprometidos com as enormes necessidades de reconstrução. O equipamento pesado permanece ocioso a maior parte do tempo, já que Israel não permite materiais para reparo. Tudo isso é parte do programa descrito por Dov Weisglass, conselheiro do primeiro-ministro Ehud Olmert, depois de os palestinos terem deixado de seguir certas ordens na eleição de 2006: “a ideia”, disse ele, “é aplicar uma dieta aos palestinos, mas não deixá-los morrer de fome”. Não seria de bom tom.

O plano está sendo seguido conscienciosamente. Sara Roy nos dá vasta evidência disso em seus estudos. Recentemente, após anos de esforços, a Gisha, organização israelense pelos direitos humanos, conseguiu obter uma ordem judicial exigindo que o governo divulgue os planos da “dieta”. Jonathan Cook, jornalista em Israel, assim os resume: “oficiais de saúde forneceram cálculos do número mínimo de calorias que Gaza precisa para que os 1.5 milhão de habitantes não fiquem desnutridos. Esse número traduziu-se no número de caminhões de comida que Israel supostamente permite a cada dia, uma média de apenas 67 caminhões – bem menos do que a metade do requerido. E que se compare com isso os 400 caminhões diários de antes do bloqueio”. Segundo relatórios da ONU, mesmo essas estimativas são bastante generosas.

O resultado da imposição da dieta, observa o especialista em Oriente Médio Juan Cole, é que “cerca de 10% das crianças palestinas com menos de cinco anos tiveram seu crescimento atrofiado pela desnutrição. Além disso, a anemia hoje afeta dois terços das crianças mais jovens, 58,6% das crianças em idade escolar e mais de um terço das grávidas”. Os EUA e Israel querem ter certeza de que nada além da mera sobrevivência seja possível.

“O que devemos ter em mente”, diz Raji Sourani, “é que a ocupação e o encerramento absoluto é um ataque em andamento contra a dignidade humana do povo de Gaza em particular, e contra os palestinos em geral. É degradação, humilhação, isolamento e fragmentação sistemática do povo palestino”. Essa conclusão é confirmada por muitas outras fontes. Em um dos mais importantes periódicos médicos do mundo, The Lancet, um físico de Stanford, horrorizado com o que viu, descreveu a Faixa de Gaza como um tipo de “laboratório de observação da completa ausência de dignidade”, condição que tem efeitos “devastadores” sobre o bem-estar físico, mental e social da população. “A constante vigilância vinda do céu, punições coletivas por bloqueios e isolamentos, invasão de lares e de sistemas de comunicação, além de restrições aos que tentam viajar, casar ou trabalhar, tornam difícil viver de maneira digna em Gaza”.

Havia esperanças de que o novo governo egípcio de Mohammed Mursi, menos servil à Israel do que a ditadura de Mubarak, pudesse abrir a Travessia de Rafah, única saída de Gaza que não está sujeita a controle israelense direto. Até houve uma pequena abertura. A jornalista Leila el-Haddad escreve que a reabertura sob Mursi “é simplesmente um retorno ao status quo de anos anteriores: somente os palestinos portadores de identidades de Gaza aprovadas por Israel podem usar a Travessia”, o que exclui inclusive a família da jornalista.

Ademais, continua Leila, “Rafah não leva à Cisjordânia e não permite o transporte de bens, restrito às travessias controladas por Israel e sujeito às proibições a materiais de construção e exportação”. A restrição à Travessia de Rafah não muda o fato, também, de que “Gaza permanece sob apertado sítio marítimo e aéreo e fechada para qualquer capital cultural, econômico ou acadêmico que venha do resto dos territórios palestinos, o que viola as obrigações dos EUA e de Israel segundo o Acordo de Oslo˜.

Os efeitos disso são dolorosamente evidentes. No hospital de Khan Yunis, o diretor, que também é cirurgião-chefe, descreve enfurecido tanto a falta de remédios para aliviar o sofrimento dos pacientes quanto a dos equipamentos cirúrgicos mais simples.

Relatos pessoais dão vivacidade à corrente aversão à obscenidade da ocupação. Um exemplo é o testemunho de uma jovem que desesperou-se quando seu pai, que se orgulharia ao saber que sua filha foi a primeira mulher do campo de refugiados a receber um diploma avançado, “faleceu após seis meses de luta contra o câncer, aos 60 anos. A ocupação israelense negou que ele fosse aos hospitais de Israel para tratar-se. Eu tive de suspender meus estudos, meu trabalho e minha vida para ficar ao lado de sua cama. Todos nós, incluindo meu irmão e minha irmã, sentamo-nos ao lado de meu pai, assistindo seu sofrimento impotentes e sem esperança. Ele morreu durante o desumano bloqueio a Gaza no verão de 2006, com pouquíssimo acesso a serviços de saúde. Sentir-se impotente e sem esperança é o sentimento mais terrível que alguém pode ter. É um sentimento que mata o espírito e quebra o coração. Podemos lutar contra a ocupação, mas não podemos lutar contra o sentimento de impotência. Não se pode nem dissolver esse sentimento”.

Aversão à obscenidade combinada com culpa: nós podemos acabar com esse sofrimento e permitir aos resistentes a vida de paz e dignidade que eles merecem.

Tradução de André Cristi

Fonte: www.viomundo.com.br

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A Filosofia do Não (por Gaston Bachelard)

Gaston Bachelard - filósofo francês


"Pode-se discutir muito acerca do progresso moral, do progresso social, do progresso poético, do progresso da felicidade; existe no entanto um progresso que é indiscutível; o progresso científico, considerado como hierarquia de conhecimentos, no seu aspecto especificamente intelectual. Vamos, pois, tomar para eixo do nosso estudo filosófico o sentido deste progresso, e se, sobre a abscissa da sua evolução, colocarmos regularmente os sistemas filosóficos numa ordem idêntica para todos os conceitos, ordem essa que vai do animismo ao ultra-racionalismo passando pelo realismo, pelo positivismo e pelo racionalismo simples, teremos o direito de falar de um progresso filosófico dos conceitos científicos. Insistamos um pouco neste conceito de progresso filosófico. É um conceito que tem pouco significado em filosofia pura. Não caberia na cabeça de nenhum filósofo dizer que Leibniz estava adiantado em relação a Descartes, Kant adiantado em relação a Platão. Mas o sentido da evolução filosófica dos conceitos científicos é tão claro que se torna necessário concluir que o conhecimento científico ordena a própria filosofia. O pensamento científico fornece, pois, um princípio para a classificação das filosofias e para o estudo do progresso da razão."

(Texto estraído da obra "A Filosofia do Não")

A Dialética do Esclarecimento (por Max Horkheimer)

Max Horkheimer (1895 - 1973)
Filósofo e sociólogo alemão


"A naturalização dos homens hoje em dia não é dissociável do progresso social. O aumento da produtividade econômica, que por um lado produz as condições para um mundo mais justo, confere por outro lado ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam uma superioridade imensa sobre o resto da população. O indivíduo vê-se completamente anulado em face dos poderes econômicos. Ao mesmo tempo, estes elevam o poder da sociedade sobre a natureza a um nível jamais imaginado. Desaparecendo diante do aparelho a que serve, o indivíduo vê-se, ao mesmo tempo, melhor do que nunca provido por ele. Numa situação injusta, a impotência e a dirigibilidade da massa aumentam com a quantidade de bens a ela destinados. A elevação do padrão de vida das classes inferiores, materialmente considerável e socialmente lastimável, reflete-se na difusão hipócrita do espírito. Sua verdadeira aspiração é a negação da reificação. Mas ele necessariamente se esvai quando se vê concretizado em um bem cultural e distribuído para fins de consumo. A enxurrada de informações precisas e diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo. 

O que está em questão não é a cultura como valor, como pensam os críticos da civilização Huxley, Jaspers, Ortega y Gasset e outros. A questão é que o esclarecimento tem que tomar consciência de si mesmo, se os homens não devem ser completamente traídos. Não é da conservação do passado, mas de resgatar a esperança passada que se trata." 

(Texto extraído da obra "Dialética do Esclarecimento")



O Desespero Humano (por Soren Kierkegaard)

Soren Aabye Kierkegaard ( *5/5/1813 —  +11/11/1855 - filósofo e teólogo dinamarquês)     

“Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer, receio duma eventualidade exterior ou receio de si próprio; tal como os médicos dizem de uma doença, o homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, num relâmpago, raramente um medo inexplicável lhe revela a presença interna.” (Trecho extraído da obra "O Desespero Humano") 

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

SCHOPENHAUER (Sobre a Morte)


          
Pensando bem, parece ridículo que a gente se preocupe com um espaço de tempo tão curto. Temer tanto, quando nossa vida ou a de outra pessoa se encontra em perigo, ou situar na tragédia o terror dramático causado pela morte, é uma coisa pouco séria.

O excessivo apego à vida é uma cegueira e uma insensatez, e não tem outra explicação senão a circunstância de que todo o nosso ser é uma vontade de viver. A existência, embora com sua brevidade e insegurança, e mesmo sendo amarga como é, é nosso bem supremo e, assim, a vontade de viver é, por sua essência, inconsciente e cega. A inteligência não patrocina semelhante amor à vida. Ao contrário: -trabalha por combatê-la, deixando claro o escasso valor da existência, e contradizendo, dessa forma, o temor da morte.

Quando a razão domina, e o homem desafia tranquilamente e com serenidade a morte, qualificamos sua atitude de nobre e grande, e celebramos então o triunfo da inteligência sobre a cega vontade de viver que, apesar de tudo, é a medula essencial de nossa existência. Quando, pelo contrário, a inteligência cede na luta, quando o homem deseja a vida a qualquer preço e se defende desesperadamente da morte, que vê, aproximar-se, desesperado com sua chegada, as pessoas sentem por ele certo desprezo. Seu comportamento, entretanto, não é mais do que uma submissão à essência universal dos homens e das coisas.

Poderíamos, eventualmente, perguntar: - como é que o amor sem limites à vida e a aspiração de conservá-la por todos os meios e por todo o tempo possível, podem ser julgados sentimentos vis e desprezíveis? Como é que os prosélitos de qualquer religião declaram os que temem a morte indignos de suas crenças, se a vida é um dom dos deuses, pelo qual devemos agradecimentos à sua bondade suprema? Como é que pode parecer, neste caso, uma atitude nobre e grande, desdenhar esse bem?

Essas considerações nos demonstram:


1° - que a vontade de viver é a essência íntima do homem;

2° - que essa vontade, em si, é inconsciente e cega;
3° - que a inteligência é, primitivamente, um princípio estranho a essa vontade a ela se junta como um complemento;
4° - que a inteligência está em conflito com a vontade de viver e que nosso entendimento lhe dá razão quando ela vence essa vontade.
Admito que se o terror da morte se deve à ideia que temos do não-ser, igual terror nos deveria dominar ao pensarmos na época em que ainda não existíamos, pois não há dúvida de que o "não-ser" que segue à morte não pode ser diferente do "não-ser" que precede a vida e, portanto, não pode ser mais temível.

Enquanto não existíamos, a eternidade seguia seu curso. Isto, porém, não nos assusta. O que achamos cruel e insuportável é o pensamento de que depois do curto interregno desta existência efêmera, deve vir uma segunda eternidade, durante a qual também não existimos. Será que esta ânsia de viver decorre do fato de havermos gostado da vida, de tê-la achado amável? Indiscutivelmente, não, pois, em geral as provações suportadas nos deveriam predispor antes a lamentar profundamente o paraíso perdido do "não-ser".

A ilusão que abrigamos acerca da imortalidade da alma une-se sempre a de um mundo melhor, o que demonstra claramente que o nosso aqui não vale grande coisa. O problema sobre o que nos acontecerá depois da morte já foi exaustivamente tratado, em livros e conversas, e tratado mais do que o problema do que teríamos sido antes de nascer. Todavia, teoricamente, ambos os problemas despertam o mesmo interesse e oferecem a mesma razão de ser, e quem resolvesse um deles, não teria dúvidas quanto à solução do outro.

Quantas admiráveis declamações temos ouvido sobre a repugnância de admitir que o espírito humano, que abarca o Universo, e que, em suas sublimes concepções, se eleva tão alto, há de acabar sepultado com o corpo. Mas o que ninguém se lembra de dizer é que esse espírito humano deixou passar toda uma eternidade antes de aparecer sobre a Terra, com todos os seus atributos, nem que o mundo, durante toda essa eternidade, tenha passado sem ele.

Não conheço problema que mais se imponha a qualquer inteligência livre de preocupações arbitrárias do que este: - antes de meu nascimento, transcorreu um tempo infinito. Que era eu, durante todo esse tempo?... A eternidade sem mim, "a parte post", não deveria ser mais aterradora do que a eternidade sem mim "a parte ante", uma vez que uma não se diferencia da outra senão pelo sonho efêmero da vida... "A morte não nos importa" - ensina Epicuro. E explica: - "Enquanto existimos, a morte não existe, e quando ela chega, não existimos nós".

(Texto extraído da obra "O mundo como vontade e representação")
Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi o último dos filósofos do idealismo alemão. 

Meu Epitáfio (por Cora Coralina)


                Cora Corlina - poetisa brasileira - (1889-1995)

Meu epitáfio

Morta... serei árvore,
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.

Enfeitei de folhas verdes 
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.

Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.

Que medo é esse? (por Osho)



Só existe um medo básico. Todos os outros medos são consequências do medo principal que todo ser humano carrega dentro de si. O medo é de se perder. Ele pode acontecer na morte, no amor, mas o medo é o mesmo.



Você tem medo de se perder. E o mais estranho é que as pessoas que têm medo de se perder são justamente aquelas que não estão de posse de si mesmas. Aquelas que estão de posse delas mesmas não têm medo. Então, é na realidade uma questão de exposição. Você não tem nada a perder.



Você acha que tem algo a perder. As pessoas têm medo da vida. Elas têm medo da vida porque a vida só é possível se você for capaz de enlouquecer - enlouquecer no amor, enlouquecer na sua canção, enlouquecer na sua dança. É aí que reside o medo.



Quem tem medo da morte? Nunca cruzei com ninguém que tivesse. Mas quase todo mundo que eu conheço tem medo da vida. Descarte o medo da vida... Porque ou você tem medo ou vive, só depende de você. Você não tem nada a perder, só tem a ganhar. Esqueça as lágrimas e mergulhe de cabeça na vida.



Então um dia a morte virá como uma convidada de honra, não como uma inimiga, e você apreciará a morte ainda mais do que apreciou a vida, porque a morte tem as suas próprias belezas. E a morte é muito rara, porque ela só acontece uma só vez - a vida acontece todos os dias.


Osho, em "Emoções - Liberte-se da Raiva, do Ciúme, da Inveja e do Medo"


terça-feira, 23 de outubro de 2012

A retórica (Aristóteles)


Aristóteles - filósofo grego - 384 a 322 a.C.


"A retórica é a outra face da dialética; pois ambas se ocupam de questões mais ou menos ligadas ao conhecimento comum e não correspondem a nenhuma ciência em particular. De fato, todas as pessoas de alguma maneira participam de uma e de outra, pois todas elas tentam em certa medida questionar e sustentar um argumento, defender-se ou acusar".

domingo, 21 de outubro de 2012

BERTRAND RUSSELL - PENSAMENTO

Bertrand Russell  (filósofo. matemático e lógico britânico)

"Se a todos fosse dado o poder mágico de ler nos pensamentos dos outros, suponho que o primeiro resultado seria o desaparecimento de toda a amizade."

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

René Descartes - pensamento

René Descartes - filósofo e matemático francês

"Inexiste no mundo coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem. E é improvável que todos se enganem a esse respeito; mas isso é antes uma prova de que o poder de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e o falso, que é justamente o que é denominado bom senso ou razão, é igual em todos os homens; e, assim sendo, de que a diversidade de nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e não considerarmos as mesmas coisas. Pois é insuficiente ter o espírito bom, o mais importante é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes, e os que só andam muito devagar podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que aqueles que correm e dele se afastam."
 
(trecho extraído da obra Discurso do Método).

Como andar no Labirinto (por Affonso Romano de Sant'Anna)

Affonso Romano de Sant'Anna (poeta brasileiro)


“Não há cultura que não tenha construído labirintos. (Pois não dizem que a alma humana é um labirinto?) E desenhando esse emaranhado de entradas e saídas estaríamos dramatizando nossa desamparada situação. Há duas portas: a de entrada, ou vida, e a de saída, a morte. Mas entre uma e outra, que confusão danada cada um apronta. Como a gente fica perdido, batendo com a cabeça nas paredes! [...]
 
Vai ver que o erro da gente é querer sair do labirinto. Não adianta, o labirinto existe. Por isso muita gente sofre de labirintite física e metafísica. O jeito é aprender a andar nele. Deve haver até alguma maneira de iluminar alguns de seus recantos. Ou, como faziam os antigos, um jeito de implantar, de desenhar um jardim dentro e fora do labirinto, de tal forma que nossas dúvidas e perplexidades em forma de arabescos, de volutas e elipses, ao florescerem, tornem mais amenos os nossos descaminhos.”
 
(Trecho da crônica “Como andar no labirinto”)