por André Luiz Sousa Coelho
O direito valoriza a coerência. O ideal de um ordenamento jurídico é ser não apenas um sistema consistente, isto é, sem contradições, mas também um sistema coerente, em que os conteúdos das normas se reforcem entre si e todas elas possam ser justificadas com base nuns poucos princípios fundamentais. Neste caso, a coerência não é apenas um ideal abstrato com valor estético-matemático, mas é também um corolário da igualdade jurídica, pois um ordenamento positivo não está dando a todos os jurisdicionados um tratamento igual se não estiver regulando suas condutas nos vários ramos do direito e em relação aos mais diversos bens jurídicos sempre segundo os mesmos critérios.
A coerência exige que novas decisões se ajustem às anteriores. Cada vez que se requer uma nova decisão judicial, ela não pode ser tomada como se nunca antes se tivesse tratado sobre o assunto em questão. Pelo contrário, ela tem atrás de si não apenas a legislação a que precisa se ajustar, mas uma massa de conceitos dogmáticos e decisões jurisprudenciais fixados anteriormente em relação aos quais a nova decisão precisa se comprovar razoável. De algum modo, toda decisão nova precisa se provar como mais um elo na cadeia de continuidade com uma história de decisões do passado (mesmo que existam múltiplos graus e formas de construção desta continuidade).
Esta exigência dificulta mudanças medianas e praticamente impede mudanças radicais. Uma vez que decisões novas precisam ser coerentes com decisões do passado, os juízes tenderão a repetir padrões já existentes, a seguir entendimentos já fixados e apelar para argumentos que ultrapassaram a fase experimental e são aceitos não problematicamente. Todo desvio em relação a este eixo tem contra si o ônus dobrado de argumentação, porque precisa não apenas provar que existem boas razões para, no caso em questão, decidir de forma diferente, mas também que existe alguma razão para perturbar a sagrada monotonia do padrão dominante. Neste contexto, mudanças pequenas são simples de serem implementadas, mas mudanças medianas são trabalhosas e desgastantes e mudanças radicais se tornam raríssimas e praticamente impossíveis.
Mudanças radicais por meio do direito só ocorrem com rupturas políticas com o padrão jurídico esperado. Mesmo se lembrarmos de julgamentos históricos em que o padrão até então vigente foi radicalmente subvertido (fim da segregação racial, autorização do aborto, aprovação da união homoafetiva etc.), dificilmente conseguiremos explicar tal subversão com base apenas na força das razões jurídicas. Quase sempre é necessária a intervenção de forte pressão política, com longa e habilidosa articulação das opiniões e das vontades através de jogos de bastidores, para que as coisas sejam decididas de modo distinto do que haviam sido até então. É sempre a muito custo que os juízes se afastam radicalmente da orientação reinante, e sempre são fortemente criticados por isto.
E aqui não adianta invocar Dworkin e o ideal do direito como integridade, dizendo que a coerência deve ser de princípios, e não de resultados, e que mesmo decisões que parecem rupturas com o padrão vigente podem ser reconciliadas com o histórico de decisões do passado se as virmos como continuidade reinterpretada dos mesmos princípios que orientaram as decisões com que elas parecem romper. A teoria de Dworkin é sobre como rupturas podem ser reinterpretadas como continuidades por outros meios, é sobre como decisões que produziram mudança social significativa não precisam ser vistas como quebras da coerência do sistema. Isto não muda o fato de que a coerência do sistema predispõe os juízes em favor do status quo e de que mudanças radicais são raras e muito custosas.
Contudo, uma vez conquistadas, as mudanças são protegidas e mantidas pela coerência. Esta é a outra face da mesma moeda. A coerência tem compromisso com manutenção de conteúdo, mas não de certo conteúdo específico, e sim de qualquer conteúdo que se tenha tornado oficialmente dominante. Uma vez que as mudanças radicais (como os direitos de minorias, por exemplo) se tornam parte do conteúdo do direito vigente, a coerência torna obrigatório que decisões futuras respeitem este novo conteúdo introduzido no sistema, ajudando as mudanças a se tornarem estáveis e definitivas. Não fosse por isto, a mudança que só se processou depois de mil batalhas teria ainda outras mil batalhas pela frente para manter-se vigente. A coerência neste caso, atua como um filtro que protege contra a mudança antes de ela acontecer, mas também contra a reação conservadora, isto é, a tentativa de mudança da mudança, depois que esta última foi conquistada.
Mas não se pode negar que a coerência torna o legislativo uma via mais apropriada para mudanças radicais. As mudanças mais significativas que se processaram por via do judiciário foram raras e custosas. Esta é um caminho que nem toda mudança social pode se dar ao luxo de trilhar. Muitas mudanças radicais não têm recursos materiais nem suficiente adesão popular para construir nos bastidores uma frente judicial de desvio do referencial dominante de decisão. A maioria delas não apenas seria derrotada no fórum judiciário, mas sua derrota seria silenciosa e discreta, nada que seria sequer percebido como distorção ou efeito colateral indesejado do sistema jurídico. Nestas circunstâncias, tais mudanças só têm um caminho a tomar, que é o da tentativa de reforma legislativa.
E contar apenas com o legislativo é sempre mau negócio para os que querem mudanças radicais. O legislativo é um órgão majoritário, que representa não apenas a maioria dos cidadãos, mas também a maioria das opiniões dominantes. Afastar-se do status quo para tomar uma decisão revolucionária e impopular pode significar o fim dos mandatos e mesmo das carreiras de todos os parlamentares envolvidos no processo. Pior ainda: O projeto de lei pode eliminar as perspectivas de reeleição dos que tiverem dado apoio a ele e no final pode nem sequer ser aprovado. Conseguir formar a maioria necessária de votos por meio de lobby e pressão é ainda mais complicado e envolve ainda mais recursos do que fazer esta articulação no judiciário. Para os proponentes de mudanças radicais, ter apenas o legislativo com que contar é como para um indivíduo não ter emprego e contar apenas com a loteria para ter moradia e alimentação para o próximo mês.
Além disto, recomendar a via do legislativo é o mesmo que reconhecer que é a política, e não o direito, quem pode proporcionar a mudança radical. Neste caso, mesmo que a reforma legislativa não fosse um sonho tão distante, os movimentos que reivindicam mudança social só investiriam nela todas as suas fichas caso estivessem convencidos de que a reforma por meio de decisão judicial é inviável. Se dissermos a eles que é tudo uma questão de introduzir o conteúdo novo no direito, pois a coerência resiste á mudança até que ela aconteça, mas a protege depois de realizada, estaremos admitindo exatamente o núcleo da acusação com que começamos este debate: que a coerência torna o direito hostil à mudança e o vincula ao status quo.
Fonte: Filósofo Grego
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