Por Cintia Cavalcanti 10/03/2013 | |
Seria a liberdade uma condição intrinsecamente humana à qual estamos eternamente condenados, como preconizava Sartre, ou uma aspiração humanamente inalcançável como condição individual, conforme postulou Spinoza? Historicamente moldada, a concepção de liberdade foi ganhando diferentes contornos no decorrer do tempo. Objeto de muitas teorizações filosóficas, o termo, em sua origem grega – eleutheria –, nos remete à liberdade de movimento do corpo pela ausência de restrições e limitações externas. Partindo de uma condição física decorrente da ausência de debilidade do corpo, na antiguidade clássica, a liberdade designava também uma qualidade política, uma vez que se considerava livre aquele que não possuía impedimentos em virtude de seu status como cidadão da polis.
Como explica a filósofa Marilena Chaui no livro Convite à filosofia, existem três grandes concepções filosóficas acerca da liberdade. A primeira grande teoria filosófica teria sido concebida por Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco, na qual a liberdade é apresentada como sinônimo de autodeterminação, podendo, assim, ser entendida como a ausência de constrangimentos externos. De acordo com essa concepção, o agente é a causa de seus atos, sendo ele livre para escolher entre as alternativas possíveis de acordo com a sua própria vontade, não estando, de forma alguma, coagido pela necessidade. Já para o estoicismo, uma escola filosófica helenística fundada em Atenas no início do século III a.C., a liberdade não é concebida como uma característica individual, mas sim a consequência de uma atividade do todo, ou seja, da Natureza. Na concepção estoicista, embora a liberdade também preserve as características de autodeterminação e ausência de coação, a mesma difere da concepção aristotélica por não ser afirmada através do ato de escolha como resultado da vontade do indivíduo. O pensamento dessa escola teve seu ressurgimento a partir do século XVII com o filósofo Benedictus de Spinoza, para o qual o todo era tido como a Cultura e, posteriormente, no século XIX com Hegel e Marx, que tratavam o todo como a formação histórico-social.
O filósofo Emanuel da Rocha Fragoso, da Universidade Estadual do Ceará (Uece), explica que, na concepção de Spinoza, a liberdade ocorre em função da necessidade e não da vontade, de forma que, para ele, tanto a vontade quanto o entendimento são modos do pensamento e, por isso, não podem ser autodeterminados. “Por consequência, a vontade, como um modo, seja finito ou infinito, é sempre determinada por uma outra causa”, diz Fragoso no artigo “O conceito de liberdade na ética de Benedictus de Spinoza”. Dessa maneira, a liberdade constituiria um atributo do todo dentro do qual o indivíduo não teria o poder de se autodeterminar, podendo ser descrita como um poder do todo para agir em conformidade consigo mesmo, sendo necessariamente o que é, fazendo necessariamente o que faz, pois nas palavras de Chaui, “a Natureza não escolhe, a Cultura não escolhe, uma formação social não escolhe”.
A partir dessa concepção podemos ainda indagar: se a liberdade é um atributo do todo, onde estaria o livre-arbítrio? Fragoso afirma que a negação da vontade do indivíduo como algo absoluto, feita por Spinoza, não implica necessariamente na negação do ato de escolha; ele simplesmente o aponta como ilusório. Pelo fato de que no momento em que escolhemos uma coisa e não outra, não pensamos necessariamente no que levou a essa escolha precisa, temos a tendência a acreditar que essa decisão veio de uma vontade que pode produzir uma infinidade de escolhas a partir do nada. “O livre-arbítrio não é mais do que a ilusão de escolha, ignorando as causas que determinam a minha escolha”, conclui o filósofo da Uece acerca do pensamento de Spinoza.
Partindo da ideia de que nossas escolhas são sempre condicionadas pelas condições naturais, culturais e históricas nas quais estamos imersos, uma terceira concepção de liberdade introduz uma noção de possibilidade objetiva. “O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós, mas é também, e sobretudo, alguma coisa inscrita no coração da necessidade, indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós, em certas direções e sob certas condições”, explica Chaui. Trata-se da liberdade de fazer e não de querer, uma vez que “o homem não dispõe de tudo que quer, quando quer e onde quer”, não podendo se considerar independente de toda a realidade externa a si, observa o filósofo Paulo César Nodari, da Universidade de Caxias do Sul (UCS), do Rio Grande do Sul.
Modernidade e racionalidade
Embora as concepções filosóficas de liberdade apresentadas acima tenham suas raízes na Antiguidade, é na era moderna que a noção passa a se alicerçar sobre os pilares da racionalidade. Como argumenta Nodari no artigo intitulado “O conceito de liberdade na antropologia filosófica de Lima Vaz”, é a partir do século XVIII, considerado o Século das Luzes, que a razão assume tarefa primordial na construção da vida humana, libertando o homem dos jugos da autoridade e do poder da tradição. Desse momento em diante, uma nova concepção de ser humano desponta, bem como uma nova compreensão do que viriam a ser as características desse ser humano livre e racional. O sujeito do Iluminismo, dotado de capacidades de razão, de consciência e de ação, emerge com uma identidade individualista. Nodari explica que, a partir daí, o projeto de vida passa a ser protagonizado pelo indivíduo autônomo, que busca com muito afinco satisfazer seus desejos e necessidades pessoais, de modo que a liberdade passa a ser compreendida como algo contido no interior de cada indivíduo.
Em Contrato social, ainda que a liberdade seja designada como componente essencial da natureza humana, o filósofo iluminista francês Rousseau já pressente a tensão entre indivíduo e sociedade, vacilando constantemente entre a ideia de um Estado como produto das vontades individuais e a de um Estado em que cada indivíduo se aliene em função dos interesses da comunidade. É nesse sentido que ele emprega a distinção entre o que chama liberdade natural, ou seja, aquela que encontra seus limites na força dos indivíduos, e liberdade civil, conquistada através da passagem do estado natural ao civil, encontrando seus limites na vontade geral.
Outra distinção em relação aos tipos de liberdade foi feita por Benjamin Constant, no início do século XIX, ao contrastar o que denomina a liberdade dos antigos à liberdade dos modernos. Pode-se afirmar que, ao discorrer sobre a concepção do termo na Antiguidade, Constant se referia à liberdade no sentido político, ou seja, à soberania de representação dos indivíduos na esfera pública. Por outro lado, a liberdade dos modernos estaria atrelada a uma concepção individualista de vida, característica do sujeito do Iluminismo.
Direitos versus práticas sociais
A partir do período concebido por alguns autores como modernidade tardia, que tem início na segunda metade do século XX, uma série de fatores associados ao processo de globalização leva ao descentramento do sujeito. Nodari explica que, como expôs Lima Vaz em sua obra antropológico-filosófica, na atualidade, tal problemática se amplifica em vista da fragmentação da imagem do homem na pluralidade dos universos culturais nos quais ele se socializa e se politiza efetivamente, dificultando a adequação das convicções do indivíduo e da sua liberdade de ideias e valores universalmente reconhecidos e legitimados num sistema de normas e fins aceito pela sociedade. O filósofo da UCS explica que nesse fenômeno, Lima Vaz identifica a raiz provável do paradoxo de uma sociedade obsessivamente preocupada em definir e proclamar uma lista crescente de direitos humanos e, por outro lado, impotente para fazer descer do plano de um formalismo abstrato e inoperante esses direitos e levá-los a uma efetivação concreta nas instituições e práticas sociais.
A exemplo disso, a despeito do amplo reconhecimento do direito à liberdade religiosa, enquanto liberdade de consciência e de pensamento, são crescentes os debates e polêmicas em torno de questões referentes à expressão religiosa em espaços públicos, como no caso do uso da burca por mulheres muçulmanas na França, bem como denúncias sobre intolerância religiosa ao redor do mundo, inclusive no Brasil. O advogado Aloisio Cristovam dos Santos Junior, que estudou o tema em seu mestrado,explica que, as circunstâncias envolvendo a afirmação histórica da liberdade religiosa resultam da quebra da unidade teológico-política da cristandade e da eclosão do constitucionalismo moderno. Com isso, o valor que se sobressai como fundamental ao reconhecimento do direito à liberdade religiosa é o princípio da igualdade. Santos Junior conta que, historicamente, a conquista dessa liberdade foi motivada pelas perseguições e discriminações infringidas contra as minorias religiosas e teve como base a busca pela igualdade de direitos. “É impensável falar em liberdade religiosa quando os indivíduos não podem adotar esta ou aquela opção religiosa sem que receiem sofrer tratamento discriminatório por parte da comunidade política”, afirma o advogado, enfatizando a necessidade de que haja respeito à igualdade de direitos entre os cidadãos.
Além dessa igualdade de direitos, de acordo com Santos Junior, a existência de um Estado laico é também quesito imprescindível para a existência de liberdade religiosa. “Todavia, não se deve interpretar laicidade como antagonismo e nem mesmo indiferença à religião”, enfatiza. Ele lembra que existem diversos modelos de Estado laico, alguns mais abertos, como no caso da Inglaterra, que convive com a existência de uma Igreja Oficial,e outros mais fechados à expressão religiosa no espaço público, como é o caso da França, onde o ordenamento jurídico, capitaneado pela Lei de Separação, tende, de um modo geral, a afastar o máximo possível a expressão religiosa do espaço público, tratando-a como mera questão de foro íntimo.
Já no Brasil, o Estado é laico mas sem essa separação extremada que se vê na França, na medida em que a própria Constituição Federal contém dispositivos que claramente incentivam a expressão religiosa – a exemplo daqueles que preveem a imunidade tributária dos templos de qualquer culto, o ensino religioso nas escolas públicas, a objeção de consciência por motivos religiosos e a assistência religiosa em estabelecimentos civis e militares de internação coletiva. Mas, na prática, os direitos relacionados à liberdade religiosa, exigidos do Estado, não são respeitados pela própria sociedade. A esse respeito, Nodari observa, a partir do pensamento de Vaz Lima, que é possível afirmar que “o niilismo atual é consequência do fracasso da virada antropocêntrica do pensamento moderno, que, contra suas próprias intenções, não foi capaz de oferecer um fundamento sólido ao universo dos valores éticos e, por conseguinte, ao direito e à comunidade política”.
Além da intolerância religiosa verificada em diferentes contextos na atualidade, cresce o número de denúncias sobre a violência homofóbica registradas pela Secretaria de Direitos Humanos. A negligência dos governos de diversos países com relação a esse tipo de discriminação foi denunciada pelo primeiro relatório global das Nações Unidas sobre os direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais, divulgado em 2011. Esses e tantos outros tipos de discriminação social fazem inúmeras as oportunidades de observar os reflexos do vazio ético mencionado por Nodari, que se manifesta nas diversas formas de intolerância à expressão das liberdades alheias e de violação de direitos humanos básicos na sociedade.
Fonte: http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=86&id=1058&tipo=0
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domingo, 10 de março de 2013
A liberdade dos antigos e o vazio ético contemporâneo
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