Andrei Marmor (1959 - ) |
O Prof. Andrei Marmor assina o verbete dedicado à Teoria Pura do Direito na Enciclopédia Stanford de Filosofia (acessível em inglês aqui). O texto é visivelmente uma adaptação do capítulo sobre o assunto em seu Philosophy of Law e ainda carrega fortes traços do propósito com que foi escrito para aquela obra. Ali Marmor queria demonstrar o fracasso da teoria de Kelsen em fundar uma teoria completamente antirreducionista do direito e queria usar este exemplo de fracasso em favor da tese do fato social, que prevalece pelo menos desde Hart como uma das pedras de toque do positivismo jurídico anglofônico. Mais ainda, Marmor queria pavimentar o caminho para sua conclusão de que a única explicação do direito que consegue ser positivista sem perder de vista a normatividade é uma que associe o direito ao conceito de convenção social, daí a necessidade de mostrar o fracasso de Kelsen em compor positivismo e normatividade em bases exclusivamente não redutivas, isto é, sem apelar para nenhum tipo de fato ou prática social. Para isso, Marmor enfatiza o que acredita ser a tensão irreconciliável no interior da teoria kelseniana do direito, a saber, a tensão entre, de um lado, uma teoria não reducionista e relativista que funda o direito em um ponto de vista que só pode ser apreendido a partir da norma fundamental e, de outro lado, uma teoria positivista que pretende atribuir ao direito normatividade sobre a conduta individual. Marmor duvida que se possa elaborar uma explicação não reducionista da normatividade do direito. A tensão que Marmor aponta na teoria de Kelsen poderia ser configurada da maneira seguinte:
(a) Tese antirreducionista que leva ao relativismo: Recusando-se a fundar as normas em fatos de qualquer natureza, Kelsen funda normas apenas em outras normas, criando no início da cadeia de fundamentação a norma fundamental pressuposta. Como tal norma fundamental, contudo, depende apenas da aceitação de certo ponto de vista, o direito, bem como a moral e a religião, se torna um sistema não constringente, que poderia ser recusado no todo por quem quer que não aceitasse o ponto de vista de sua normatividade própria, como no famoso exemplo do anarquista.
(b) Tese da normatividade que recusa o relativismo: Por outro lado, Kelsen considera que a normatividade do direito consiste no fato de que, se uma norma jurídica ordena fazer certa coisa, isso constitui uma razão para fazer esta coisa. Esta característica seria mais simples de ser explicada se cada norma jurídica trouxesse consigo um peso moral, mas este peso moral é um dos elementos que Kelsen recusa associar com o direito. Assim, Kelsen teria que indicar uma fonte não moral da normatividade do direito de modo não relativista, isto é, tornando-a normatividade obrigatória para todos os agentes independentemente de assumirem certo ponto de vista sobre o direito.
(c) Impossibilidade de equacionar as duas teses: Para Marmor, uma teoria que afasta a norma jurídica da moral dá ao direito um déficit de normatividade que só poderia ser compensado com sua associação com fatos sociais que constituíssem boas razões para o destinatário se comportar em conformidade com o que as normas jurídicas lhe ordenam; se, no entanto, esta teoria também recusa a associação das normas jurídicas com fatos sociais capazes de fornecer estas boas razões e se recolhe a uma posição relativista em que a norma jurídica só tem normatividade para quem aceite a norma fundamental e, assim, o ponto de vista particular a partir do qual esta normatividade se impõe, cria-se uma normatividade contingente e facultativa, deficiente e incapaz de explicar o fenômeno jurídico.
O argumento tem uma relação mais que evidente com a tese de Marmor de que apenas a interpretação das normas jurídicas em termos de certo tipo de fato social, a saber, as convenções sociais, é capaz de conferir a elas uma normatividade que não precisa apelar para a associação com a moral. Portanto, nenhuma teoria positivista do direito, que faça a separação estrita entre direito e moral, é capaz de compensar o déficit de normatividade que resulta desta separação a não ser percebendo que o modo como as normas jurídicas criam razões para agir que afetam os destinatários pode ser explicado com ajuda da noção de convenção social. A convenção social é uma regra cuja validade consiste em sua eficácia, sendo esta eficácia generalizada o elemento que gera para o agente razões para se comportar em conformidade com ela. Uma vez que, para Marmor, esta é a única possível explicação positivista da normatividade do direito, se torna urgente demonstrar que a saída de Kelsen não é viável.
Assim, a crítica de Marmor a Kelsen serve para pavimentar o caminho rumo à conclusão final da teoria de Marmor. Contudo, saber disso apenas ajuda a entender a crítica, mas não a refuta. É legítimo que um autor critique outro para mostrar por que sua teoria é mais atraente que a dele, bem como é legítimo também que use a teoria de outro autor para mostrar o fracasso necessário de qualquer tentativa de seguir por um caminho diferente do que quer nos indicar depois. A questão é que, para isso, tem que provar pelo menos três coisas: (1) que fez uma descrição adequada das teses da teoria criticada; (2) que estas teses apontam para uma dificuldade de fato insuperável; e (3) que esta dificuldade insuperável surgiria também em qualquer outra teoria que adotasse teses semelhantes à da teoria criticada. A meu ver, Marmor não foi bem sucedido em nenhuma destas três tarefas. Mostrarei abaixo por que penso assim:
(1) Deixando de lado outras imprecisões da descrição que Marmor fornece da teoria de Kelsen, há um ponto crucial da teoria que foi omitido e que prejudica a caracterização daquela suposta tensão irreconciliável entre relativismo e normatividade, o qual seria o pano de fundo cético-relativista no qual a teoria da normatividade do direito se elabora em Kelsen.
Marmor desconsidera que para Kelsen a razão tem apenas papel especulativo, e não prático, ou seja, ela serve para conhecer o que é, nunca para orientar sobre o que deve ser. Isto é assim não porque não seja possível extrair de nenhum estado de coisas razões para agir desta ou daquela forma, mas precisamente pelo contrário, porque é possível extrair múltiplas razões para agir a depender do ponto de vista, dos valores e da interpretação com que se aborde o estado de coisas em questão. E tais razões múltiplas para agir são igualmente fundadas em valores, e não na razão, de modo que é impossível fazer uma escolha racional entre elas. Portanto, Kelsen jamais atribuiria ao direito uma normatividade que dependesse das razões que o agente poderia extrair da circunstância de que certa norma está vigente e lhe ordena fazer certa coisa.
(2) Outro ponto negligenciado por Marmor é o papel da coerção física como elemento capaz de romper o círculo entre relativismo e normatividade. Isso tornaria o problema apontado por Marmor na teoria de Kelsen um problema real, mas superável uma vez que se recorra ao elemento da sanção. A normatividade do direito não está na norma de conduta, e sim na norma de sanção. É a coerção física, e sua capacidade quase universal de motivar a conduta, que torna possível a união improvável entre relativismo antirreducionista e normatividade.
O direito, então, é, sim, uma ordem cuja normatividade só pode ser reconhecida por aquele que, aceitando a norma fundamental, já adota desde o princípio o ponto de vista da obrigatoriedade do direito. Neste sentido, a abordagem de Kelsen é, de fato, relativista. Mas isso não torna o acatamento ao direito facultativo. O que é facultativo não é a conduta prática, e sim certa perspectiva teórica. É facultativo adotar o ponto de vista para o qual o direito é uma ordem obrigatória de conduta. Mas não é facultativo obedecer à norma jurídica, porque esta faz sua desobediência ser seguida de uma sanção. Esta sanção consiste num ato de coerção física que tem força motivadora quer para quem adota o ponto de vista da normatividade do direito, quer para quem se recusa a adotá-lo. Isso quer dizer que mesmo o anarquista, que, do ponto de vista teórico, se recusa a atribuir qualquer normatividade que seja ao direito, terá, do ponto de vista prático, uma razão para agir em conformidade com esta ordem cuja normatividade ele recusa, qual seja, a razão de evitar que se aplique sobre ele um ato de coerção. Daí se ressalta que Marmor cobra de Kelsen não alguma explicação da normatividade, mas uma que funde esta normatividade noutro tipo de razão de agir que não a sanção.
Isto é compreensível. Pesa sobre Marmor a influência da crítica de Hart a toda teoria que entenda as normas jurídicas como comandos com base em ameaças. Ora, da maneira como esta crítica foi assimilada pela posteridade de Hart, isso quer dizer que obrigação não pode ser explicada em termos de coação, isto é, dever obedecer não é o mesmo que ser forçado a obedecer, de modo que qualquer teoria que queira atribuir ao direito verdadeira normatividade precisa mostrar não apenas que o direito pode coagir, mas também que pode obrigar. Assim como seu mentor Joseph Raz, Marmor assimilou muito bem esta crítica, entendendo a normatividade do direito como normatividade não coativa. Contudo, se normatividade for entendida nestes termos, então, para Kelsen, não há qualquer normatividade não apenas no direito, mas também na moral, na religião etc. A normatividade em Kelsen é necessariamente coativa, não existe obrigação sem sanção, de modo que ao procurar em Kelsen uma explicação da normatividade do direito em termos mais do que coativos, Marmor está perseguindo apenas um fantasma. Mais do que isso, desta maneira também ficaria claro que o verdadeiro ponto de divergência entre Marmor e Kelsen não está no fato de que, ao contrário de Kelsen, Marmor considera impossível uma explicação antirreducionista da normatividade do direito, e sim que, ao contrário de Kelsen, Marmor considera necessária uma explicação da normatividade do direito que não recorra ao elemento da coerção.
(3) Se estivermos certos nos dois pontos anteriores, então, o problema da união entre relativismo e normatividade em Kelsen ou tem solução, ou não é um problema. Se a normatividade puder ser coativa, então, a sanção é o elemento que dá ao direito normatividade prática, sem comprometer o relativismo teórico de sua obrigatoriedade. Neste caso, o problema tem solução. Se a normatividade, por outro lado, não puder ser coativa, se tiver que ser uma normatividade semelhante à que normalmente é atribuída à moral, então, o problema sequer existe na Teoria Pura do Direito, porque Kelsen jamais se comprometeu com atribuir ao direito tal normatividade. Marmor, assumindo a crítica de Hart à concepção coativa de normatividade, recusará implicitamente ver na sanção o elemento informador da normatividade do direito. Este é o ponto de vista de Marmor sobre Kelsen, que ele se propôs algo de que sua teoria não podia dar conta. Qual seria, contudo, o ponto de vista de Kelsen sobre Marmor?
Em primeiro lugar, em conformidade com o ponto (1), Kelsen reputaria como ingênua a abordagem segundo a qual o direito pode ter algum tipo de normatividade que se imponha a todos independentemente de seus respectivos pontos de vista. A ideia de que certos fatos sociais (como as convenções, em que Marmor aposta todas as fichas) são tais que constituem para todos os sujeitos razões para agir de determinada forma ignora que nenhum fato em si mesmo pode ser razão para agir, mas apenas quando interpretado segundo algum esquema de valor. Por sua vez, esquemas de valor são múltiplos e facultativos, não havendo qualquer esquema de valor que seja adotado por todos os indivíduos nem que se possa afirmar como superior a todos os esquemas de valor alternativos. Uma teoria que acredita que certos fatos sociais podem ser razões para agir que afetem todos os agentes ou considera falsamente que seja possível que fatos em si mesmos, sem valores, constituam razões para agir (e neste caso comete um erro lógico) ou considera falsamente que todos os agentes interpretam os mesmos fatos segundo os mesmos esquemas de valor (e neste caso comete um erro empírico). Kelsen duvidaria, portanto, da viabilidade do tipo de normatividade com que Marmor está se comprometendo.
Em segundo lugar, em conformidade com o ponto (2), Kelsen apontaria a impossibilidade de unir o relativismo com a normatividade do direito não como um problema real de sua teoria, mas como o tipo de pseudoproblema que emerge toda vez que, como Marmor, se queira atribuir ao direito uma normatividade que esteja para além da coerção. Kelsen afirmaria que a coerção física organizada é a técnica por excelência de controle da conduta desenvolvida pelo direito e que, não fosse por ela, outras ordens normativas, como a moral ou os costumes, seriam mais eficazes que o direito. Para ele, a explicação da conduta de um agente que se conforma com as normas jurídicas como levando em conta outras razões que não a possibilidade de aplicação da sanção contra si seria até possível, mas seria a descrição de uma conduta que poderia ter acontecido por qualquer outra razão que não o direito. A conformação da conduta mediante a ameaça da sanção é a modalidade de comportamento especificamente jurídica. Qualquer descrição da conduta dos destinatários do direito que não leve em conta o papel central que as sanções desempenham como razões é deficiente e idealizada.
Neste caso, a crítica de Marmor ilustraria o tipo de ponto de vista ingênuo e deficiente que resulta de uma teoria reducionista do direito. Por um lado, embora Marmor não seja um imperativista clássico, sua abordagem teria o defeito do reducionismo empírico, típico do positivismo jurídico anterior a Kelsen, de supor que fatos podem gerar normas sem mediação, violando a separação entre ser e dever ser. Por outro lado, embora Marmor não associe o direito com a moral, sua abordagem teria o defeito do reducionismo normativo, típico do jusnaturalismo tradicional, de exigir do direito um tipo de normatividade conectado a algum elemento intrínseco das próprias normas, e não ao elemento extrínseco da sanção. Contra ambos os erros, Kelsen recomendaria o mesmo remédio neokantiano de uma teoria pura, capaz de extrair apenas de elementos jurídicos a justificação da normatividade do direito.
Fonte: Blog Filósofo Grego