Wesley Cragg
Tradução de Lucas Miotto
História, literatura, religião e a observação prática, todas sugerem
que o castigo sempre desempenhou um papel central na organização das
relações humanas. Por diversas razões, isso não é surpreendente nem
perturbador. Por outras razões, é as duas coisas. Para entender o
fenômeno e os desafios morais que apresenta, as duas perspectivas
precisam de uma exploração cuidadosa.
As relações humanas são caracteristicamente regidas por regras. Há
muitas razões para isso. Em várias fases da vida os seres humanos são
incapazes de satisfazer até mesmo as suas necessidades mais básicas sem a
ajuda de outros. Cada um de nós precisa do apoio e proteção de adultos,
se quisermos sobreviver. Em todas as fases de nossas vidas, cada um de
nós é vulnerável à agressão física, furto e destruição da propriedade.
As regras fornecem a estrutura para a assistência mútua e para a
cooperação. Ajudam a definir o que é permitido e o que é proibido. Se
não forem executadas, não podem fazer o seu trabalho e a cooperação se
torna mais difícil ou, talvez, até impossível.
O castigo tem um lugar natural nessa conjuntura. Responde à ira,
ressentimento e sentido de injustiça que geram quem viola as regras
básicas. Funciona como um desincentivo. É uma maneira de assegurar que
quem respeita as regras não termina em piores condições do quem não as
respeita.
Por outro lado, o castigo é moralmente problemático. Uma das regras
mais básicas da sociedade civilizada é que infligir dor e sofrimento
deliberadamente aos outros requer sempre uma justificação cuidadosa. No
passado, o castigo era quase sempre acompanhado de dor e sofrimento, às
vezes de uma natureza brutal e bárbara. Mesmo hoje, a pena de morte é
largamente praticada. Mesmo onde foi abolida, os transgressores
podem ser, e o são, frequentemente, sentenciados a longas penas em
instituições onde as condições de vida são difíceis, monótonas e, frequentemente, perigosas. No entanto, o castigo, particularmente os
castigos severos, não se tem mostrado uma ferramenta eficiente ou
efetiva para a execução da lei. Além disso, normalmente, o peso do
castigo cai mais pesadamente sobre os pobres e os membros marginalizados
da sociedade.
Por todas estas razões, o castigo precisa de ser justificado tanto em
princípio, quanto na prática. Fornecer essa justificação exige
responder a quatro perguntas:
- A prática do castigo é em qualquer ocasião justificável e, neste caso, sob que condições?
- Que espécies de castigo se justificam? Estas precisam de envolver sofrimento?
- Quem temos o direito de castigar?
- Quem tem a autoridade moral para infligir castigos?
Tradicionalmente, as respostas para essas questões têm sido ou
retrospectivas ou prospectivas. As justificações de retrospectivas veem o
castigo como uma resposta às transgressões morais. Um crime, por sua
própria natureza, cria uma injustiça ao infligir um dano desmerecido
numa vítima ou ao conferir um benefício desmerecido e injusto ao
transgressor. O propósito do castigo é remover o benefício desmerecido e
corrigir o dano feito impondo uma pena ou privação ao criminoso que
corresponda à gravidade do crime cometido. De acordo com esta
explicação, o castigo constitui a justa retribuição para transgressões
voluntárias ou intencionais.
As justificações retributivistas do castigo encontram-se na filosofia
ocidental grega, medieval e moderna e estão profundamente incrustadas
nas teologias judaica, cristã e islâmica, apesar de em nenhuma destas
tradições religiosas serem a única explicação oferecida para o castigo.
Têm sido articuladas e defendidas por alguns dos mais influentes
filósofos na história do pensamento moderno como, por exemplo, Immanuel
Kant e G. W. F. Hegel. Finalmente, as justificações retributivistas têm
tido um profundo impacto no desenvolvimento das instituições jurídicas
ocidentais. O direito de testemunho, a exigência de a culpabilidade ser
estabelecida para lá de qualquer dúvida razoável e o princípio da mens rea1, todos comprovam esse fato.
A preocupação mais comum e premente com o retributivismo é a sua
associação, na mente de muitos, com a ideia de vingança. Não se
justifica, contudo, que se confunda as duas. A perseguição de vingança
ou retaliação é quase sempre indisciplinada e intemperante. Aqueles que
procuram retaliação frequentemente julgam mal o dano ou a ofensa aos
quais estão reagindo e reagem de uma maneira excessivamente dura,
perpetrando por seu turno mais injustiça. O resultado é frequentemente
um ciclo de retaliação com gradativas reações das quais não parece haver
escapatória. Consequentemente, apesar de a vingança ser frequentemente
exigida em nome da justa retribuição, raramente tem essa qualidade. Ao
contrário, a justa retribuição exige juízes imparciais guiados por leis
que asseguram um julgamento justo, os quais são orientados a assegurar
que o castigo se ajuste aos crimes cometidos e seja imposta somente
àquelas pessoas tidas como culpadas pelas ofensas pelas quais estão a
ser punidas num tribunal.
As justificações retributivistas do castigo, contudo, encontram
outras dificuldades a que não é tão fácil fugir. Justificar um sistema
apropriado de multas ou penalidades é uma delas. Aqui, apela-se
freqüente e popularmente à lex talionis: “Olho por olho, dente
por dente.” No entanto, tais preceitos rapidamente sucumbem em face da
engenhosidade com que os seres humanos infligem dano injustificado uns
aos outros. O que indica a lex talionis, por exemplo, como uma
pena apropriada para uma violação sexual brutal, difamação, fraude, sequestro ou terrorismo? Por outro lado, se a lex talionis for
abandonada, os retributivistas ficam com um princípio de
proporcionalidade que recomenda simplesmente que a punição infligida
varie com a gravidade moral do crime cometido. Apesar de esta
recomendação ter claramente algum valor, não provê orientações que
determinem as espécies de castigo que são moralmente justificáveis —
pena de morte, por exemplo, ou castigos corporais, ou confinamento
solitário, ou multas pesadas, e assim por diante.
As explicações retributivistas têm sido criticadas também por outras
razões. Os seus críticos argumentam que os retributivistas fundem as
transgressões legais e morais de modo que parece particularmente
inapropriado nas sociedades pluralistas ocidentais. Parecem deixar pouco
espaço para valores importantes, como a compaixão, perdão e piedade,
quando reagem aos criminosos. Talvez a crítica mais eficaz, contudo, é a
de que o retributivismo exige que o culpado seja castigado mesmo quando
é claro que nem o criminoso nem a comunidade se beneficiarão
diretamente do resultado do castigo.
Opostas ao retributivismo, as justificações de prospectivas exigem
que o castigo seja aplicado somente onde conferir benefícios que superem
o sofrimento que impõe. Tradicionalmente, esses benefícios têm sido de
dois tipos: benefícios relativos ao indivíduo objeto do castigo e
benefícios relativos às vítimas e à sociedade. Para muitas pessoas, a
idéia de que o castigo possa ser imposto com vista ao bem-estar da
pessoa a castigar tem um caráter paradoxal. Apesar disso, está
profundamente enraizada historicamente nas discussões sobre o tema, por
exemplo, no livro de Job do Velho Testamento e no Protágoras, de
Platão. As teorias do castigo deste gênero orientam-se tipicamente pelo
bem-estar e focam o castigo como um instrumento de reabilitação,
tratamento, correção, reforma ou educação moral.
As teorias que visam a prevenção também têm sido desenvolvidas para
justificar o castigo. Um dos benefícios desta via é que parece fornecer
uma orientação clara, bem como limites claros na sentenciação de
criminosos. Deste ponto de vista, não se deve infligir qualquer castigo
que imponha mais dano ou sofrimento ao criminoso do que a que evita ao
prevenir que o criminoso repita o crime, ou ao reduzir a probabilidade
de outros seguirem os passos do criminoso.
Apesar de tanto as teorias que visam o bem-estar como as que visam a
prevenção terem encontrado defensores diversificados e sofisticados e
terem exercido considerável influência no desenvolvimento da teoria do
castigo e da sentenciação neste século, admite-se em grande parte que
ambas estão sujeitas à mesma crítica. Se o objetivo é puramente de
aspecto prospectivo, porquê castigar somente quem transgride a lei
intencionalmente ou voluntariamente? Porquê esperar pessoas que quem
ameaça a sociedade cometa crimes antes de exigir que se submetam a
tratamento ou reabilitação? De fato, por que não substituir a linguagem
moralista de culpado e inocente, castigo e retribuição pelo vocabulário
de tratamento, reabilitação e modificação comportamental, por exemplo?
Em suma, não é de todo claro que haja lugar nas teorias puramente
prospectivas para a idéia de justiça.
Estas críticas às duas justificações tradicionais do castigo têm
estimulado uma vasta série de respostas. Alguns teorizadores (por
exemplo, Jeffrie Murphy e Jean Hampton, Wesley Cragg) voltaram-se para o
reexame do retributivismo e da sua relação com a justiça, piedade,
perdão, ódio e ressentimento. Outros (por exemplo, R. A. Duff, Jacob
Adler) têm tentado associar noções seculares de castigo com a idéia de
penitência. Tem-se tentado construir explicações híbridas do castigo,
combinando as melhores características das justificações retributivistas
e utilitaristas (por exemplo, H. L. A. Hart, R. A. Duff), tentativas
estas que têm sido muitíssimo criticadas (por exemplo, Nicola Lacey,
Wesley Cragg). A relação entre castigo e sofrimento ou tratamentos
opressivos, tem sido muitíssimo explorada. Finalmente, a função e o
papel do castigo na execução da lei, sentenciação e correções tem sido
analisado.
Duas conclusões emergem dos debates contemporâneos acerca da natureza
e papel do castigo numa sociedade democrática moderna. Primeiro, o
conceito de castigo é complexo e objeto de contestação. Segundo, a
despeito de a teoria moderna do castigo não conseguir prover uma
justificação convincente e persuasiva, os instrumentos formais do
castigo continuam a ser considerados pelos teorizadores e igualmente
pelo público como uma componente essencial da sociedade contemporânea.
Wesley Cragg
Nota do tradutor
- Para um ato ser considerado um crime, o seu praticante deve
satisfazer no mínimo dois requisitos: um mental e outro material. O
requisito mental é o requisito de que o agente praticante do ato deve ou
deveria saber que aquele ato é proibido. Este requisito varia de acordo
com o crime, sendo que em alguns crimes se exige que o praticante saiba
que o ato que praticou é proibido e mesmo assim o comete, e noutros
basta que o praticante não se importe se o ato que pratica é crime ou
não. Tal requisito mental é conhecido como mens rea. As condições necessárias da mens rea
para cada crime são controversas, sendo a sua discussão bastante
relevante na discussão acerca de que atos devem ser criminalizados.
Referências
- Adler, Jacob. The Urgings of Conscience: A Theory of Punishment. Philadelphia: Temple University Press, 1991.
- Bentham, Jeremy. “Principles of Penal Law.” In The Works of Jeremy Bentham, vol. 1, ed. J.Bowing. Edinburgh: W.Tait, 1838.
- Cragg, Wesley. The Practice of Punishment: Toward a Theory of Restorative Justice. London: Routledge, 1992.
- Duff, R.A. Trials and Punishments. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
- Hart, H.L.A. Punishment and Responsibility. Oxford: Clarendon Press, 1968.
- Hegel, G.W.F. Philosophy of Right. Trad. T. M. Knox. Oxford: Oxford University Press, 1942.
- Honderich, Ted. Punishment: The Supposed Justifications. Harmondsworth: Penguin Books, 1969.
- Kant, Immanuel. Philosophy of Law. Trad. E. Hastie. Edimburgo, 1887.
- Lacey, Nicola. State Punishment. London: Routledge, 1988.
- Martin, Rex. A System of Rights. Oxford: Clarendon Press, 1993.
- Murphy, Jeffrie G., and Jean Hampton. Forgiveness and Mercy. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
- Plato. Protagoras. In The Great Dialogues of Plato, trans. W.H.D.Rouse. New York: Mentor Books, 1956.
Fonte: Crítica na Rede