sexta-feira, 25 de julho de 2014

Uma apreciação crítica a respeito dos princípios da Liberdade e da Diferença na obra “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls

Rogério Henrique Castro Rocha1


Resumo: Neste artigo desenvolve-se uma breve análise da obra “Uma Teoria da Justiça”, mostrando alguns conceitos básicos de sua fundamentação, bem como expondo e analisando os dois princípios de justiça (liberdade e diferença), a partir da noção neocontratualista, defendida pelo autor na formulação de seu projeto ético-político para a efetivação de um modelo de sociedade bem ordenada, conforme apresentado na obra ora em comento. Esboça-se ainda uma apreciação crítica a respeito de algumas das noções centrais presentes na exposição de sua teoria da justiça.

Palavras-chave: Teoria da justiça, contrato, posição original, véu da ignorância, princípios de justiça, liberdade, igualdade, diferença.

1 INTRODUÇÃO


O filósofo político americano John Rawls é autor da obra “Uma teoria da Justiça” (A theory of justice, 1971), onde desenvolve sua teoria da justiça como equidade (justice as fairness), importante contribuição ao debate contemporâneo acerca do tema, comum tanto ao Direito quanto à jusfilosofia. Nessa obra, tomando para si a tarefa de elevar a um grau superior o contratualismo presente no pensamento kantiano e nos clássicos liberais, o pensador insculpe uma série de princípios e garantias a serem implantados num modelo de sociedade bem ordenada, com fundamento na prevalência do justo sobre o bem.

O esforço intelectual de Rawls na construção de seu modelo teórico é notadamente reconhecido nos meios acadêmicos, tendo a sua TJ (teoria da justiça) passado a servir de referência quando da análise da conformação ético-política contemporânea – em que pesem as severas críticas que recaem sobre o referido modelo teórico, sobretudo quanto a alguns de seus aspectos conceituais.
 
Outrossim, sua obra foi também responsável pela deflagração de acirrado debate acadêmico entre liberais e comunitaristas, sobretudo nos Estados Unidos e Europa, dando lugar ao surgimento de seguidas reformulações tanto no pensamento do próprio autor quanto nas bases argumentativas que fundamentam as teorias que lhe são opositoras.

Antes de se ingressar diretamente na apreciação proposta acerca dos dois princípios fundamentais da doutrina rawlsiana, é necessário tecer certas considerações de caráter preliminar, para melhor compreensão da natureza de sua obra.

2 A TEORIA DA JUSTIÇA


          Na obra “Uma teoria da Justiça”, Rawls propõe a formulação de um modelo de sociedade democrática de base constitucional, fundada sobre a idéia de um novo contrato social. Sua concepção desse sistema recebe influência direta das idéias do liberalismo político, bem como da filosofia moral kantiana, além de colocar-se na posição do que denominou tratar-se de uma “análise sistemática alternativa da justiça” (RAWLS, 1993, p. 14). Também se explicita nessa obra a intenção do autor em fornecer uma teoria, ao mesmo tempo, crítica e opositora à concepção do utilitarismo tradicional.

A idéia de justiça como equidade, desenvolvida por Rawls, encontra-se alinhada a uma concepção política de justiça, tendo por fim a estruturação de uma sociedade bem ordenada e, por conseqüência, justa para com seus cidadãos, garantindo-lhes uma gama considerável de direitos e liberdades fundamentais.

A sociedade descrita em sua teoria baseia-se num sistema equitativo de cooperação, tendo por pressuposto inicial que os indivíduos que a compõem, por condição natural, são livres e iguais, capazes de perseguir as suas aspirações e projetos pessoais, detendo a condição de sujeitos razoáveis e portadores de racionalidade, sendo aptos, portanto, a elaborar concepções próprias de bem e justiça.

Mas para que haja de fato uma sociedade bem ordenada, é preciso escolher e estabelecer princípios norteadores, que servirão de critério para a efetivação da ideia de justiça em cada caso. Daí a necessidade de se proceder, conforme ressalta o autor, na busca de um acordo, racional e imparcialmente produzido. Desse acordo é que sairão os princípios de justiça que deverão reger dada sociedade.

Nesse ponto Rawls cria o artifício de imaginar que tal acordo, ou seja, as bases de um novo contrato social, fundador de uma sociedade que se espera bem ordenada, corresponderia a uma situação hipotética, na qual certos representantes do corpo social, postos em condição de igualdade mútua, escolheriam tais princípios. A essa condição igualitária entre os parceiros, que decidirão sobre os princípios regentes da sociedade, Rawls denomina de “posição original”. Nas palavras do próprio pensador, temos a seguinte explicação:

Na teoria da justiça como equidade, a posição de igualdade original corresponde ao estado natural na teoria tradicional do contrato social. (...) Deve ser vista como uma posição puramente hipotética, caracterizada de forma a conduzir a uma outra concepção de justiça. (Idem, p.33)

Ainda acerca da compreensão do pressuposto teórico da posição original (ou posição originária), assevera ainda Rawls que a introdução de tal ideia deu-se

...porque não há melhor maneira de elaborar uma concepção política da justiça para a estrutura básica a partir da idéia intuitiva fundamental da sociedade como um sistema equitativo de cooperação entre cidadãos como pessoas livres e iguais. (1992, p. 43)

Para assegurar-se da efetiva imparcialidade nas escolhas dos participantes da posição original, Rawls os coloca como que encobertos por aquilo que chamou de “véu da ignorância” (veil of ignorance), que é outro artifício que utiliza para dar sustentação a sua teoria. Sob a condição do véu da ignorância, os parceiros do pacto social desconheceriam suas situações sociais particulares, seus talentos, suas inclinações políticas, bem como seus julgamentos morais, tendências religiosas, etc. Dessa forma, imaginava poder dotá-los de imparcialidade no ato de deliberação e na escolha dos princípios, tornando-os, portanto, os mais acertados, visto tratar-se, a partir do critério observado, de um processo não impregnado por interesses que favorecessem as condições particulares dos participantes da posição original.

Assume grande destaque no âmbito dessa teoria, sobretudo no que concerne à formação do contrato social, a questão do consenso, que deve prevalecer entre os parceiros quando da deliberação dos princípios básicos que servirão de esteio à sociedade e suas instituições. Nessa condição, os participantes do acordo decidem, enquanto entidades morais e sem ter conhecimento algum dos seus objetivos particulares, princípios de justiça aos quais terão de conformar suas concepções sobre o seu próprio bem (Cf. RAWLS, 1993, p.46).

3 OS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA



A partir da definição da importância da escolha dos princípios e de sua finalidade, segue-se que os mesmos deveriam, a posteriori, ser alçados à instância constitucional, funcionando ainda como parâmetro para o sistema de cooperação social que se formaria dentro da sociedade, visando o bem dos seus participantes. Assim sendo, afirma Rawls:

Uma vez adotada uma concepção da justiça, podemos supor que serão escolhidas uma constituição, um sistema de produção de leis e assim por diante, escolhas essas a efectuar de acordo com os princípios da justiça inicialmente adoptados. (Idem, p.34)

Logo, pode-se observar com clareza que uma das grandes preocupações do filósofo americano seria a de apontar os caminhos para que se viabilizasse, na implantação concreta de seus princípios de justiça, a existência de uma sociedade estável, pluralista e democrática, regida pela força da lei positiva, inscrita em uma constituição. Para tanto, seria necessário que os cidadãos livres e iguais desta sociedade chegassem a um entendimento compartilhado sobre uma noção fundamental de justiça pública, aplicável à estrutura básica social. Finalmente, respaldada na escolha consensual de uma concepção de justiça, tal modelo poderia então levar a termo um amplo processo de cooperação social, gerador de vantagens mútuas e benefícios eqüitativos entre seus membros.

Num artigo do ano de 1975, intitulado “Uma concepção kantiana de igualdade” (A kantian conception of equality), onde, de forma breve, aprofunda a análise da visão exposta na TJ sobre a sua concepção de igualdade e demais princípios, Rawls assim se posiciona:

Um conjunto de princípios é requerido para arbitrar entre arranjos sociais que dêem forma a essa divisão de vantagens. Assim, o papel dos princípios de justiça é atribuir direitos e deveres na estrutura básica da sociedade e especificar a maneira pela qual as instituições devem influenciar a distribuição geral dos retornos da cooperação social. (2007, p.110)


Na teoria rawlsiana, partindo-se da centralidade e da profunda atenção que é dada à escolha e efetiva implantação dos seus princípios de justiça, é visível a preocupação em que sejam estabelecidas condições mínimas, formais e materiais, para a possibilidade da construção de uma sociedade humana viável. Razão pela qual estão presentes nessa teoria não só uma noção de pessoa, de bem e de justiça, mas também a de direitos e deveres fundamentais dos indivíduos.

Em torno da noção de justiça, o pensador americano elabora seu discurso ético-político. Tal noção acaba por assumir enorme relevância face à organização do modelo societário proposto na obra, constituindo-se em verdadeiro princípio ordenador. Bem assim, sua teoria responde a exigências típicas de nossa época, demonstrando concordância com princípios democráticos e jurídicos universalmente consagrados, tais como o da dignidade da pessoa humana, o respeito às diferenças e à liberdade, reabilitando e trazendo ao debate contemporâneo a questão do direito natural.

Conforme nos lembra PEGORARO (2002, p. 15), analisando o tema: “Os cidadãos que subjetivamente cultivam o senso de justiça procuram transpô-lo numa ordem jurídica equitativa para todos”. No fundo, é o que os indivíduos racionais, razoáveis, livres e iguais, responsáveis pela escolha autônoma de suas próprias regras básicas (na posição original), sejam capazes de reproduzir tais normas, tornando-as como que máximas a reger suas condutas no plano coletivo e, de igual modo, na estrutura de suas instituições públicas.

Feitas tais considerações, passemos a analisar mais pontualmente os dois princípios de justiça eleitos na posição original, tecendo alguns comentários sobre os mesmos.

3.1 O princípio da liberdade

Ao contrário do que possam imaginar os críticos da teoria rawlsiana, os dois princípios de justiça aplicáveis às instituições não surgem gratuitamente, ou seja, não aparecem do nada. Ambos se originam de um conceito ordinário de justiça; algo como uma espécie de senso comum presente nas pessoas, nos grupos e na própria sociedade. Surge, portanto, de um senso da justiça contido na experiência histórica dos indivíduos em qualquer tempo.

O princípio da liberdade, bem como o segundo princípio, recebe na TJ duas redações. Uma de caráter provisório, encontrada no parágrafo terceiro (RAWLS, 1993, p.35). Outra, já definitiva, encontra-se no parágrafo 46, a qual passamos a reproduzir integralmente, como segue: “Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema de liberdades para todos.” (Idem, p.239)

Da exposição acima, pode-se retirar algumas posições determinantes da teoria.

Pelo teor do enunciado, deste que é o primeiro princípio de justiça da sociedade bem ordenada, vemos que os representantes na posição original primariam por garantir, em primeiro plano, um máximo possível de liberdades básicas aos indivíduos. A cada pessoa, dever-se-ia garantir um “direito igual” de usufruir do “mais amplo sistema total de liberdades básicas”.

Percebe-se na formulação desse princípio que a questão da liberdade nas modernas democracias constitucionais ocupa lugar de destaque. É quase impossível falar-se em Estado democrático de direito, em instituições justas, em realização dos fins a que se propõem os variados modelos sociais, sem se falar em liberdade.

Requisito essencial para a efetivação do caráter autônomo dos indivíduos que participam da sociedade bem ordenada, com seus projetos de vida e aspirações particulares, a liberdade é, acima de tudo, um direito. Um direito natural, conforme amplamente consagrado nas lições da boa doutrina jurídica e filosófica. Trata-se, portanto, de caractere inerente à condição humana, dada sua capacidade racional. Sobretudo da intuição de que existem princípios de direito válidos em qualquer tempo, independentemente até mesmo do padrão cultural dos seres humanos.

A escolha do princípio da liberdade tem estreita relação com os preceitos filosóficos da doutrina do liberalismo político (defendida por Rawls na concepção de sua TJ), com o jusnaturalismo, com o legado do pensamento iluminista e com as principais declarações de direitos. É a liberdade um direito fundamental do homem. Portanto, garanti-la enquanto princípio ordenador de uma sociedade é assegurar que as suas instituições permitam uma convivência digna e igual entre as pessoas. Por isso mesmo, possui como característica básica o fato de ser um direito irrenunciável – e ainda, segundo Rawls, inegociável.

Como bem salientou o mestre José Afonso da Silva (1995, p.227):

O conceito de liberdade humana deve ser expresso no sentido de um poder de atuação do homem em busca de sua realização pessoal, de sua felicidade. (...) Vamos um pouco além, e propomos o conceito seguinte: liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal.

O princípio da liberdade aqui enunciado refere-se, desse modo, à liberdade de agir, ou seja, à liberdade tratada, sobretudo, em seu aspecto político, e não à mera liberdade metafísica. Prioridade máxima (quer na esfera pública, quer na vida privada), a liberdade deve ser garantida a todas as pessoas, num rol o mais extensivo possível. E mais ainda, tal garantia deve tornar-se possível em condições iguais para todos. O que implica em se falar aqui em liberdade igualitária, deduzindo-se, da exposição acima citada, uma espécie de sub-princípio ou princípio complementar ao de liberdade, estando a ele diretamente vinculado.

É oportuno citar RADBRUCH (2004, p. 190), quando o mesmo nos lembra que:

O conceito de pessoa permanece um conceito de igualdade na medida em que se equiparam o poderoso e o impotente, o proprietário e o desprovido de bens, a frágil pessoa individual e a poderosíssima pessoa coletiva.

E com a mesma propriedade, conclui:

A concepção social não dissolve, de modo algum, esse conceito de igualdade nos vários tipos do patrão, do empregado, do operário, do funcionário. Patrão, empregado, operário, funcionário são para ela apenas situações distintas em que se encontram as mesmas pessoas, supostas como iguais. Se, no fundo de cada um desses tipos sociais não estivesse o conceito igualitário de pessoa, faltaria o denominador comum, sem o qual seria impensável qualquer comparação e igualação, qualquer consideração de justiça, qualquer direito privado, e talvez até mesmo qualquer direito. (Idem, p. 190-191)

Em suma, o princípio de liberdade em Rawls correlaciona-se a um princípio de igualdade, reafirmando o direito legal às liberdades fundamentais e aos direitos invioláveis da pessoa humana, seja em sua estrita individualidade, seja no convívio social. Sendo assim, no corpo desta importante contribuição à filosofia do nosso tempo, o autor unifica num só sistema, pensamento político e ética, resgatando assim a esperança de que estas duas práticas, outrora intrínsecas, possam, enfim, reatar seus laços originários, há muito rompidos.


3.2 O princípio da diferença

Dando continuidade a análise, passa-se agora a expor a formulação definitiva do princípio da diferença, situado no parágrafo 46 da TJ, que trás a seguinte assertiva:

As desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas por forma a que, simultaneamente: a) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados, de uma forma que seja compatível com o princípio da poupança justa, e b) sejam a conseqüência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade eqüitativa de oportunidades. (RAWLS, 2003, p.239)

Na interpretação do segundo princípio, depreende-se que, segundo Rawls, devemos aceitar as desigualdades sociais e econômicas, bem como as diferenças mesmas entre os indivíduos, enquanto membros da sociedade. Ressalta, entretanto, que tais diferenças só devam existir na medida em que aos menos favorecidos seja garantida uma posição mais satisfatória quanto a distribuição de benefícios e renda, em igualdade de condições para com os demais membros mais abastados da coletividade. (RUSS, 2006, p. 50)

Enquanto o primeiro princípio assegura um amplo rol das liberdades básicas e explicita a prioridade conferida à liberdade, apenas excepcionalmente podendo vir a sofrer alguma restrição (desde que a serviço da própria liberdade), o segundo princípio é consagrado à distribuição de renda e riqueza ou oportunidades, conferindo-se, quanto ao mesmo, a prioridade da justiça frente à eficiência do bem-estar.

O autor defende em sua teoria uma igualdade de natureza democrática. Tal igualdade deverá ser fundada com base numa eqüitativa igualdade de oportunidades e na existência de desigualdades (segundo ele, aceitáveis).

Seu conceito de justiça como eqüidade implica, conforme se pode observar, no estabelecimento da igualdade de condições no acesso às oportunidades, que deverá ser estendida a todos os indivíduos, sabendo-se, todavia, que seu resultado será sempre desigual. Ou seja, deve-se esperar que (mesmo numa sociedade bem ordenada) nem todas as pessoas contempladas com as iguais condições de acesso às oportunidades necessariamente tenham êxito em desenvolver de modo integral as suas capacidades. Isto ocorre em função de uma série de circunstâncias impeditivas (falta de certas habilidades, ausência de talento, classe social a que pertençam, limitações físicas, intelectuais, orgânicas, etc.), o que termina justificando a própria noção de desigualdade. Nesse sentido, em Rawls a desigualdade é não só esperada, como também admissível.

Ainda na visão de RUSS (Idem, p.51), Rawls opera sua teoria fazendo um verdadeiro balanceamento de filosofias políticas antitéticas, quando destaca tanto o empreendedorismo e a livre iniciativa econômica dos agentes sociais das classes favorecidas (visão liberal), quanto a necessária distribuição de renda, proventos, bens, oportunidades e benefícios aos desfavorecidos (visão socialista). Verdadeira síntese entre duas tradições que a história mostrou antagônicas.

Ao cominar igualdade e diferença, “pode-se dizer que há, aí, uma preocupação com a eqüidade, um levar em conta as desigualdades, um exame flexível e humano do espetáculo das injustiças da vida.” (Idem, Ibidem)

Por isso, temos, na opinião de ALMEIDA (2006, p.09):

Uma vez garantidas as liberdades individuais e, portanto, toleradas as diferentes concepções de vida, deve-se buscar o máximo de igualdade possível, por meio de arranjos institucionais. (...) Através desse princípio de diferença permitem-se desigualdades ainda remanescentes, desde que beneficiem os mesmos privilegiados.

É nítida em Rawls a preocupação em se conciliar a desigualdade com a liberdade, propondo uma forma de mitigação das diferenças, mediante a garantia do direito à igualdade eqüitativa de oportunidades, reforçando ainda mais o caráter igualitarista de sua teoria. Ainda assim, consideramos problemática tal posição, visto que se configura extremamente difícil equalizar desigualdades sociais e econômicas, motivações diversas, conflitos de interesse e descontentamentos com a satisfação de desejos dos numerosos grupos de indivíduos dentro de uma sociedade complexa e pluralista.

Em virtude disso, passamos a entender melhor a razão das constantes e inúmeras críticas ao trabalho de Rawls. Sobretudo em relação ao seu princípio da diferença, quase sempre objetado, dada sua difícil sustentação. Muitas são as indagações que podemos lançar, em função do segundo princípio. Afinal, que pessoas e/ou grupos seriam chamados de ‘menos favorecidos’? A partir de que critérios defini-los, dentro de uma realidade social complexa e multifacetada? Como se falar em justiça e eqüidade, com a manutenção das desigualdades sócio-econômicas? Como esperar que sujeitos por natureza egoístas escolham princípios que privilegiem os desfavorecidos?

Apesar de serem os parceiros na posição original levados a considerar o bem dos outros pelo viés de seu próprio desconhecimento de informações a respeito de si mesmo e da posição dos demais implicados, ainda assim, terão por base seus interesses particulares, ou seja, interesses egoísticos. Embora resultado do consenso e de um ato racional e ponderado dos parceiros, a escolha dos princípios de justiça rawlsianos põe sob suspeita suas reais motivações.

Conclusão

Buscou-se aqui apresentar, de forma sintética e breve, a formulação dos princípios de justiça que se inscrevem na obra “Uma teoria da justiça” e que dão fundamento à efetivação de um sistema político-jurídico numa sociedade bem ordenada, de caráter constitucional e democrático, que Rawls denomina também de democracia de proprietários. Tentou-se também, por meio desse artigo, melhor divisar a concepção subjacente à escolha dos princípios de liberdade e diferença, com a prioridade do primeiro sobre o segundo. Viu-se também o quão presente na teoria rawlsiana o sentimento de necessidade da partilha eqüitativa dos bens na estrutura básica da sociedade, a fim de favorecer os menos assistidos.
Inspirado na noção kantiana de igualdade e autonomia dos indivíduos livres e iguais perante a condição de escolha de um ideal de justiça aplicável às instituições, bem assim no imperativo categórico (na obra representado pelo dever de seguir livre e racionalmente os princípios eleitos), John Rawls nos propõe a elaboração de um novo contrato social, responsável pela instauração de uma nova ordem, que origina-se de um procedimento de negociação que visa o consenso e a estabilidade.

Trata-se de uma teoria polêmica, acusada pelos críticos de possuir certo déficit de fundamentação e de ser portadora de algumas lacunas importantes. Entretanto, e na mesma proporção de seus problemas, converteu-se, sem sombra de dúvidas, em obra referencial, que contribui decisivamente com o debate das práticas políticas e jurídicas das grandes sociedades contemporâneas, conciliando, em seu esforço de elaboração, ética e política, direito e filosofia, tornando-se paradigma inquestionável a toda e qualquer proposta futura de reconstrução ou superação do modelo de sociedade nela descrito.

REFERÊNCIAS


ALMEIDA, Gabriel Bertin de. Os princípios de justiça de John Rawls: o que nos faria segui-los? In: Cadernos de ética e filosofia política. nº 8, jan., 2006, p. 07-18.

PEGORARO, Olinto A. Ética e justiça. 7.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Coleção justiça e direito)

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. de Carlos Pinto Correia. Lisboa: Editorial Presença, 1993.

____________. Uma concepção kantiana de igualdade. In: Veritas. V. 52, nº1, Porto Alegre, mar., 2007, p. 108-119.

____________. Justiça como eqüidade: uma concepção política, não metafísica. Lua Nova [online]. 1992, n.25, pp. 25-59. ISSN 0102-6445.

RUSS, Jacqueline. Pensamento ético contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2006.

SILVA, José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. 10. ed. revista. São Paulo: Malheiros Editores, 1995.

1 Graduado em Filosofia pela UFMA, Pós-graduado em Filosofia (Paradigmas da pesquisa em ética) pelo IESMA, Bacharel em Direito pela UFMA, Pós-graduado em Direito Constitucional pela rede LFG/UNIDERP – Universidade Anhanguera.

Em busca do silêncio (por Rogério Rocha)

Por Rogério Henrique Castro Rocha

Num mundo povoado de estímulos sensoriais, distrações, sons, barulhos, é cada vez mais raro ao ser humano voltar-se a uma prática de extrema simplicidade, porém, esquecida pelas pessoas de nosso tempo: a experiência do silêncio.

Se nos perguntássemos agora o quanto de nossas vidas dedicamos à nossa interioridade, às reflexões mais íntimas, à meditação feita na paz do silêncio, a maioria certamente responderia que muito pouco ou quase nada. Mas, afinal, o que há de tão importante no silêncio? Que benefícios pode nos trazer?

Em tempos de furiosa confusão de imagens, sons e ideias, numa civilização pautada no que é novo e ao mesmo tempo efêmero, o ritmo acelerado de nossas existências é preenchido com toda espécie de coisas. Algumas necessárias e quase que obrigatórias, outras dispensáveis e até mesmo sem sentido.

Numa sociedade tecnologizada, fundada na objetividade, no pragmatismo e no padrão universal de comportamentos guiados por necessidades artificiais, forjadas na base de um mundo de afazeres, distrações e construtos aptos ao consumo rápido e rasteiro, a vida silenciosa da interioridade é um tema que não ocupa lugar de destaque no rol de interesses de nossa mais exacerbada mundanidade.

Pelo contrário, é seu oposto, o barulho, que verdadeiramente impera.

Os muitos sons que nos cercam dão prova disso. As vociferações radiofônico-televisivas, o palavrório sem fim das futilidades midiáticas, a massiva urgência de novos e mais estrondosos meios de se chamar a atenção (e para isso os megafones, as poderosas estruturas sonoras, etc.) povoam nossos ouvidos fragilizados. 
 
Decibéis de ruídos citadinos são produzidos no desassossego dos ambientes das ruas, praças e centros de convívio humano. Com isso, paulatinamente, nos esquecemos de cultivar instantes de solidão positiva, de paz, de serenidade. Instantes nos quais deveríamos nos devotar ao exercício pleno do silêncio.

É na serenidade do silêncio que buscamos encontrar nossa essência, nossa verdade derradeira. É no íntimo de uma prece sem palavras, de um canto sem frases ou melodia, de um refletir sem arroubos de tagarelices que podemos fazer brotar os segredos perdidos.

As culturas ancestrais, as escolas de mistérios, as grandes filosofias do oriente, as religiões primitivas e os mestres sapienciais há muito nos ensinam a importância do calar. 
 
Os monastérios como lugares de profundo burilar da interioridade, calcados sobretudo no silêncio dos que oram e laboram. A calma imensa dos claustros, a paz intensa dos campos, dos desertos, a nos conduzir em uma viagem de interiorização, de conhecimento reflexivo, de um intenso desvendar de saberes, ideias, visões.

Só a prática silenciosa de uma escuta atenta pode nos conectar com o universo que existe dentro e fora de nós. 
 
A meditação silente nos treina para a profundidade dos sentidos não lidos e não expressos na linguagem ensurdecedora dos ruídos do cotidiano, que estrangulam os raros momentos de contemplação. A distração contemporânea de uma vida voltada aos barulhos nos tolhe de experimentar o gosto sereno de uma paz interior constantemente negligenciada.

Até mesmo os que oram, nestes tempos de estridência, preferem os brados ecoantes dos templos abarrotados ao sossego de uma prece muda, porém sincera, intensa, introspectiva, feita no recesso de um quarto, em consonância com as mais puras vibrações divinas.

Enfim, o ato do silêncio está na gênese de toda questão, no âmago de todo espanto, no brotar de cada descoberta. 
 
Grandes ideias surgiram do pensamento que escutava apenas seus próprios sussurros. Os iluminados atingiram a perfeição que buscavam justo nas longas jornadas ao centro de seus íntimos temores, de suas dúvidas, seus anseios e aspirações.

O silêncio tem sempre algo a nos mostrar. Traz em si muitos ensinamentos. Equilibra, harmoniza e potencializa nossas capacidades. Energiza nosso ser. Vincula-nos a algo maior e sagrado. 
 
Portanto, não nos custa nada experimentar alguns momentos de silêncio em nossas vidas. Reservar pequenos instantes para nossos próprios pensamentos. Um tempo à parte para a viagem mais especial que podemos fazer. Um passeio que nenhum pacote turístico jamais poderá oferecer. Uma terapia tão eficaz e enriquecedora quanto qualquer divã de psicanálise. 

Em meio ao caos circundante, busquemos então o silêncio que em nós ainda habita.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

O argumento de Michael Walzer sobre Intervenções humanitárias

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Por Davi J. de S. da Silva

(I) Discutir Intervenções Humanitárias

Quando falamos sobre intervenções humanitárias, admitindo a possibilidade delas serem consideradas justas, basicamente formulamos as seguintes perguntas:

(1) O que é uma intervenção humanitária?
(2) Quais devem ser critérios que autorizam a intervenção humanitária?
(3) Quem ou quais devem ser os agentes envolvidos na intervenção humanitária?
(4) Quais devem ser os objetivos da intervenção humanitária?
(5) Qual ou quais devem ser os procedimentos durante uma intervenção humanitária?
(6) Como se deve encerrar uma intervenção humanitária?

As perguntas acima não tem a pretensão de encerrar os questionamentos normativos sobre o tema. Quero apenas utilizá-las como forma estruturante e didática de apresentação das posições teóricas contemporâneas sobre o tema.


A primeira que apresentarei é a posição de Michael Walzer.

Sua teoria e argumentos podem ser encontrados em diversos textos, mas, basicamente, utilizarei apenas dois dadas as perguntas acimas. O primeiro é o clássico Guerras Justas e Injustas (1977) - (GJI) e o segundo é The Argument about Humanitarian Intervention - (AHI). Mesmo que tenha ocorrido acréscimos ou revisões, esses dois textos contém o núcleo da argumentação de Michael Walzer.

As Intervenções humanitárias constituem uma modalidade específica de guerra e estão dentro do quadro mais amplo da teoria de Walzer sobre guerras justas e injustas. Não vou reconstruir todos os elementos da teoria de Walzer, mas, um breve resumo dela é necessário para entender o caso das Intervenções humanitárias.

Walzer argumenta que no mundo político os indivíduos se associam por meios de processos espontâneos de socialização por meio dos quais são compartilhado valores, objetivos, desejos e vontades. Nesses processos de socialização os indivíduos vão formando suas subjetividades ao mesmo tempo em que a comunidade passa a ser o espaço coletivo em que podem ser afirmados, construídos e reconstruídos, os acordos sobre que bases institucionais, políticas, culturais os indivíduos Irão exercer seus dois direitos básicos e fundamentais: a. direito à vida e b. direito à liberdade.

No domínio do mundo político esses dois direitos passam a ser concretizados na comunidade social que estabelece o Estado como o instrumento de representação política dos valores culturais, históricos e sociais da comunidade. O Estado mantém a fidelidade política dos seus cidadãos e comunidade à medida em que representa os interesses vitais destes. A obediência é mantida à medida em que a agência estatal mantém esses laços de representatividade.

Quando a imagem é ampliada e se passa a olhar para as relações internacionais, o direito à liberdade e vida se traduzem nos direitos à independência política e integridade territorial respectivamente. A independência política tem sua face interna e externa. Internamente ela é o direito que cada comunidade tem de estabelecer suas próprias organizações políticas em conformidade com a sua própria vontade. Externamente a independência política é o direito que cada comunidade tem de estabelecer seus padrões, direitos e organizações políticas sem a interferência externa de qualquer outra comunidade. 

Já o direito á vida é traduzido no direito à integridade territorial, pois o espaço físico em que as relações de compartilhamento cultural são desenvolvidos representam para Walzer um elemento vital para existência da comunidades. Independência política e integridade territorial são direitos que possibilitam a própria existência da comunidade. Uma vez violados poem em risco a vida da comunidade.

Na sociedade internacional, local em que as comunidades se encontram e se relacionam para Walzer, está estruturado um sistema em que esses dois princípios estabelecem a igualdade entre os Estados. Ameaça-los é ameaçar a paz e estabilidade internacional. Nesse sentido, o princípio da não intervenção, o principio da proibição das guerras de agressão, dentre outros são vitais para a existência da comunidades.

Por último, é importante dizer, quando há uma agressão a alguns dos direitos e princípios acima, a comunidade tem o direito de resistir contra a agressão. É permissível que ela trave guerra contra o agressor, é justo que ela utilize a forca para defender seus interesses vitais.  

Claro que esta é uma hiper-simplificação. Walzer não pode ser confundido com alguma espécie de visão substancialista de comunidade que se afirma na arena internacional sem restrição alguma quando quer defender seus interesses. Não cabe aqui nesse post, mas é preciso alertar o leitor. Para mim, Walzer é um liberal com fortes matizes republicanas, com uma teoria deontológica sobre a Guerra, cuja fonte de normas é a Opinião Publica, os Sentimentos Morais, a Critica Moral e o Direito. Todas essas são afirmações fortes que demandariam um post por si só. Mas, qualquer compreensão que não leve em conta esses  elementos irá ser obscura e míope.

Apenas para reafirmar que Walzer é um membro da tradição liberal devo afirmar ao leitor que: (a) Walzer se apoia fortemente em John Stuart Mill quanto á que frame político deve orientar as interações na sociedade internacional; (b) Walzer é um defensor dos direitos individuais como núcleo estruturante de sua teoria; (c) Walzer é comprometido com o pluralismo de visões de mundo.


(II) Respondendo às questões

Vou aos pontos acima listados.

(a) Para Walzer Intervenções humanitárias são: 

(a.1) intervenção porque se trata de uma ação que, aparentemente, o principio da não intervenção será violado contrariando, assim, aparentemente, o direito que cada comunidade tem de se autodeterminar; 

(a.2) humanitária porque o objetivo dessa ação aparentemente contrária ao direito da comunidade que sofre a intervenção tem objetivos que são ligados aos sujeitos, pessoas, indivíduos das comunidades e não a disputa por poder ou riqueza. Então, posso dizer, provisoriamente, que estamos tratando de um ação que ocorre em contrariedade ao principio da não intervenção tendo como objetivos alguma especie de interesse nos indivíduos que pertence à comunidade que sofre a intervenção. Também posso dizer, que aqui estamos tratando de uma ação militar concreta, real que irá, em algum sentido, contrariar os direitos políticos à autodeterminação ou integridade territorial.


(b) Quando as intervenções podem ocorrer?

As intervenções podem ocorrer todas as vezes em que um regime rompe com os laços políticos com a comunidade e a ataca de maneira tao gravosa que: (b.1) poe a existência da comunidade em risco;  (b.2) a torna incapaz de exercer seu direito de resistência e (b3) "choca" a consciência moral dos seus vizinhos.

Em Walzer quando as autoridades ameaçam a vida de sua comunidade ou de minorias, dissidências politicas, etc., tais autoridades estão ameaçando o direito à vida e a liberdade que toda comunidade e individuo possui. A sociedade internacional não pode aceitar tal violação, por isso, deve intervir. A necessidade de intervenção se torna evidente quando a comunidade ameaçada não consegue mais se autodefender, seu direito de resistência está bloqueado, assim como quando uma comunidade se solidariza com a agressão gravosa ao ponto de mobilizar seus recursos militares para agir.  

Na teoria da agressão desenhada em Guerras Justas e Injustas não estava desenvolvido o cenário pós-guerra fria, portanto Walzer não desenvolveu uma argumentação levando em conta a pergunta se as Intervenções poderiam ser executadas quando tais violações a esses direitos acima (direitos morais) poderiam ser desferidas quando violações aos direitos humanos, previstos na DUDH-1948 e tratados posteriores tivesse ocorrido. 

Foi no texto O Argumento sobre intervenções humanitárias que Walzer reconfirmou a posição da Teoria da Agressão no vocabulário da discussão sobre quais direitos humanos autorizariam ou não a intervenção. Walzer defendeu que apenas o direito à vida e à liberdade numa expressão minimalista poderiam ser causa para a intervenção. Isto é apenas quando a vida e as liberdades básicas das comunidades estivesse em risco é que poderia ser autorizada a intervenção. Essa ameaça se caracteriza pelo genocídio, assassinato, expulsão, massacre, deportação, maus-tratos, impor condições degradantes de vida, etc. 

No debate sobre quais direitos humanos autorizariam as Intervenções, apenas uma lista minimalista estruturada basicamente nos direitos à vida é que poderiam ser causa para a intervenção. Mas, por que uma lista minimalista? Em primeiro lugar, argumenta Walzer, a lista minimalista é a que é capaz de ser amplamente aceita pela sociedade internacional sem divergências ou oposições. Trata-se de um núcleo minimo que não poderia ser questionado. Aparentemente poderia ser dito que tal razão é meramente pragmática, mas ela tem seu fundo normativo, pois os direitos de proteção à vida são aqueles que passam pelo teste da aceitabilidade universal. Numa sociedade internacional tao dividida culturalmente, a proteção à vida é o elemento comum que todas as culturas são capazes de aceitar racionalmente.   

Um segundo argumento normativo é que que a versão minimalista protege a sociedade internacional contra a possibilidade de Intervenções que violassem os valores e culturas comuns dos seus Estados membros em nome de direitos humanos que estão ligados muito mais à uma determinada cultura politica. 

Walzer entende, seguindo John Stuart Mill, que autodeterminação não pode ser confundida com liberdade política. Para Walzer e Mill, um povo pode ser autodeterminado nem necessariamente possuir internamente uma organização política liberal ou democrática.  Cada comunidade tem o direito de buscar sua própria configuração politica interna e qualquer interferência nesse direito seria uma violação da autodeterminação.
Walzer, se apoiando em Mill, defende que os Estados da sociedade internacional não podem impor uns aos outros uma determinada configuração política. O liberalismo exigiria na sociedade internacional uma atitude de abstenção e não interferência nas lutas internas de cada Estado. Por isso uma lista minimalista seria a configuração adequada tanto ao que os Estados membros da sociedade internacional poderiam endossar quanto àquilo que eles não querem que violem sua autodeterminação. 

 Assim, as Intervenções estão autorizadas quando houverem violações aos direitos humanos de proteção à vida. Essas violações não podem ser "algumas" violações, mas violações massivas que poem em risco à vida de um grupo ou comunidade ao ponto de lhe impossibilitar o direitos de resistência e chocar a consciência moral da comunidade. 


(c) Quem é o agente encarregado para intervir?

Talvez essa umas das questões mais importantes hoje debatidas. Não quero afirmar aqui que o debate sobre quais direitos humanos autorizariam a intervenção já está concluindo, mas quando a pergunta acima ocorre abre-se uma discussão sobre quem é o agente autorizado à agir na intervenção. Nesse ponto aparecem as questões sobre politica internacional como a critica de que as Intervenções seriam instrumento do ocidente imperialista ou que seriam apenas acoes oportunistas com outros fins de razão de Estado.

Walzer analisa a pergunta acima do ponto moral. Quem é o obrigado moralmente a agir executando a intervenção?

Na Teoria da Agressão a intervenção humanitária tem a natureza de um resgate (salvamento). Enquanto tal o que importa é salvar imediatamente a vítima da situação gravosa que poe sua vida em risco. A imagem trabalha com as seguintes premissas

(i) Imagine que uma casa está pegando fogo e existem pessoas que precisam ser regatadas.
(ii) Imagine que um vizinho conhece a situação de emergência.
(iii) Se ele puder agir, por que nós acharíamos que ele esta agindo errado?
(iv) Faz sentido esperar, diante da emergência, a autoridade competente, caso o vizinho ou alguém capacitado pode agir?
(v) Faz sentido diante da necessidade de salvamento deliberar ou atrasar a ação por que não se decidiu quando agir?

Com base nessa imagem, para Walzer, todos os Estados tem o dever de intervir para salvar a vítima. O problema é que essa resposta ainda não cria um critério determinado para a executar a intervenção.

Duas questões são importantes aqui: (c.1) A ação deve ser coletiva ou unilateral? (c.2) Quais são os melhores critérios para apontar o responsável para agir?

(c.1) Walzer não entende que é a ação coletiva tem um valor moral maior do que a ação unilateral de um ou grupo de Estados. Segundo argumenta em AHI, tanto na ação unilateral quanto na ação coletiva estão sujeitas às vicissitudes da política, pois questões envolvendo os interesses dos Estados podem ocorrer e ser relevantes tanto no espaço de decisão coletiva quanto no espaço de decisão unilateral. De fato, argumenta, no espaço coletivo a situação é ainda pior, pois a dificuldade de conciliar interesses dos Estados é ampliada quanto mais Estados estejam debatendo. Nesse quadro, dada a natureza do salvamento-resgate da intervenção é como se estivéssemos diante de um incêndio deliberando quem vai entrar para salvar a vida das vítimas. 

Para Walzer seria desejável que a ação fosse tomada coletivamente, mas, dada a ausência de instituições que consigam deliberar e agir em tempo hábil, nada impede, do ponto de vista moral, que a ação unilateral, prática histórica da sociedade internacional, possa ocorrer. A analogia com o salvamento, imagem criada para tornar explícita as intuições básicas que temos em relação à intervenção, pouco importa se é um agente coletivo ou individual que opera o resgate. O que importa é o que resgate seja feito em tempo hábil no interesse da vítima. 

Nessa imagem, as organizações coletivas atuais tem agido de maneira bastante contrária ao problema moral. Isso porque tanto tem negligenciado a necessidade de resgate, situações em que não operam a intervenção, quanto tem sido pouco diligentes em tempo hábil em agir, situações em o debate sobre quando e como intervir tomam uma dimensão que retarda a operação do resgate.  

Portanto, para Walzer, nada torna a ação unilateral moralmente menos válida do que a ação coletiva. Pelo contrário, dada a natureza de salvamento, se o agente que está diante da crise conhecer a crise e puder agir, deve fazê-lo o quanto antes. 

(c.2). A natureza da intervenção nos leva ao segundo ponto: quais critério podem ser mais exatos na hora de determinar o agente? Com base na analogia com o salvamento e com exemplos históricos dois são os critérios apontados por Walzer: (a) Relações de vizinhança e (b) Melhor capacitado para agir.

Walzer argumenta que historicamente as Intervenções melhor executadas e bem sucedidas foram as executadas unilateralmente por Estados vizinhos dos Estados em crise. Bangladesh 1971 e Camboja (1978-79). A imagem do salvamento, resgate diante de um caso extremo, reforça a compreensão sobre porque um agente vizinho seria o mais habilitado a agir, pois, nesta imagem, a prontidão e a velocidade de reação são importantes para o resgate. Mas, aqui, quero reforçar um um outro aspecto do porque o Agente Vizinho é um dos mais habilitados. 

O Agente Vizinho não é o mais autorizado apenas por conta da questão moral de agir em tempo hábil. Há em Walzer um argumento epistêmico, isto é, quem conhece melhor a situação e pode com isso tomar as melhores providencias para o resgate. Segundo Walzer apenas os sujeitos que compartilham praticas sociais podem saber quais questão são moralmente relevantes para eles. 

Quando Walzer argumenta contra a intervenção com fins de mudança de regime politico, sustenta que além do direito à autodeterminação, um agente externo não pode intervir porque ele desconhece quais são as praticas comuns compartilhadas e, portanto, não pode apenas apresentar um novo regime porque viola a independência da comunidade que sofre a intervenção, mas, porque ele desconhece a realidade social e política do Estado que sofre a intervenção. A sua ação será desenvolvida no escuro. 

Dessa feita, quando Walzer defende o Agente Vizinho ele não está apenas defendendo a importância moral de agir em tempo hábil, mas defendendo que a ação do Agente Vizinho é epistêmicamente melhor informado e portanto capaz de compreender melhor a importância do salvamento. Tanto porque ele pode conhecer melhora situação da comunidade dada as relações que já desenvolve com ela quanto pelo fato de que ele é diretamente interessado na solução do problema, pois pode ser afetado por ela.  

Quanto ao segundo critério, Melhor capacidade para agir. Aqui a imagem do salvamento também é importante. Segundo Walzer, quem for o agente que estiver em melhor capacidade para agir deve fazê-lo. Tendo os instrumentos e a disponibilidade, não agir é moralmente condenável. 

Um ponto que existia em 77, mas que não aparece no texto de 2002 de maneira exaustiva, é saber se há possibilidade dos agentes se negarem a intervir. Se há um direito de intervir ou uma obrigação de intervir. Para Walzer, a possibilidade de liberar os Estados da intervenção é se a ação colocar em risco a existência do interventor ou a existência pacifica dos Estados no cenário da sociedade internacional. Assim, se a intervenção colocar a vida do agente em risco, não é exigível dele a intervenção. Também, se a intervenção colocar em risco a paz e a vida dos membros da sociedade internacional não seria moralmente exigível. 

Embora Walzer apresente essas razoes para a não incidência do obrigação de intervir, ele acredita que nas circunstancia atuais as violações massivas de direitos humanos tem ocorrido em Estados falidos, Estados desintegrados ou com poder militar e econômico sem capacidade de ameaçar a vida da sociedade internacional. Para ele não haveria então excusa para não intervir. 


(d) Quais devem ser os objetivos da intervenção humanitária?

Essa pergunta também é respondida com a imagem do salvamento. Dada a natureza de resgate, o objetivo da intervenção deve ser apenas o salvamento das comunidades e ou populações em risco. 

A questão mais problemática nesse tópico é perguntar: "se a intervenção tiver outros objetivos além do salvamento, ainda assim ela poderá ser considerada como humanitária?". Quando esta pergunta é feita entra na argumentação questões sobre o critério da intenção correta. O critério da intenção correta, elemento normativo da Teoria da Guerra Justa, exige que qualquer guerra para ser considerada justa deve não apenas ter um fundamento justo (justa causa) como os motivos (intentions) do agente que vai a guerra devem ser justos. Por que me envolvo com a guerra deve ser correto também. Esse é o campo dos motivos que impulsionam um agente à guerra. 

Por exemplo. Imagine que um determinado estado X está com uma crise humanitária, sendo uma de suas populações minoritárias A sistematicamente agredida, nos termos aqui já tratados: ação sistemática, violenta, advinda das autoridades e sem chance de resistência. Um Estado Y pode promover a intervenção nesse caso. Mas, ao mesmo tempo em que promove a intervenção, o Estado Y que aumentar suas reservas de petróleo, sendo interessante intervir porque o Estado X tem se negado a negociar com Y. O Estado Y intervem e ainda por cima consegue melhorar sue acesso ao petróleo de X. Como nesse caso o Estado Y não tinha intenções "justas", pois ele se utilizou da ação interventiva para tratar de um interesse particular seu, a teoria da guerra justa  que toma o critério da intenção correta diria que a intervenção foi injusta. 

Embora Walzer esteja dentro da tradição da teoria da guerra justa, ele não entende que o critério da intenção correta é um elemento que deve contar no julgamento da permissibilidade, justiça e legitimidade da intervenção humanitária. Uma intervenção humanitária, para Walzer, é permissível e justa independentemente das intenções do agente que lhe promove, desde que o salvamento seja realizado.

A figura do resgate na casa em chamas ajuda a entender a explicação de Walzer. Imagine uma casa em chamas com pessoas trancadas no quarto. Imagine que um dos vizinhos tem interesse em ajudar as vítimas com a intenção não revelada de num futuro próximo lhe pedir um favor. Imagine que as pessoas vítimas do incêndio tenham influencia ou alguém que interesse ao socorrista. Ele entra na casa em chamas e salva as vítimas. Se o importante é salvar a vida da vítimas em perigo, importa que as intenções do agente que salva sejam desinteressadas ou "puras"? Para Walzer, não é moralmente relevante avaliar quais são as intenções do agente, o importante é o resgate. 

Se a intervenção cumprir o objetivo de salvamento, todas as outras questões são secundárias. Podem ter a sua relevância, mas não influem para a decisão sobre a permissão de intervir. 


(e) Qual ou quais devem ser os procedimentos durante uma intervenção?

Dificilmente alguma teoria conseguiria esgotar a possível lista de critérios normativos capazes de delimitar todos os procedimentos que ocorrem durante uma intervenção humanitária. Walzer apresenta os seguintes critérios.

Primeiro a intervenção deve seguir a regra quick-out. Por ser uma excepcionalidade, dadas as circunstancias, o agente interventor deve ser o mais ágil em operar o resgate e imediatamente retirar-se do ambiente que sofre a intervenção. 

Durante o processo de intervenção, a vida de civis não deve ser ameaçada para além daquilo que não se poderia prever. Walzer entende que civis não devem sofrer danos, pois não ameaçaram nem são responsáveis pelo combate, portanto não se colocam em posição de terem suas vidas ameaçadas. 

As estratégias de combate não devem ser executadas para poupar a vida de tropas ao mesmo tempo em que retarda a obtenção do objetivo da intervenção, o resgate. A questão aqui é utilizar de estratégias como bombardeios, ataques indiretos, ataques cirúrgicos, que afetam a vida do agente que promove a grave agressão, com intuito de evitar o combate direto, poupando a vida de soldados, mas, ao mesmo tempo, permitem a continuidade da matança por um tempo maior do que um combate direto poderia evitar. Não é justo, segundo Walzer, que para evitar mortes de soldados civis continuem a ser massacrados por um tempo maior. 

A figura do salvamento é bem marcante e influencia no raciocínio moral defendido por Walzer. A cada momento que o cálculo prudencial é feito ou que se visa poupar a vida de resgatadores em detrimento do sujeito que precisa ser salvo, se está permitindo que as vítimas continuem a sofrer com a grave violação. 


(f) Como se deve encerrar as Intervenções humanitárias

As Intervenções devem se encerrar tao logo o salvamento tenha ocorrido. A regra quick-out deve ser sempre o guia da intervenção. Porém, existem algumas possibilidades e circunstancias em que a saída das tropas interventoras não é possível. Nesses casos, a manutenção da intervenção pode representar a garantia de que novos massacres não ocorram. Três situações são esboçadas por Walzer.

(a) Situações em que o massacre foi tão violento que destruiu as mais básicas instituições e recursos humanos. Nesse caso, uma saída precipitada pode trazer  risco de novos massacres dada a perda de instituições capazes de assegurar a ordem e a paz.

(b) Casos em que a saída do agente interventor pode representar o retorno dos agentes assassinos. 

(c)  Estados desintegrados que não exista um controle capaz de exercer a proteção dos povos massacrados dado que as próprias violações são executadas por agentes não estatais. 

Nesses três casos, dado que a intervenção representa uma operação de salvamento, sair rapidamente pode significar o retorno das violações massivas. 


(III) Alguns pontos para futuras discussões

A primeira consideração que tenho a fazer na argumentação de Walzer é a figura utilizada por ele do salvamento. Walzer enfatiza muito o elemento da emergência e isso faz com que outras considerações sobre a justica das intervenções fiquem apagadas. Peguemos o exemplo do incêndio.

  • "Um casa pega fogo, sei que pessoas estao lá morrendo, trata-se de uma emergência. Não exito em ajudar. Entro e salvo a vida das pessoas".

Se formos julgar a ação do sujeito que decide fazer o salvamento não seria plausível achar que ele fez algo errado. Nós o apoiaríamos. Mas a discussão acerca da justiça da situação não se encerraria nesse ponto. Nós perguntaríamos onde estão as autoridades competentes que deveriam estar de prontidão para o salvamento, bem como deveriam estar agindo preventivamente para evitar problemas como incêndios. A imagem que Walzer transmite é de um cenário em que as instituições sempre serão inábeis e lentas. Se na realidade elas o são, isso nao elimina o dever que elas teriam de agir em tempo hábil e, mais importante, preventivamente. 

Intuitivamente, entendo, nós não achamos errado um agente não oficial agir, mas intuitivamente nós também queremos que os responsáveis pelo salvamento sejam as autoridades que nós elegemos para isso. No cenário internacional nós temos essas autoridades. A ONU tem essa responsbilidade dada pelos tratados que a Sociedade Internacional celebrou em sua constituição. Do ponto de vista moral, podemos dizer que o salvamento feito por um agente não oficial pode ser correto, mas não é mais correto do que o salvamento por parte daquelas autoridades que nós elegemos. Assim, podemos aceitar o salvamento pelo agente unilateral como uma execeção, mas, não como uma regra como quer Walzer.

Entendo que Walzer enfatiza muito a questão da urgência, sua defesa das vítimas é importante, mas isso não anula os nossos juízos mais refletidos sobre o tema. Quando o fogo passa, queremos saber porque aqueles que têm a obrigação primária de agir foram omissos e lentos. Se não fosse assim, porque as autoridades buscariam cada vez mais a eficiência e a prevenção em nome da proteção de seus cidadãos.

Bom, isso nos levaria ao seguinte ponto. Walzer está trabalhando com o cenário da inoperância das instituições internacionais. Primeiro a inoperância das istituições internacionais não deve ser um elemento que define a natureza de um dever como o resgate de uma comunidade que se encontra em risco. Se o dever não for estabelecido num cenário em que exigimos o máximo e o certo do ponto de vista moral, como poderemos criticar e modificar as instituições atuais. Em segundo plano, não existe do ponto de vista prático como entender a inoperância como uma forma legítima de ação dos Estados. 

Contudo quero observar aqui que as relações internacionais assumidas por Walzer poderiam muito mais ser enquadradas num cenário ou época da guerra fria. Walzer é demasiado estatista e concebe as relacoes internacionais num sentido que entendo ser também minimalista. Os Estados são unidades separadas e estanques em que suas decisões ainda podem ser tomadas sem consideração as relações de interdependência que a globalização nos trouxe. Quando Walzer escreve sobre a sociedade internacional ele defende um pluralismo de instituições responsáveis pelos avanços das liberdades. Mas, sempre, o principal agente é o Estado. Ele ainda é o detentor da soberania. Isso eu ainda tenho que analisar nele. Mas, a impressção que tenho é a de que Walzer não atualizou sua fotografia do mundo depois da Guerra Fria. 

Publicado originalmente em: Observatório Cosmopolita