quarta-feira, 18 de outubro de 2017

O que é e o que tem sido a filosofia do direito? (Por José Reinaldo de Lima Lopes)

Imagem relacionada
Escolas, correntes, controvérsias têm marcado, ao longo do tempo, a evolução do pensamento sobre o direito
José Reinaldo de Lima Lopes

O direito, embora sendo uma das mais tradicionais disciplinas universitárias, cujas primeiras escolas datam do final do século 11, está constantemente em busca de identidade. Pode ser porque o objeto da discussão e do conhecimento jurídicos tem um caráter peculiar: normas não existem como as coisas materiais, não ocupam lugar no espaço, não têm uma realidade molecular. E, mesmo assim, poucos diriam que direito ou normas jurídicas não existem, ou não passam de ficção, ou fantasias como o Papai Noel ou o unicórnio. O direito assemelha-se a outras práticas segundo regras, como jogos ou línguas. Embora línguas e jogos não existam como objetos moleculares, todos lhes reconhecem uma existência objetiva, e, apesar de frutos da ação humana, não podem ser mudados por seus falantes ou jogadores individuais. Fazer perguntas sobre esta natureza curiosa das regras e sistemas jurídicos é uma das ocupações principais da filosofia do direito.
Ela se ocupa desses aspectos mais gerais e abstratos dos sistemas jurídicos e abre-se em diversas correntes que os explicam de formas variadas. É tradicionalmente feita pelos próprios juristas, embora também filósofos dela se ocupem, e hoje é ensinada em todos os lugares em que se ensina direito nas universidades. Não é por acaso, pois várias das perguntas feitas pela filosofia do direito são também as que os juristas se fazem especialmente quando chamados em casos difíceis a aplicar o seu conhecimento: casos novos diante de leis velhas, propostas de novas leis para novos casos, propostas de novas leis para casos velhos e assim por diante. Por isso, problemas da filosofia do direito são às vezes desdobramentos de dificuldades que qualquer jurista encontra para aplicar a lei ao caso concreto.
É a atividade de conhecer e aplicar as leis, com seus inúmeros problemas concretos, que estimula o pensamento filosófico a respeito do direito. Qual a lei a aplicar? A lei que se pretende aplicar está em vigor? É compatível com as outras leis existentes? As leis novas revogam as leis velhas, ou, pelo contrário, os costumes, sendo por definição mais estáveis, devem ser preferidos a inovações? Pode o poder político mudar tudo a qualquer tempo ou há limites? Os limites são tradicionais ou racionais, particulares ou universais? A lei é um capricho de quem tem o poder ou a força para impor sua vontade ou é alguma coisa que se pode compreender e justificar com motivos mais ou menos plausíveis e aceitáveis por qualquer um? E a grande questão de todas: a decisão, a norma, a sociedade são justas? Por qual critério medir sua justiça? Como a filosofia não procede por simples dedução das coisas, mas por reflexão crítica ou refutação das opiniões normalmente aceitas, as perguntas da filosofia do direito procedem, no fundo, de perguntas de juristas feitas em chave filosófica.
Algumas questões dizem respeito à condição de existência das regras e sua aplicabilidade: são questões de teoria geral do direito. Outra série de questões, no entanto, pode surgir do desconforto evidente que certas soluções previstas trazem para casos concretos que estão em julgamento: dizem respeito ao sentido geral de um sistema jurídico, são questões de justiça e eqüidade, são propriamente da filosofia do direito. Nos últimos anos são estes campos que em geral ocupam os filósofos do direito: questões da natureza, questões de interpretação e questões de justiça dos sistemas normativos.
Quanto à natureza, pode-se dizer que as várias correntes de filosofia se distinguem pela idéia que fazem da realidade do direito. Para algumas, o direito pode e deve ser visto como um objeto que se conhece de fora, como um fato. Bastaria adaptar ou refinar os métodos das ciências sociais ou naturais para se fazer uma verdadeira ciência do direito. É a busca pelo tratamento científico do direito. Conhecer efetivamente o direito seria, para essas escolas, conhecer o fato social do poder, como se produz e como se mantém. Teoria do direito e ciência do direito equiparam-se, assim, a um ramo específico das ciências empíricas do mundo social. Essa corrente tem uma representação clara no realismo americano e escandinavo.
Para outras, o direito é normativo e a disciplina que dele se ocupa é descritiva das normas. Dentro dessa tradição surge um dos mais importantes juristas do século 20, Hans Kelsen (1881-1973). Para ele há uma clara divisão entre o direito como é e o direito como gostaríamos que fosse. A disciplina que entende das regras e de sua lógica interna é propriamente uma teoria pura do direito. O direito tal como gostaríamos que fosse é objeto de especulação político-filosófica, mas justamente por ser filosófica esta especulação não seria propriamente uma ciência do direito. Estudar o direito não é fazer análise social nem prescrever o melhor para a sociedade, mas apreender o arcabouço formal das regras vigentes (estudo estrutural ou estático) e as formas jurídicas pelas quais as normas jurídicas ganham ou perdem existência (estudo funcional ou dinâmico).
Outros ainda, concordando com a distinção entre o que é e o que gostaríamos que fosse, criticaram tanto o realismo quanto posturas kelsenianas. O realismo se equivoca, segundo eles, pois confunde uma regularidade empírica com uma regra de ação (uma prescrição ou um guia de ação). Entre os críticos desse realismo encontra-se o outro grande jurista do século 20, Herbert Hart (1907-1992). Para ele a regra não é apenas comando: logo, explicar o que são regras jurídicas apenas pelos fatos do poder (como os realistas) ou pela validade e condicionalidade (como Kelsen) seria um erro. Como explicar, com estas duas vertentes, regras que não impõem penas mas negam validade a certos atos (uma eleição nula ou um contrato nulo, por exemplo)? Como explicar que as pessoas cumprem regras não por medo, mas por consciência de uma obrigação (parar no sinal vermelho, por exemplo)? Para Hart o direito é uma prática social regrada (como um jogo), em que o poder puro e simples ou a ameaça da autoridade não explicam tudo. Embora seja possível distinguir a regra existente daquilo que eu gostaria que fosse a regra, não se pode entender uma regra “do lado de fora”: se entendo a regra, sou capaz de agir (ou não) de acordo com ela. Logo, conhecer direito é sempre admitir que há uma regra (em princípio) e que seguir uma regra é uma prática social. Hart deve muito ao ambiente em que se formou, a Inglaterra, berço da filosofia da linguagem e da filosofia analítica. Foi em Oxford, onde Hart viveu e lecionou muitos anos, que uma nova filosofia começava a nascer e na qual o uso da razão e da palavra para “fazer coisas” aparecia na obra de John Austin (1911-1960) ou em Wittgenstein (1889-1951) ou na filosofia moral em diversos autores, como Richard Hare (1919-2002) e John Mackie (1917-1981), ou mesmo em Bernard Williams (1929-2003) e Donald Davidson (1917-2003).
Como um sistema de regras, o direito só é compreensível ou racionalizável se for possível apreender justificativas gerais para as regras, dizem outros. De outra maneira ninguém aprenderia direito, simplesmente obedeceria a cada ordem recebida. O importante é, portanto, analisar como o direito nos habilita a pensar por regras. Assim, de um debate sobre a natureza do “sistema jurídico” chegamos a um debate sobre o “raciocínio jurídico”. Novas correntes colocaram no centro das atenções o processo de deliberação segundo regras. Ao fazerem isso, deslocaram o lugar privilegiado que as proposições (proposições normativas) antes ocupavam e, em seu posto,  destacaram a decisão. Nessa ordem de idéias um primeiro movimento importante foi retomar o estudo da chamada razão prática: algumas linhas concentraram-se no estudo do discurso que expõe razões para agir antes que no discurso que fala do mundo. Surgiram então duas importantes correntes: em primeiro lugar, a nova retórica, cujo nome mais importante ficou sendo o de Chaim Perelman (1912-1984), para quem a compreensão melhor do que é o direito dá-se com a compreensão melhor do que é o raciocínio de justificação de decisões, o raciocínio retórico (não demonstrativo). A segunda corrente tomou formas exemplares na obra de Neil MacCormick (1941-) e Joseph Raz (1939-), cujos estudos sobre o raciocínio jurídico devolveram um lugar privilegiado à razão no direito.
Pode-se talvez acrescentar uma terceira vertente: as correntes hermenêuticas, como a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer (1900-2002). Para essa corrente, toda relação de conhecimento é uma relação de interpretação, não de pura e simples descrição, e o direito oferece o caso mais exemplar de interpretação, que se dá sempre no tempo e na tensão entre passado e futuro. Gadamer abre uma porta para o diálogo com o direito, que já havia sido tentada antes por Emílio Betti (1890-1968). Gadamer e Betti, no entanto, tendem ainda a imaginar o direito e as normas a aplicar como objetos, enquanto as escolas analíticas assemelham-nos mais a jogos, de forma que entender regras é entender um jogo complexo, não apenas entender conceitos, conotações, denotações ou mensagens.
Dentro da larga família dos interpretativistas surgiu a obra de Ronald Dworkin (1931-). Ele insiste que o direito não é um objeto dado, como seria um simples conjunto de normas. É uma “prática interpretativa” e, como tal, é uma espécie de criação coletiva cuja unidade surge da referência comum a critérios normativos não só jurídico-positivos, mas dotados de sentido político-moral. Os que participam de alguma ordem jurídica não apenas obedecem a regras comuns, mas têm uma referência comum de caráter moral e político. O direito depende, pois, de uma certa integridade (pela qual os agentes se integram a um projeto comum). A filosofia de Dworkin tornou-se muito influente para além do mundo anglófono no qual se originou. Apesar de propor sua teoria como resposta ao positivismo de Hart, foi bem recebido na Europa, onde encontrou um interlocutor filosófico, Jurgen Habermas (1929-).
Essa atenção ao processo decisório, segundo uma forma de discurso – o discurso prático ou o discurso hemenêutico –, permitiu rever as relações entre moral e direito. Norberto Bobbio (1909-2004) é um caso bastante significativo da encruzilhada em que se achou a filosofia do direito na segunda metade do século 20. Quando sua obra atingiu a maturidade e seu nome foi mundialmente reconhecido, seu estilo analítico de expor a teoria do direito devia muito à crítica kelseniana, e separações e distinções – uma delas a de direito e moral – eram freqüentes e centrais, entre elas a separação direito-moral. Com o passar do tempo, à medida que se aproximava mais e mais da reflexão sobre o poder, viu no direito um viés finalista, e a presença de certos valores, como a liberdade e o respeito à pessoa, ficou cada vez mais importante em sua reflexão. Bobbio permaneceu, porém, um positivista, como Hart: ambos nunca se negaram a debater as questões morais de seu tempo, mas não acreditavam que o direito por si os habilitava a tal. Isso vale para muitos autores das últimas décadas do século 20 e começo do século 21.
Se o pensamento segundo regras ganhou destaque, viu-se com maior clareza que ele é um “caso especial” do raciocínio prático em geral (Robert Alexy) e, portanto, voltou-se a debater sua relação com outra esfera da razão prática, o raciocínio moral. O retorno do diálogo entre direito e filosofia moral teve vários ensaios e tentativas. Em primeiro lugar tentou-se um retorno via direito natural, mas sem sucesso. Leo Strauss (1899-1973) e Michel Villey (1914-1988) talvez sejam os nomes mais conhecidos de uma série de autores que viram no direito natural uma resposta aos horrores dos regimes totalitários do século 20. O direito natural de que falavam, porém, pressupunha consensos infactíveis em sociedades pluralistas e pós-tradicionais e mostrava um caráter quase “restaurador”. Era um herdeiro do direito natural concebido como filosofia moral geral.
Se algum sucesso poderia vir na linha do direito natural foi conseguido por John Finnis (1940-). Apesar de Finnis propor certos bens como evidentes, o mais original de seu pensamento está no caráter analítico de seu trabalho e no destaque dado pela função crítica do direito natural nos seus grandes teóricos clássicos. Em sua leitura, o que determina o direito natural é o uso adequado (e crítico) da razão na sua atividade prática (de escolha e decisão). O direito natural não é um conjunto de comandos vindos de um legislador sobrenatural, mas a razão aplicada às escolhas. Pode-se falar de direito natural partindo-se da evidente necessidade de cooperação na vida humana. Como ele e outros na sua mesma corrente de pensamento insistem em dizer, o direito natural não é sobrenatural e, por isso, não deve ser pensado a partir de outra realidade que não a realidade da sociabilidade humana.
Outra vertente procedeu de Karl-Otto Apel (1922-), e ficou conhecida como a ética do discurso. Nela, Apel propõe uma leitura da tradição kantiana (a moral da consciência) modificada pelo relevo dado à condição de possibilidade da consciência que é a língua, de modo que ao sujeito individual (solipsismo) deve-se substituir o sujeito socializado, que participa de uma comunidade ideal (como é uma comunidade lingüística abstrata), e decide efetivamente em uma comunidade real (os seus interlocutores empíricos). Por esse projeto, Apel salva a pretensão moderna de universalidade do discurso sobre direitos, mas concede que esta universalidade é um elemento crítico social da vida segundo regras. A tarefa moral nunca completada, mas sempre factível, é mudar as comunidades empíricas em função de comunidades ideais. Dessa filosofia de Apel nasceu uma importante corrente, cujo nome mais destacado é o já mencionado Jurgen Habermas.
Essas vertentes contemporâneas contrapõem, pois, o caráter moral do direito ao debater sua pertença a uma esfera de racionalidade. Pode-se afirmar que afinal de contas o raciocínio jurídico assemelha-se ao raciocínio moral, mas não se interessa pela moral inteira. O ordenamento jurídico, em uma sociedade complexa e não tradicional, não quer fazer os homens bons, de modo que o aspecto da moral que abrange deve contentar-se em tratar da virtude pública por excelência, a justiça. Esta, tradicionalmente, era considerada a razão mesma de ser do direito, pois era (e é) a virtude da definição e da aplicação das medidas entre os seres humanos que convivem.
Essas correntes dialogam de uma forma ou outra com uma das obras de maior repercussão na filosofia moral da segunda metade do século 20, Uma teoria da justiça de John Rawls (1921-2002), e mesmo com alguns de seus interlocutores (críticos), como Brian Barry (1936-), ou opositores – os comunitaristas, como Charles Taylor (1931-). Ao propor a crítica da sociedade contemporânea pelo critério da justiça, Rawls sugere que as instituições, aí incluído o direito de uma sociedade, possam ser medidas por princípios de justiça. Esses princípios não são, e não podem ser, descritivos, mas normativos. Dessa forma, regras de distribuição e comutação fazem ou não sentido conforme medidas por tais critérios. A porta estava aberta outra vez para o velho confronto entre os céticos e empiristas (exemplarmente representados na história da filosofia ocidental por Trasímaco na República de Platão), e os jusnaturalistas e racionalistas (representados pelos clássicos do direito natural), e talvez esse confronto volte a ter interlocutores na filosofia do direito no século 21.

José Reinaldo de Lima Lopes
é professor associado da Faculdade de Direito da USP e da Escola de Direito da FGV (SP) e autor do livro Palavras e a lei
Fonte: Revista Cult Online

Nenhum comentário:

Postar um comentário