· A fenomenologia[1] de Martin Heidegger (1889-1976) nasceu como uma alternativa ao que parecia ao filósofo enclausurar o pensamento ocidental: a metafísica tradicional e o positivismo. A metafísica era a de Platão, na Antiguidade, e tipicamente a de Descartes, nos tempos modernos. O positivismo era não só o de cunho filosófico-sociológico, mas também e principalmente o positivismo lógico, interno à escola da filosofia analítica e exposto pelo Círculo de Viena. Criticando essas escolas de filosofia, Heidegger retomou o que seria o pensamento ontológico, isto é, a busca de uma filosofia que pudesse “desvelar o ser” – o que é. Essa filosofia deveria nos tirar da experiência envolvida com o pensamento de características dualistas da metafísica e do positivismo.
· Mas o que era o dualismo no pensamento, que desgostava Heidegger?
· Heidegger viu na metafísica, segundo o modelo platônico-cartesiano, o nascimento do pensamento dualista, expresso sempre por dicotomias. Em Platão, a dicotomia privilegiada foi a de real-aparente. Nos modernos, a dicotomia real-aparente ganhou uma cobertura epistemológica, gerando a dicotomia sujeito-objeto. Esse tipo de pensamento teria se casado com o Humanismo. O fruto dessa união teria provocado um enfraquecimento da filosofia – o desvio de seu caminho autêntico. Isto é: o desvio de toda a reflexão ocidental.
· Os modernos, imaginando terem se libertado da metafísica – e este era o ideal positivista – teriam sucumbido a uma nova forma de metafísica, aquela em que o projeto cartesiano seria o modelo par excellence. Heidegger chamou a metafísica moderna de “metafísica da subjetividade”.
· A modernidade teria reduzido a filosofia a uma discussão sobre a relação, tipicamente epistemológica, entre sujeito e objeto. Segundo Heidegger, o sujeito foi definido como o substrato, o que subjaz a tudo, capaz então de gerar ele próprio o objeto. O objeto, por definição, só é objeto para um sujeito. O sujeito representa para si e em si o objeto – ou como algo que é descoberto ou como algo que é criado pelo sujeito. Até aí, meio problema. O problema mais desagradável teria sido a aliança disso tudo ao Humanismo.
· Com essa aliança, o sujeito passou a ser o homem, e o objeto o mundo. Tudo que se faz no mundo se faria para o homem enquanto sujeito; ou melhor dizendo: o homem seria o palco do mundo e, ao mesmo tempo, o legitimador de tudo que efetivamente existe. O que existe não existiria por si, mas apenas para o homem-sujeito e no homem-sujeito. O mundo todo teria passado a ser não mais o que se faz presente, mas o que é re-presentado no palco chamado homem. Este, o sujeito, seria o fundamento de tudo. O mundo todo teria se transformado, então, em concepção do mundo ou imagem do mundo – aquilo que o homem produz para si mesmo, em seu palco que, enfim, seria o próprio mundo.
· E Heidegger não parou nisso. A noção de representação não poderia deixar de trazer, junto, a idéia de representação exata, isto é, a verdade. Ele viu a noção de representação exata – a verdade correspondencial – como o que é produto do homem ou como o que é encontrado pelo homem. O que isso implicou? Simples: se tudo ganha a propriedade de existência na medida em que é re-apresentado pelo homem, tudo se comporta, ontologicamente, enquanto o que é passível de manipulação – em todos os níveis – pelo homem. Isto é, o sujeito, que é então o homem, não tem outra função que não se relacionar com o objeto. Assim, tudo no mundo, se é para o sujeito, nada é a não ser objeto. O mundo, e o próprio homem nele, são transformados em objetos – em algo manipulável. O homem é o manipulador do homem. Eis no que desembocaria o Humanismo.
· Ao seguirmos este raciocínio, três conseqüências emergem sem dificuldades, especificamente nos campos filósofo, cultural e da vida cotidiana. Na filosofia, a situação denunciada por Heidegger teria produzido a hegemonia da epistemologia: a pretensão de se estabelecer uma teoria para descrever como que o homem descobre ou produz o saber, o que nada seria senão a manipulação em pensamento do meio ambiente. Na cultura, isso teria produzido o domínio da ciência sobre outras manifestações. O resultado: a preponderância do tipo de saber exclusivamente metodológico sobre qualquer outro tipo de saber. No âmbito da vida cotidiana, a tecnologia teria se tornado comandante de tudo o mais. A tecnologia, enfim, teria se transformado no afazer par excellence do homem moderno. Todas as coisas que nos cercam teriam assumido uma única característica, a de ser recurso – o que “rende” e que “não rende”. Nós mesmos nos veríamos assim. Pela educação, principalmente, estaríamos sempre procurando sermos transformados em elementos mais habilidosos para nos mostrar como recurso, tais como os objetos ao nosso redor. Todo nosso propósito seria o de nos fazermos passíveis de troca. Um propósito que pudesse ser chamado de essencial, isto é, imanente às entidades do mundo, teria desaparecido na medida em que nós e todas as coisas do mundo simplesmente teríamos passado a pertencer ao campo da circulação dos objetos imposta pela tecnologia.
· Com a fenomenologia, Heidegger quis escapar desse mundo em que nosso encontro com as coisas e conosco mesmo nos faria imediatamente manipuladores e, então, dominadores e dominados ao mesmo tempo. A manipulação e a dominação implicariam em violência – violência física inclusive. Essa violência teria um corpo bem determinado: a cabeça seria formada pela filosofia enquanto epistemologia ou como “metafísica da subjetividade”, o seu coração seria a ciência e, enfim, as mãos seriam a tecnologia. A violência não seria ilegítima, uma que tudo teria se transformado em peça, em recurso, em coisas que rendem ou não rendem. E tudo que é recurso, coisa, poderia ser violentado sem grandes reclamações. Como a fenomenologia tiraria seu adepto dessa condição?
· Heidegger propôs que viéssemos a perceber o quanto a filosofia como epistemologia, a cultura como Humanismo e a ciência como tecnologia poderiam ser deixadas de lado para que pudéssemos voltar a conviver com o que teríamos perdido: o ser – aquilo que é e que se mostra, e não o que é representado. Que caminho seguir para realizar algo assim? A filosofia que retoma a linguagem e dá a devida atenção a ela deveria apontar um de nossos caminhos. A filosofia poderia se voltar para a linguagem, mas de um modo completamente diferente do que estaria sendo ensinado pelos filósofos analíticos. Nenhuma análise da linguagem daria bom fruto. Não teríamos de reduzir a linguagem para que ela ficasse como que um código simples e, então, pudesse ser colocada em paralelo com o que seriam a sensações, para nos dar o que seria chamado de “contato real com o mundo” – este seria o projeto da filosofia analítica, na sua versão positivista; o projeto inimigo de Heidegger.
· Teríamos de voltar a experienciar a linguagem segundo o que aparece, segundo o fenômeno da linguagem, de modo a deixar aquilo que é – o ser – se manifestar em sua morada. Deveríamos deixar a linguagem se mostrar como ela é – como o que fala para nós e por nós, e não o que é falado segundo nosso comando de pretensos sujeitos.
· Um exercício pode levar ao entendimento do que Heidegger planejou para escapar da condição moderna e deteriorada em que estaríamos vivendo. Por exemplo, olhe você para determinada paisagem na sua janela e comece a descrever o que vê. Perceba que cada coisa que enuncia – prédio, carro, árvore, cachorro – não indica uma experiência sua com o que é enunciado, por sua deliberação. Perceba que cada palavra enunciada já estava dada antes, criada e estabelecida junto de toda uma rede de outras palavras; ou seja, tudo que você aprendeu como sendo uma semântica e uma sintaxe que dão o norte, o rumo, o conteúdo e tudo o mais do que pode fazer ao falar do que fala. Todavia, a paisagem e tudo nela podem deixar de serem percebidos como nomes dados por você, e podem aparecer como efetivamente são. Isso tudo é o que a linguagem diz; e a linguagem é essa rede anterior a você. Essa experiência fenomenológica pode ocorrer, se você ouvir a linguagem. É ela, a linguagem, que fala, e não você que fala com ela. Nela, na linguagem, há a experiência originária – mas não é a sua experiência se você não a escuta. Não é a experiência autêntica se você, em vez de escutar a linguagem, escuta apenas a você mesmo falando. Efetivamente, a experiência fenomenológica mostra que caímos nela, na linguagem, e ela fala por nossa boca. Não enxergamos nada do que pensamos que estamos enumerando e falando em uma descrição, pois o que efetivamente ocorre é a linguagem falando. Então, o melhor é prestar atenção nela e, com sorte, ouviremos o que é – o ser que se manifesta em sua morada, a linguagem. Olhamos para a janela, mas não vemos o que a ciência diz que vemos e o que imaginamos que seria uma experiência. Vemos a luz? Não! Vemos uma coisa. Mas que coisa? A ciência diz que é a luz, por meio de ondas, atinge a coisa e, então, pega nossa retina – e assim vemos a coisa que está diante de nós e emitimos um som com o qual damos nome àquela coisa. É isso? Nada disso. Não vemos a luz ou ondas. E a coisa que vemos só se delimita, só ganha contorno, só recebe algum significado por já estar prenhe de significado na teia da linguagem, e de modo algum fomos nós os autores do significado. Em uma experiência autêntica, para além do que a ciência ensina que é a experiência, vemos coisas que são o que são por estarem se manifestando como som emitido pelas palavras da linguagem; ou seja, ela própria, a linguagem, usando nossa boca, nos fala e fala para todos – nela, em sua rede, há o significado e, então, o som se faz som, palavra. Temos a capacidade de ouvi-la? Essa capacidade de ver o fenômeno da linguagem, nessa dimensão profunda que escapa do modo moderno de conversar (este que implica no sujeito-objeto e na representação) foi o método Heidegger. Foi isso que, em boa medida, ele propôs como filosofia.
Paulo Ghiraldelli Jr, o filósofo da cidade de São Paulo
[1] As raízes da fenomenologia podem ser encontradas no filósofo alemão Franz Brentano (1838-1917). Seu desenvolvimento se deu com outro filósofo alemão, Edmund Husserl (1859-1938), com que Martin Heidegger (1889-1976) estudou. Essa escola de pensamento alimentou uma corrente que teve muitos adeptos no decorrer do século XX, especialmente na França – o existencialismo. Pertenceram ao existencialismo Jean Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986).
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