O capitalismo como religião é uma compilação de ensaios e textos que revela a força e a criatividade do grande pensador alemão
Por Fabio Mascaro Querido* |
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Poucos autores foram objeto de uma recepção pós-morte tão
vigorosa e heterogênea como Walter Benjamin (1892-1940). Subestimado em
vida, tanto por sua inaptidão em lidar as coisas "práticas" quanto pelo
caráter inclassificável de sua obra, o filósofo judeo-alemão tornou-se,
após sua morte, uma verdadeira celebridade em certos círculos acadêmicos
e intelectuais. Rejeitado pela Universidade de Frankfurt em 1925, após o
rechaço de sua tese de habilitação sobre a
Origem do Drama Barroco Alemão,
Benjamin transformou-se - em uma daquelas paradoxais ironias da
história -, em presença obrigatória no mesmo ambiente (a universidade)
que lhe negara acesso.
E não por acaso, o crescimento exponencial da recepção acadêmica
de sua obra, a partir da década de 1960, acompanhou-se da tendência em
confiná-la em algum campo específico do conhecimento, destituindo-a,
assim, do seu significado político "profundo", enraizado em suas
reflexões sobre a história e a modernidade. Nesse contexto, o
reconhecimento das múltiplas dimensões do pensamento complexo, paradoxal
e hermético de Benjamin, destacando, ainda, a faceta política de suas
reflexões, não constitui em uma tarefa das mais fáceis.
"O passado leva consigo um índice secreto pelo qual é remetido à redenção"
Walter Benjamin II, "tese sobre o conceito de história"
Daí a importância decisiva de livros como a coletânea
O capitalismo como religião (Boitempo Editorial), organizada por
Michael Löwy.
Por meio da meticulosa escolha de ensaios pouco ou nada conhecidos do
autor alemão, "verdadeiras minas de ouro", pode-se visualizar a
tentativa, por parte do organizador (tal como ele mesmo indica no
prefácio), de ressaltar o fio vermelho anticapitalista que percorre toda
a trajetória intelectual de Benjamin, desde os seus primeiros textos no
começo da década de 1910 às
Teses sobre o conceito de história, redigidas meses antes de seu suicídio em 1940.
Por isso mesmo, malgrado a significativa variedade filosófica e
temática, os dezessete (17) textos incluídos no livro são movidos, e é
este o principal critério de seleção, por uma "crítica radical
(romântico-revolucionária) da civilização capitalista industrial
moderna". Para Löwy, (cuja leitura benjaminiana é explicitamente
política), o "brilho" especial deste "dissidente da modernidade" que foi
Benjamin encontra-se na forma como logrou articular, na crítica da
civilização capitalista moderna, fontes oriundas do romantismo alemão,
do messianismo judaico e, após 1924-1925, do marxismo libertário - que
dá um novo rumo às suas utopias anarquistas de juventude.
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Michael Löwy
Nascido em São Paulo em 1938, filho de judeus oriundos da
Áustria, Michael Löwy é filósofo e sociólogo marxista, é professor e
diretor de pesquisas do Centre National de la Recherché Scientifique, na
França, e autor de diversos livros e ensaios sobre Karl Marx, Walter
Benjamin, Rosa Luxemburgo, Lucien Goldmann, entre outros. |
A "adesão" ao marxismo não significou, em Benjamin, um abandono
das intuições românticas e teológicas que habitavam seu pensamento.
Muito ao contrário, será a persistência desses elementos
romântico-teológicos - que estimulada pela assimilação, que Benjamin,
assim como vários outros jovens intelectuais judeus de sua geração,
concentra sua revolta - a Carta ao pai, de Franz Kafk a, constitui
talvez a melhor expressão do "conflito geracional". No caso do jovem
Benjamin, esta revolta ética foi um dos grandes estímulos à sua
militância, de 1912 a 1914, no
Movimento da Juventude Livre Alemã, tutelada por seu amigo Gustav Wyneken.
Assim, se no curioso "Discurso sobre a religiosidade do nosso
tempo" (1912), Benjamin já revelava a preocupação em torno da
possibilidade de uma "nova religiosidade" - entrevista por ele nos
círculos dos literatos -, no discurso (jamais proferido) "Romantismo",
do ano seguinte, ele não hesita em proclamar o advento de uma "nova
juventude, a juventude sóbria e romântica", distinta do "falso
romantismo", uma juventude cuja meta é "a vontade romântica para a
beleza, a atravessam seus escritos "como uma corrente elétrica",
"alimentando algumas de suas principais
iluminações profanas" (p.
17) - que dará ao seu marxismo uma qualidade única, a tal ponto que,
conforme sugeriu Hannah Arendt (Walter Benjamin: 1892-1940), ele "foi
provavelmente o marxista mais singular já produzido por esse movimento
que, sabe Deus, teve seu quinhão completo de excentricidades."
A atenção aguçada para o "reverso", isto
é, para a face destrutiva e desumana do progresso técnico, atenção
tipicamente romântica, será uma das características fundamentais do
"marxismo da adversidade" de Walter Benjamin.
MELANCOLIA REVOLUCIONÁRIA
Nascido em Berlim, em 1892, Benjamin viveu uma típica infância
burguesa, cercado pelo ambiente dos judeus ricos assimilados, no qual a
religiosidade resumia-se a uma simbologia difusa, desprovida de
substância concreta. Na juventude, é contra a superficialidade da
religiosidade praticada em casa, reforçada pela "autoilusão" estimulada
vontade romântica para a verdade, a vontade romântica para a ação" (p.
57).
Em 1915, quando a ruptura com os movimentos de juventude estava
consumada, Benjamin conhece um jovem intelectual judeu que será, por
toda a sua vida, um dos seus interlocutores privilegiados: Gershom
Scholem. "Vasos comunicantes", Scholem despertou em Benjamin um
interesse pela dimensão
subterrânea do judaísmo e pelo messianismo judeu, para além da religiosidade meramente protocolar que convivera no ambiente familiar.
São desse período, em meio a primeira grande guerra, os ensaios (reunidos em
O capitalismo como religião)
"Drama barroco e tragédia" e "O significado da linguagem no drama
barroco e na tragédia", textos que contêm, em germe, noções fundamentais
mais tarde desdobradas na tese soabre a
Origem do Drama Barroco Alemão.
No primeiro deles, Benjamin resgata a temática (que já havia aparecido
na conferência "A vida dos estudantes", de 1914) da crítica à
temporalidade "mecânica", "vazia", à qual ele opõe a temporalidade
messiânica. Em sua ótica, o drama barroco - antecipando um tema central
depois desenvolvido em termos marxistas em
Passagens (a
"história-natural", "coisificada", a "fixidez cadavérica" do mundo) -,
"esgota em termos artísticos a ideia histórica da repetição" (p. 62).
O pequeno ensaio inacabado "O capitalismo como religião" (1921),
escolhido como título da coletânea, constitui uma nítida amostra da
capacidade de Benjamin, em um período ainda anterior à descoberta do
marxismo, de mobilizar fontes teológicas na direção da crítica ao
capitalismo. Inspirado no livro de Ernst Bloch,
Thomas Münzer, teólogo da revolução (1921), e no pensamento do socialista libertário
Gustav Landauer,
o filósofo alemão denuncia o capitalismo - na contramão da tese
weberiana da secularização - como um "fenômeno essencialmente
religioso", que se assenta simbolicamente em um culto utilitário
permanente, "sem sonho e sem piedade". Um culto (ou uma "idolatria do
mercado", como diriam mais tarde os teólogos da libertação), ademais,
marcado por uma "culpabilização universal", porquanto conduz a
humanidade, sobretudo os mais pobres, a uma verdadeira "casa do
desespero".
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Gustav Landauer
Teórico anarquista alemão, Gustav Landauer (1870- 1919)
trabalhou como jornalista e tradutor das obras de Shakespeare. Era um
grande leitor de Tolstoi, Proudhon, Kropotkin e Bakunin. |
A recusa da tese de habilitação, em 1925, sob o argumento de que
os membros da banca de avaliação não haviam compreendido uma só palavra
do manuscrito, foi, sem dúvida, um acontecimento decisivo na trajetória
intelectual de Benjamin. O malogro relativamente precoce de toda
esperança de uma carreira acadêmica "estável", ao lado de sua
concomitante proletarização intelectual (sempre na dependência de
trabalhos esporádicos para periódicos), estimulou-lhe alguns anos mais
tarde uma reflexão em torno da responsabilidade e do papel dos
intelectuais em face da crise social e econômica, reflexão que seria
intensificada em seus debates com Bertolt Brecht.
Nesse contexto, a relação de Benjamin com o marxismo, a partir da segunda metade da década de 1920, graças à leitura de
História e Consciência de Classe
(HCC), de Georg Lukács, e à paixão repentina por Asja Lacis
(bolchevique letã que ele havia conhecido em Capri), provocou a ebulição
de um pensamento idiossincrático, profundamente original, que se
revelou por meio de uma escrita singular - na qual, como disse Susan
Sontag: "cada sentença é escrita como se fosse a primeira, ou a última".
Se, a partir de então, o "comunismo radical" - como diz em uma carta a
Scholem - aparecer-lhe-ia como o único caminho possível para a subversão
da ordem burguesa, esta solução se apresenta, quase sempre, sob uma
forma marcadamente "pessimista", tal como se nota no pequeno artigo "As
armas do futuro" (1925), até pouco tempo inédito.
A profunda desconfiança em relação à utilização militar dos
avanços científicos e técnicos modernos para fins destrutivos, exposta
nesse texto, parece aludir antecipadamente tanto ao aforismo "Alarme de
incêndio" (incluído em
Rua de Mão Única, de 1928), quanto à
reivindicação - em seu ensaio sobre o surrealismo (1929) - do
"pessimismo revolucionário" evocado por Pierre Naville - antigo
militante surrealista que havia aderido ao trotskismo.
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Edgar Allan Poe
Edgar Allan Poe (1809- 1849) foi um poeta, contista, crítico
literário e editor americano. Escreveu, entre outros clássicos da
literatura, o conto Os assassinatos da rua Morgue (1941). É autor de um conto muito lido nos cursos de sociologia e antropologia urbana, O homem na multidão (1840). |
Nesse último texto - talvez o mais límpido testemunho do seu
"marxismo libertário" -, Benjamin saúda os surrealistas por seu
"pessimismo integral", "sem exceção", quer dizer, por sua "desconfiança
acerca do destino da literatura", "da liberdade", "da humanidade
europeia" e, "principalmente, desconfiança com relação a qualquer forma
de entendimento mútuo: entre as classes, entre os povos, entre os
indivíduos". Tal defesa de um "pessimismo revolucionário", em
contraposição ao otimismo beato dos apologistas marxistas das
"ideologias do progresso", explica, em grande medida, a hesitação (e
posterior negativa) de Benjamin em aderir ao Partido Comunista,
hesitação que se intensificaria - como resistência instintiva à
emergência de uma nova razão de Estado - após a visita de alguns meses à
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS ou União Soviética)
em 1926/1927, e que o incitaria, anos depois, à admiração pela figura de
Leon Trotsky.
A atenção aguçada para o "reverso", isto é, para a face
destrutiva e desumana do progresso técnico, tipicamente romântica, será
uma das características fundamentais do "marxismo da adversidade" de
Walter Benjamin. Em
O capitalismo como religião, esta crítica
radical do "progresso" aparece de forma surpreendente na resenha (quase
desconhecida), publicada em 1929, do livro de Marcel Brion sobre
Bartolomé de Las Casas, bispo espanhol que tomou a defesa dos índios no
processo de colonização do México.
Escovando a história "a contrapelo" (como ele sugere na sétima
das teses de 1940), ou seja, concebendo-a do ponto de vista dos
vencidos, Benjamin considera a colonização o primeiro estágio da
"história colonialista dos povos europeus", a qual "transforma todo o
novo mundo conquistado em uma câmara de tortura" (p. 171). Daí sua
simpatia por Las Casas, que, "em nome do catolicismo", contrapôs-se "aos
horrores cometidos em nome do catolicismo" (p. 172). Em sintonia com o
marxista peruano José Carlos Mariátegui, ou com as recentes teorias
latino-americanas da "descolonização", Benjamin visualiza no "processo
pavoroso da conquista" as origens sangrentas do desenvolvimento do
"progresso" moderno.
Compreende-se, assim, o entusiasmo que Benjamin nutria pela obra
do antropólogo suíço Johann Jakob Bachofen (tido como reacionário), cuja
noção de matriarcado ele enxergava os traços de um "comunismo
primitivo", "imagens de um passado remoto" (como diz o autor em uma
resenha do livro de Bernoulli sobre Bachofen) que habitam o
"inconsciente coletivo", e que, em plena modernidade, poderiam servir
como fonte de inspiração para a utopia projetada para o futuro. Isso
porque, à diferença das sociedades capitalista- modernas, as sociedades
arcaicas seriam detentoras de um aspecto decisivo para qualquer utopia
futura: a harmonia entre o homem e a natureza, que também pode ser
encontrada - conforme mostrará Benjamin no primeiro "Exposé" (1935) das
Passagens ("Paris, capital do século XIX") - no pensamento do
"socialismo utópico" francês Charles Fourier. Associando a abolição da
exploração do trabalho humano e a abolição da exploração predatória da
natureza, Benjamin manifestou uma espantosa (para a época)
"sensibilidade ecossocialista", segundo defende Michael Löwy (p. 19).
ATEÍSMO RELIGIOSO OU TEOLOGIA SEM DEUS
A persistência de um elemento teológico nas reflexões "marxistas"
de Benjamin configura um dos aspectos mais paradoxais do seu pensamento,
e o eixo em torno do qual se desenvolveram as principais divergências
interpretativas entre seus leitores. É em seu último texto, as "teses"
de 1940, que essa estranha e original relação entre marxismo e teologia,
política e religião, apresenta-se de modo definitivo, sobretudo na
primeira tese: mesmo "pequena e feia", e sem "se deixar ver", a teologia
é uma aliada imprescindível para que o "materialismo histórico" "ganhe"
a partida. À teologia caberia estimular o redespertar da força
explosiva, "messiânica" do materialismo histórico - reduzido por seus
epígonos a um mero autômato petrificado e desprovido de vida.
No ensaio dedicado a Oskar Panizza e E. T. A. Hoffmann (1930), a
dimensão teológica, associada às fontes românticas, é mobilizada a fim
de estabelecer uma crítica radical da modernidade, ancorada na oposição
entre o vivo e o autômato. Identificado ao diabólico, ao satânico, o
automático assemelha-se, em Hoffmann, segundo Benjamin, a um "mecanismo
artificial asqueroso", ao qual o escritor alemão opõe a "vida" em seu
"lado puro e limpo dos espíritos" (p. 134). Manifestando-se ora na
relação do operário com a máquina analisada por Marx, ora na do
transeunte com a multidão descrita por
Edgar Allan Poe
e/ou por Charles Baudelaire, a figura do autômato tornou-se, na obra do
próprio Benjamin, uma alegoria da vida moderna, uma vida que se
encontra submetida a um tempo mecânico, "artificial" e repetitivo,
despojado de toda "experiência" e, por esta razão, "infernal".
Na pequena resenha do livro
O resgate, da escritora comunista judia Anna Seghers, publicada em 1938 com o título de
Crônica dos desempregados alemães
(p.159-166), o "inferno" da catástrofe é identificado ao nazismo, que
representou uma "queda" ainda maior "para o abandonado que já está no
fundo do poço". Enquanto aparecimento do "anticristo", o nazismo
"arremeda a benção que foi anunciada como messiânica", tanto quanto
"arremeda o socialismo", explorando para seus propósitos os flagelos
infligidos pela guerra, pela miséria e pelo desemprego. Nesse sentido,
diz Benjamin, o nazismo era uma espécie de "falso messias", em tudo
oposto à esperança na possibilidade de uma autêntica "redenção
messiânica" dos oprimidos.
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Siegfried Kracauer
Escritor, jornalista e sociólogo alemão, Siegfried Kracauer
(1889-1966) tem a parcela mais expressiva de sua obra vinculada à teoria
crítica da Escola de Frankfurt. Analisou em seus livros e ensaios o
cinema e a fotografia. Com a ascensão do governo nazista, partiu para
Paris e de lá fixou-se em Nova York, onde trabalhou por alguns anos no
Museu de Arte Moderna. |
À ESQUERDA DO POSSÍVEL
O exílio em Paris, após a ascensão do nazismo na Alemanha (1933), ao
mesmo tempo em que ratificou a paixão de Benjamin por esta cidade que,
muito mais que Berlim (sua cidade natal), representava os paradoxos da
paisagem urbana moderna carregada de mistérios (como demonstrara o
surrealista Louis Aragon em seu romance "O camponês de Paris", muito
apreciado por Benjamin), impôs-lhe os momentos mais difíceis de sua
vida. Intensificou, além disso, o sentimento melancólico (
spleen) da "catástrofe em permanência" que, segundo ele, inscreve-se no coração dos poemas de Baudelaire (cf. "Parque Central").
Vivendo precariamente de pequenos trabalhos encomendados por
periódicos ou revistas, sua situação só não era pior devido às
constantes ajudas financeiras que recebia de amigos como Scholem e o
casal Th eodor e Gretel Adorno, ou ainda, a partir de 1937, em razão da
pequena bolsa de estudos que ganhava do "Instituto de Pesquisa Social" -
o qual havia emigrado para Genebra e, logo depois, para Nova York.
Principal responsável pela subvenção mensal concedida pelo
"Instituto", Adorno - que Benjamin havia conhecido em 1923 por
intermédio de um amigo em comum:
Siegfried Kracauer
- tornou-se, nesse período, uma espécie de "fiador" dos escritos do
filósofo alemão da segunda metade da década de 1930, não hesitando em
censurá-los pela suposta ausência de mediações e, acima de tudo, pelas
consequências de sua excessiva "politização". A dependência material do
Instituto, assim como a intransigência intelectual de Adorno (com sua
conhecida "falta de tacto"), causou evidentes impactos na reflexão de
Benjamin, sempre zelosa por adquirir "respeitabilidade" frente às
posições do grupo.
É nesse contexto que se pode compreender o ensaio "Instituto
alemão de livre pesquisa" (incluído na coletânea), publicado por
Benjamin em 1938 na revista conservadora alemã "Medida e valor", e
desconhecido até muito recentemente. Nessa homenagem - o único escrito
de Benjamin sobre a chamada Escola de Frankfurt -, o filósofo alemão
destaca a centralidade, nos trabalhos dos autores vinculados ao
Instituto, da crítica ao positivismo, cuja "submissão acrítica do
vigente", com sua apologia do fato consumado, fez dele "cúmplice da
violência e da brutalidade". Em contraposição à "teoria tradicional",
que congela o real em um "sistema", Benjamin visualiza nos teóricos
críticos do Instituto "uma experiência inalienável que impregna todas as
reflexões", isto é, um "experimento realizado no espaço aberto da
história" (p. 150).
No limite, porém, Benjamin era igualmente um "herético", um "dissidente", mesmo entre seus colegas frankfurtianos. Espécie de "
outsider
de esquerda", "sentinela solitária", carregado de uma "apatia
saturnina" ("o astro da revolução mais lenta, o planeta dos desvios e
das dilações", como ele mesmo diz), sua melancolia revolucionária
baseava-se na aposta de que não há esperança senão na "frágil força
messiânica" dos oprimidos. Interessava-lhe, acima de tudo, manter
abertas as vias de acesso às mais diversas (marxista, teológica e
estética) formas de crítica radical do estabelecido. Como disse em um
aforismo de 1931 ("Caráter destrutivo"), no que parece uma
autodescrição: "já que vê caminhos por toda parte, está sempre na
encruzilhada. Nenhum momento é capaz de saber o que o próximo traz. O
que existe ele converte em ruínas, não por causa das ruínas, mas por
causa do caminho que passa através delas".
Muito mais do que seus amigos do
Instituto, Benjamin foi um vencido da história, uma expressão (se não
uma alegoria) da derrota. Por isso mesmo, sob pena de vê-lo transformado
em mais um "bem cultural" adaptado ao discurso dos vencedores, talvez
seja necessário, hoje em dia, aplicar ao legado benjaminiano a atitude
crítica que, segundo ele, deve ser própria do "materialista histórico"
diante da "tradição dos oprimidos", qual seja: a necessidade de "arrancar a tradição do conformismo que dela busca se apoderar"
Muito mais do que seus amigos do Instituto, Benjamin foi um
vencido da história, uma expressão (se não uma alegoria) da derrota. Por
isso mesmo, sob pena de vê-lo transformado em mais um "bem cultural"
adaptado ao discurso dos vencedores, talvez seja necessário, hoje em
dia, aplicar ao legado benjaminiano a atitude crítica que, segundo ele,
deve ser própria do "materialista histórico" diante da "tradição dos
oprimidos", qual seja: a necessidade de "arrancar a tradição do
conformismo que dela busca se apoderar" (VI tese). Essa é,
quiçá,
uma condição indispensável para a compreensão da "universalidade" e
mais, da "atualidade" de Walter Benjamin (reivindicadas por Löwy), neste
começo do século 21, quando o progresso da civilização capitalista
conduz a humanidade na direção da catástrofe ecológica e social.
Projetar nova luz sobre este "outro" Benjamin, embora às vezes
exagerando na valorização das dimensões românticas e teológicas do
filósofo alemão, é um dos grandes feitos de Michael Löwy, já revelado em
outros trabalhos (como os livros
Redenção e Utopia e Walter Benjamin: aviso de incêndio), e coerentemente manifestados na organização de
O capitalismo como religião.
À diferença tanto das leituras marxistas "modernistas" inspiradas em B.
Brecht quanto das interpretações "apolíticas" (meramente estéticas ou
pós-modernas), o caráter radical e revolucionário do pensamento de
Benjamin reside, para Löwy, exatamente na resistência melancólico-ativa
(porque consciente do perigo da derrota) em face da reprodução da
catástrofe.
Espreitando o horizonte do possível, cada segundo era, para
Benjamin, "a porta estreita pela qual o messias pode entrar", o momento
do "despertar" dos vencidos da história. Seu suicídio em setembro de
1940, sob a iminência da captura nazista, demonstrou o fracasso pessoal e
político desta frágil esperança, mas significou também um derradeiro
ato de resistência, uma resposta da vontade heroica à derrota da
vontade, legando às gerações vindouras a necessidade de seguir apostando
na possibilidade da redenção dos vencidos do presente e do passado.
*Fabio Mascaro Querido é doutorando em
Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas (IFCH/ Unicamp-SP), com bolsa da
Fapesp.]
FONTE: Revista Filosofia