domingo, 14 de agosto de 2016

Hércules no Escritório: as Olimpíadas e o Trabalho

Subsiste por detrás das competições um conjunto de modelos de relacionamento com o mundo.



por Duanne Ribeiro/ introdução Eric Campi


No que concerne à ética — aos modos pelos quais decidimos viver — a que em nós apelam as Olimpíadas, quais símbolos contêm que ressoam aqueles que nos preenchem? Tanto na Grécia clássica quanto nos diferentes momentos da versão moderna dos jogos, modelos tais que funcionam como interfaces entre distintos âmbitos sociais. Se a guerra, a política e a religião, entre os gregos clássicos, se espelhavam e eram espelhadas nas atividades atléticas, o que espelham as Olimpíadas atuais e o que se espelha nelas? Percorrendo as variações do símbolo atleta ao longo da história, das maneiras como o atleta é reconhecido, podemos especular sobre o dado essencial que funda os esportes e o nosso cotidiano.
Em “The Heroic Athlete in Ancient Greece”, do professor de história da Universidade do Sul de Utah, David J. Lunt, lemos que, na Grécia dos cinco séculos antes da era comum, ao atleta se abria como potencial a divindade. Pela excelência no esporte (no que chamaríamos de esporte), podia o sujeito se aproximar dos deuses, fazer-se um semideus e um herói. Não se tratava dos únicos que alcançavam a “heroicização”, mas “a vitória atlética provia uma avenida para o status heroico”. Tendo esse objetivo em vista, não só, por óbvio, desenvolviam sua habilidade, como procuraram agregar à sua imagem referências míticas, inclusive reproduzindo, em pessoa, feitos lendários (de Polydamas de Skotoussa, diz-se que, para imitar Hércules, subiu ao Monte Olimpo e matou um leão com as mãos nuas). O culto aos atletas-heróis se equiparava ao dos deuses.
A vitória nas competições, nos conta Lunt, atribuía ao atleta kudos, termo que denotava um dom divino— “com frequência traduzida por ‘louvor’ ou ‘renome’”, para os antigos a palavra indicava “um poder especial outorgado por um deus que faz o herói invencível”. Ao caminho para chegar à imortalidade heroica, faltavam ainda dois componentes: kleos, “glória e fama”, e timé, “o culto em sua honra”. Talvez possamos pensar que esses momentos são os avançados investimentos e expansão do capital simbólico conquistado nos torneios — kleos se constitui do que se fala do atleta, do que cantam sobre ele os poetas, por exemplo; timé, nesse caso, quiçá se diga o ponto em que esse processo todo se institucionaliza. A eternidade ao alcance do esforço e do discurso.
Tal compreensão de que podemos, por atos e palavras, tornarmo-nos ou provarmo-nos dignos, companheiros dos deuses, nos remete à Friedrich Nietzsche. A Genealogia da Moral descreve os deuses gregos, a religião grega, como “reflexos de homens nobres e senhores de si, nos quais o animal no homem se sentia divinizado e não se dilacerava, não se enraivecia consigo mesmo!”. Nietzsche parece crer que essa civilização, em sua teodiceia, dispunha diante de si a potência de vida que havia neles próprios em confronto com o mundo. Tudo se passa como se nós fôssemos compostos de divino — e, avançando a partir da interpretação nietzschiana, como se o sucesso atlético fosse a demonstração dessa composição identitária, dessa filiação.
Esse contínuo homem-deus não estava em questão na refundação dos jogos em 1896 pelo barão Pierre de Coubertin, embora uma tendência aristocrática persistisse nela. Segundo o doutor em educação Alberto Reinaldo Reppold Filho, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o barão “combinou a sua visão da cultura helênica com o ethos do Cristianismo Muscular presente nas escolas públicas inglesas no auge do Liberalismo” (de “Desafios do olimpismo: contribuições da filosofia moral”) — esse “cristianismo muscular”, pelo que pudemos aferir, advogava um corpo perfeito e forte, em aliança com a fé. Coubertin cunhou o que seria o lema dos Jogos Olímpicos:
“O importante na vida não é o triunfo, mas a luta; o essencial não é ter ganho, mas ter lutado bem”, que possui outras formulações. Esse lema sobrepõe algumas camadas de ideias.
Professor de estudos clássicos da Universidade da Flórida, David C. Young discute a controvérsia sobre a autoria dessa frase, no artigo “On the Source of the Olympic Credo”. Coubertin a atribuía ao pastor Ethelbert Talbot, que por sua vez se referia ao apóstolo Paulo. Young aponta que o recriador dos jogos já havia dito algo idêntico em uma ocasião anterior à fala de Talbot que seria a sua influência; a origem real da frase, demonstra o professor, seria o poeta romano Ovídio. No livro As Metamorfoses há um “nec tam turpe fuit vinci quam contendisse decorum est”, que, em tradução livre, seria “não é tão vergonhoso ser derrotado como é honroso ter lutado”. Embora o verso de Ovídio se dê após uma partida de pancrácio (luta grega clássica) entre o deus Acheloo e o herói Hércules, ou seja, se situe em um contexto próximo ao olímpico, já aqui podemos ver um deslocamento em relação aos ideais que expomos anteriormente: onde a invencibilidade do kudos? Mas para avaliar esse ponto seria preciso um estudo mais aprofundado.
Levando em consideração que Coubertin prestava tributo à Talbot, analisemos também o que disse o pastor e que teria inspirado o barão: “(…) a lição da real Olímpia: que os Jogos em si são um prêmio maior que a corrida e o prêmio. São Paulo nos conta como é insignificante o prêmio. O nosso prêmio não é corruptível, mas incorruptível, e, não obstante só um homem possa vestir os louros, todos podem compartilhar igual alegria na disputa. Todo encorajamento, assim, seja dado aos estimulantes — e, posso também dizer, salvadores de almas — que se interessam pelo ativo e justo e limpo esporte atlético” (a fala completa está no texto biográfico “Ethelbert Talbot: His Life and Place in Olympic History”, do historiador Ture Widlund). Young afirma que Talbot distorce São Paulo nesse ponto; de toda maneira, notemos a distinção de valores: em lugar da divinização, a salvação de almas; imortalidade, ainda, mas, como veremos, não por identidade com o transcendente, mas pela demonstração de virtude.
Nesse contexto de pensamento, qual é então o atleta esperado? Uma perspectiva disso é dada por um artigo publicado ao fim deste julho pela revista New Yorker. “Doping and Olympic Crisis of Idealism”, da jornalista Louisa Thomas,cita um juramento escrito pelo fundador, para ser lido pelos esportistas, em 1920, na Antuérpia, Bélgica: “Nós juramos que tomamos parte dos Jogos Olímpicos como competidores leais, observando as regras que governam os Jogos e ansiosos para exibir um espírito de cavalaria, pela honra dos nossos países e pela glória do esporte”. Ela comenta que o seu objetivo “era reviver um mundo melhor, mais nobre, onde se perseguia a excelência por si própria”.A referência à cavalaria acena à autoimagem da nobreza europeia; o teor aristocrático se efetivava na exigência de uma prática desinteressada; o atleta devia ser um amador, não um profissional. Sua atuação devida a um princípio (“uma questão da alma”, como disse, ecoando Talbot, um membro do Comitê Olímpico Internacional), não ao ganho material.
Novamente podemos retornar à Nietzsche, menos para defender seu ponto de vista na questão do que para sublinhar a ruptura entre as visões de mundo de um momento a outro. O ter a alma salva em vez do fazer-se deus pode ser entendido como a ascensão da negação da vida presente sobre a sua afirmação. Na Genealogia da Moral, ele escreve: “Hibris é a nossa atitude para com nós mesmos, pois fazemos conosco experimentos que não nos permitiríamos fazer com nenhum animal, e alegres e curiosos viviseccionamos nossa alma: que nos importa ainda a ‘salvação’ da alma!”. Sobre a isenção do esforço, o que lá seria aristocrático soa a Nietzsche o seu oposto: “É somente com um declínio dos juízos de valor aristocráticos que essa oposição ‘egoísta’ e ‘não-egoísta’ se impõe mais e mais à consciência humana (…) na Europa de hoje, o preconceito que vê equivalência entre ‘moral’, ‘não-egoísta’ e ‘désinteréssé’ já predomina com a violência de uma ideia fixa ou doença do cérebro”. Algo fundamental, parece, foi transformado.
E o que se estabeleceu então, conforme se aproximavam os nossos dias, foi transformado a seu turno. Louisa Thomas descreve como o ideal de amadorismo foi perdendo espaço, processo que se evidencia pela construção de um dogma: a inaceitabilidade das drogas de aperfeiçoamento de performance. O doping, antes, era menos ainda que um problema menor, sendo inclusive o objeto de políticas públicas. Em 1962, o Comitê Olímpico Internacional começou a desenvolver recursos para coibir essa prática (inclusive uma lista de substâncias banidas) e se deu em 1988 o primeiro grande escândalo nesse sentido, resultando na punição do velocista Ben Johnson. Ali, o que emergiu foi a figura com que nos defrontamos atualmente: o atleta como profissional.
Com efeito, foi em 1988, na cidade de Seoul, na Coréia do Sul, que as Olimpíadas (de verão) pela primeira vez aceitaram a participação de profissionais. O dado é de Thomas; ela também afirma que “o que realmente mudou as coisas, é claro, foi a introdução da televisão, e as fantásticas quantias de dinheiro que inundaram os Jogos, fluindo ao redor dos atletas, mas não para eles — e o desejo do público de ver os melhores atletas, os dream teams, competir”. O sociólogo Pierre Bourdieu, em “Os Jogos Olímpicos”, publicado no livro Sobre a Televisão, ressalta precisamente esse aspecto: “O que entendemos quando falamos dos Jogos Olímpicos? O referencial aparente é a manifestação ‘real’, isto é, um espetáculo propriamente esportivo, confronto de atletas vindos de todo o universo que se realiza sob o signo de ideais universalistas, e um ritual, com forte coloração nacional, senão nacionalista (…). O referencial oculto é o conjunto das representações desse espetáculo filmado e divulgado pelas televisões (…)”.
“Os Jogos Olímpicos” é um plano de pesquisa que evidencia as estruturas comerciais e midiáticas por trás das Olimpíadas tendo em vista “um domínio coletivo desses mecanismos”, de maneira a “favorecer assim a expansão das potencialidades do universalismo, hoje ameaçadas”. O atleta, nessas estruturas, é uma peça: “(…) no jogo esportivo, o campeão, corredor de cem metros ou atleta do declato, é apenas o sujeito aparente de um espetáculo que é produzido de certa maneira duas vezes: uma primeira vez por todo um conjunto de agentes, atletas, treinadores, médicos, organizadores, juízes, cronometristas, encenadores de todo o cerimonial, que concorrem para o bom transcurso da competição esportiva no estádio; uma segunda vez por todos aqueles que produzem a reprodução em imagens e em discursos desse espetáculo, no mais das vezes sob a pressão da concorrência e de todo o sistema das pressões exercidas sobre eles pela rede de relações objetivas na qual estão inseridos”.
Seria interessante estudar o quanto os períodos anteriores, nessa nossa construção retórica, se moldam na mesma fôrma exibida por Bourdieu. Por exemplo, o quanto kleos e timé são versões anteriores dessa produção de imagens e discursos. Mas isso seria tema para outro artigo. Vamos destacar somente que a visão da agência do atleta chega nesse ponto a um grau mínimo: não é mais um aspirante à deidade nem tem os pés na antessala do paraíso que a virtude garante; é o mecanismo central e substituível no interior de uma máquina. Em tal contexto, uma das tarefas propostas por Bourdieu é “analisar os diferentes efeitos da intensificação da competição entre as nações que a televisão produziu através da planetarização do espetáculo olímpico, como o aparecimento de uma política esportiva dos Estados orientada para os sucessos internacionais, a exploração simbólica e econômica das vitórias e a industrialização da produção esportiva que implica o recurso ao doping e a formas autoritárias de treinamento”.
Há um elemento provocativo nesse último trecho: ao mesmo tempo que o profissionalismo, ao ascender, estabeleceu o doping como seu crime principal, esse mesmo profissionalismo, dados os seus efeitos internacionais, econômicos, politiqueiros, implica o doping. O caso, referido pela jornalista da New Yorker, da ameaça de banimento de todos os atletas russos neste 2016, pelo uso sistemático, encoberto pelo governo, de drogas que permitem melhores atuações, aparece então, para além dos ideais existentes só em discursos, como o produto de um estado de coisas. É com esse estado de coisas, penso, que nos identificamos; não com o que ele diz de si, não com a sua superfície, mas com o que profundamente diz a respeito do corpo e do trabalho.
O Atleta-Corporativo, o Sujeito Administrável
O conceito de trabalho parece estar presente, desde a origem, na palavra atleta. Segundo David J. Lunt, athla significava aos gregos antigos tanto o esforço competitivo quanto os prêmios das competições. Diz o pesquisador: “Os athla ou ‘trabalhos’ de Hércules o caracterizavam como um ‘atleta’ que se esforçou por seu ‘prêmio’ — neste caso, o ‘prêmio’ da imortalidade. Dessa forma, Hércules o atleta se esforçou para completar seus trabalhos, como eliminar o leão de Nemeia, limpar os estábulos de Áugias e colher as maçãs do Jardim das Hespérides”. Nossos doze ou bem mais trabalhos cotidianos são muito divergentes dos de Hércules. Na mesma medida em que se transformou a concepção de trabalho, mudou a concepção de atleta. Proponho, como é visível, que isso se dá por uma ligação subterrânea entre as duas noções. O atleta e o trabalhador, na forma como os vemos e nos vemos, são objetos de gestão. Somos coisas a administrar.
Um exemplo. A revista piauí publicou em julho a reportagem “A Pit Bull”, sobre as nadadoras de maratona Ana Marcela Cunha e Poliana Okimoto, escrita pela jornalista Luiza Miguel.A imagem de atleta que transparece é a do eixo a que convergem especialidades. O resultado esportivo é o efeito de saberes técnicos não-esportivos. Medicina, comunicação, tecnologia, cujos poderes sobre a sociedade atual são tremendos, são alguns desses saberes. Os metabolismos de Cunha e Okimoto são definidos pelos profissionais que lhes prescrevem a absorção nutricional devida; os movimentos de Cunha na água são filmados, analisados e corrigidos ponto a ponto. O corpo administrável é algo que vem sendo construído há longo tempo. O professor de história da arte Jonathan Crary, em Técnicas do Observador, expõe isso: “O grande logro da fisiologia europeia na primeira metade do século XIX foi uma investigação abrangente de um território até então semidesconhecido, um inventário do corpo. Tratava-se de um conhecimento que seria a base para formar um indivíduo adequado às exigências produtivas da modernidade econômica e às tecnologias emergentes de controle e sujeição”.
A disciplina relacionada ao esporte e ao trabalho é um local onde é flagrante a identidade entre o que se fala sobre ambos. No perfil da piauí, lemos, sobre Cunha: “’Depois do almoço, retornava à piscina e treinava mais algumas horas.’ Só folgava aos domingos. Não lhe sobrava tempo para ser adolescente”. Comparem com este trecho de outra fonte: “Steven Wanner é um altamente respeitável sócio de 37 anos da Ernst & Young, casado e com quatro filhos. Há um ano, quando o conhecemos, ele trabalhava de 12 a 14 horas por dia, se sentia perpetuamente exausto e lhe era difícil se engajar na família, o que o deixava culpado e insatisfeito. Ele dormia mal, não tinha tempo para exercício, raramente comia refeições saudáveis, em vez disso petiscava na correria ou trabalhando em sua mesa”. A diferença de “cuidados com a saúde” me parece superficial: a identidade entre essas duas posturas está na sua dedicação estrita, full time, ao serviço.
Este trecho é extraído de “Manage Your Energy, not Your Time”, dos empresários Tony Schwartz e Catherine McCarthy; em “The Making of a Corporate Athlete”, de Schwartz e Jim Loehr, ideias semelhantes são apresentadas. O que os autores defendem é que Steven Wanner sofre não por algum problema nas condições do seu emprego, porém por uma deficiência de gestão. É por ele não se administrar com eficácia, que entra em dificuldades. “O problema central em trabalhar por longas horas é que o tempo é um recurso finito. A energia é outra história. Definida na física como a capacidade de trabalho, a energia vem de quatro fontes principais: o corpo, as emoções, a mente e o espírito. Em cada, a energia pode ser sistematicamente expandida e regularmente renovada pelo estabelecimento de rituais específicos — comportamentos intencionalmente praticados e precisamente agendados, com a meta de fazê-los inconscientes e automáticos o mais rápido possível”. Todos os núcleos da experiência humana são assets do indivíduo.
Sintomático para nós, os autores chegaram à sua teoria por meio do esporte: “Nossa abordagem tem suas raízes nas duas décadas em que Jim Loehr e seus colegas trabalharam com atletas de nível mundial. Há muitos anos atrás, nós dois [Schwartz e Loehr] começamos a desenvolver uma versão mais abrangente dessas técnicas, para executivos que confrontavam demandas nos seus campos de trabalho que não tinham precedentes. Com efeito, nós chegamos à conclusão que esses executivos eram ‘atletas corporativos’. Se devem performar em alto nível no longo prazo, defendemos que devem treinar no mesmo modo sistemático e multicamada que os atletas de nível mundial fazem”. O que se diz aos altos executivos, é claro, também acaba se aplicando aos das divisões hierárquicas inferiores (ou das divisões “horizontais”, como se dissimula hoje).
É inegável, portanto, que entre esses ambientes simbólicos existe um intercâmbio de valores e um reforço mútuo. No limite, é possível dizer que o vórtice onde se tocam esporte, trabalho, e, subjacente a ambos, ética, é na ideia de uma sociedade de manutenção da exaustão. Em que o que não se põe em questão é somente a própria exaustão e seus motores primeiros. Muitos são os diagnósticos nesse sentido. “Exaustos-e-correndo-e-dopados”, da jornalista Eliane Brum, um ensaio que usa o conceito de sociedade do cansaço, do filósofo Byung-Chul Han, é um deles. Um outro é “How Exhaustion Became a Status Symbol”, resenha do livro Exhaustion: A History, feita pela escritora Hannah Rosefield à New Republic. Ela diz que, em nossa época, “afirmar que você está exausto é comunicar que você é importante, requisitado e bem-sucedido”. Nós assistimos às Olimpíadas para ver o jogo dessa teoria de vida? Espetacularizado, o jogo de um corpo de um sujeito submetido aos ritmos corporativos e científico-aplicados. Espetacularizado, o jogo de um indivíduo que se leva à exaustão — não por si, não por sua alma — porém pelo trabalho.

Duanne Ribeiro é jornalista, mestrando em ciência da informação e graduado em 
filosofia, com especialização em gestão cultural.
Fonte: Revista Cult online 

sábado, 9 de abril de 2016

Realidade


É “errado confundir a própria realidade com as formas que temos de a conhecer. A realidade é uma coisa; o conhecimento que temos dela, outra. O passado não é a mesma coisa que as nossas memórias dele; os objetos físicos não são a mesma coisa que os estados sensoriais que temos quando os percecionamos; as mentes das outras pessoas não são a mesma coisa que o comportamento que usamos para inferir coisas sobre elas; o futuro não é a mesma coisa que as indicações atuais sobre como será; as partículas elementares não são a mesma coisa que os contadores que assinalam a sua presença; e assim por diante. Certamente que há exceções a esta regra geral; (…) [por exemplo] as entidades ficcionais não têm uma realidade além das intenções dos autores – são inventadas e não descobertas. É por isso que lhes chamamos ficções e distinguimos a ficção da não ficção nas livrarias e bibliotecas.” 

Colin McGinn, Como se faz um Filósofo, tradução de Célia Teixeira, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2007, pág. 121.

Publicado originalmente no site Dúvida Metódica

Utilitarismo de Ato e de Regras: Bentham e Mill (por André Coelho)


Por André Coelho

Três agentes, três cenários, três decisões. Primeiro caso: Um policial decidindo se tortura ou não um terrorista para extrair onde ele plantou a bomba que está prestes a explodir e matar centenas de pessoas. Segundo caso: Um médico decidindo se conta ou não a um paciente que ele tem apenas três dias de vida, sabendo que a notícia o faria desperdiçar seu tempo restante em hospitais em vez de aproveitá-lo, como faria se ficasse ignorante, na companhia de sua família. Terceiro caso: Um comandante decidindo se ordena ou não lançarem a bomba que mataria um grupo inteiro de terroristas genocidas, mas apenas ao preço de matar também todos os civis inocentes que moram no mesmo prédio em que os criminosos estão reunidos no momento.

John Stuart Mill (filósofo e economista britânico - *1806 +1873)

O tempo congela e os três vão se aconselhar com dois especialistas em ética: Bentham e Mill. Os dois são utilitaristas, então, os dois pensam que são as consequências que tornam uma ação boa ou má. Boa é a ação que aumenta a felicidade do maior número; má a que a diminui. Mas Bentham e Mill têm modos diferentes de avaliar as ações. Bentham lhes diz que o que importam são as consequências de cada ato isolado, naquela situação particular. Se haverá maior benefício do que prejuízo em torturar, mentir e matar, pelo menos naqueles casos, então, estas são as decisões corretas, pelo menos naqueles casos. Já Mill lhes diz que o que importam são as consequências das ações-tipo, isto é, das práticas gerais das quais aquelas ações são exemplos particulares. As práticas de torturar, mentir e matar, consideradas em geral, produzem mais prejuízos que benefícios, de modo que, enquanto exemplos particulares delas, as ações de torturar, mentir e matar nos três cenários são, por consequência, tão erradas quanto elas.

Jeremy Bentham (Filósofo e jurista britânico - *1748 +1832)

Bentham e Mill, ambos utilitaristas, ambos levando em conta as consequências, os aconselham um a fazer, o outro a não fazer a mesma coisa. Eis a diferença entre o utilitarismo de ato (Bentham, que considera cada ato isoladamente) e o utilitarismo de regras (Mill, que considera o ato-tipo, isto é, a prática mais ampla da qual o ato em questão é apenas um exemplo).

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O QUE É A AÇÃO CORRETA? - Jiddu Krishnamurti


                         Auckland, Nova Zelândia, 1ª palestra - 28 de março de 1934.

Amigos, penso que cada um de nós está aprisionado seja num problema religioso seja numa luta social ou num conflito econômico. Cada um de nós está a sofrer pela falta de compreensão destes variados problemas, e tentamos resolver cada um deles por si; isto é, se têm um problema religioso, pensam que o vão resolver pondo de lado o problema econômico ou social e centrando-se inteiramente no problema religioso, ou se têm um problema econômico pensam que vão resolver esse problema econômico limitando-se inteiramente a esse conflito específico. Ao passo que eu digo que não podem resolver estes problemas por si sós; não podem resolver o problema religioso por si só, nem o problema econômico nem o problema social, a menos que vejam a inter-relação entre os problemas religiosos, sociais e econômicos.


Aquilo a que chamamos problemas são meramente sintomas, que aumentam e se multiplicam porque não agarramos a vida toda como uma coisa só, mas dividimo-la em problemas econômicos, sociais ou religiosos. Se olharem para todas as variadas soluções que são oferecidas para os vários padecimentos, verão que lidam com os problemas em separado, em compartimentos estanques, e não tomam os problemas religiosos, sociais e econômicos compreensivamente como um todo. Ora é minha intenção mostrar que enquanto lidarmos com estes problemas em separado apenas aumentamos o desentendimento, e portanto o conflito, e desse modo o sofrimento e a dor; até que lidemos com o problema social e com os problemas religiosos e econômicos como um todo compreensivo, não dividido, mas de preferência vendo a ligação delicada e subtil entre aquilo que chamamos problemas religiosos, sociais ou econômicos – até que vejam esta ligação real, esta ligação íntima e subtil entre os três, seja qual for o problema que possam ter, não o vão resolver. Apenas incrementarão a luta. Embora possamos pensar que resolvemos um problema, esse problema surge novamente de uma forma diferente, e assim vamos através da vida resolvendo problema após problema, luta após luta, sem compreender totalmente o pleno significado do nosso viver.

Portanto, para compreender esta ligação íntima entre aquilo a que chamamos problemas religiosos, sociais e econômicos, tem que haver uma completa reorientação do pensamento – isto é, cada indivíduo tem que deixar de ser uma peça de engrenagem, uma máquina, seja na estrutura social seja na religiosa. Olhem e verão que a maior parte dos seres humanos são escravos, meras peças de engrenagem nesta máquina. Não são realmente seres humanos, apenas reagem a um meio estabelecido e por isso não existe verdadeira ação individual, pensamento individual; e para descobrir essa relação íntima entre todas as nossas ações, religiosas, políticas ou sociais, têm que pensar como indivíduos, não como um grupo, não como um corpo coletivo; e essa é uma das coisas mais difíceis de fazer, que os indivíduos saiam da sua estrutura social, ou religiosa, e a examinem com espírito crítico, para descobrir o que é falso e o que é verdadeiro nessa estrutura. E então verão que já não estão preocupados com um sintoma, mas estão a tentar descobrir a causa do próprio problema, e não apenas a lidar com os sintomas.

Talvez alguns de vocês digam no fim da minha palestra que nada lhes dei de positivo, nada em que possam claramente trabalhar, um sistema que possam seguir. Eu não tenho nenhum sistema. Penso que os sistemas são perniciosos, porque podem de momento aliviar os problemas, mas se simplesmente seguirem um sistema são escravos dele. Apenas substituem o velho sistema por um novo, o que não origina compreensão. O que origina compreensão não é procurar um novo sistema, mas sim descobrirem por si próprios, como indivíduos, não como uma máquina coletiva mas como indivíduos, o que é falso e o que é verdadeiro no sistema existente, e não substituir o velho sistema por um novo.

Ora, ser capaz de criticar, ser capaz de questionar, é o primeiro requisito essencial para qualquer homem pensante, para que possa começar a descobrir o que é falso e o que é verdadeiro no sistema existente, e por esse motivo nesse pensamento há ação, e não mera aceitação. Assim durante esta palestra, se quiserem compreender o que vou dizer, tem que haver espírito crítico. O espírito crítico é essencial. O questionamento é correto, mas nós fomos treinados para não questionar, para não criticar, fomos cuidadosamente treinados para nos opormos. Por exemplo, se eu disser algo que não vão gostar – como o farei, espero – naturalmente começarão a opor-se, porque a oposição é mais fácil do que descobrir se o que digo tem algum valor. Se descobrirem que o que eu digo tem valor, então há ação, e por isso terão que alterar toda a vossa atitude perante a vida. Por esse motivo, como não estamos preparados para fazer isso, criámos uma hábil técnica de oposição. Isto é, se não gostarem de qualquer coisa que estou a dizer, apresentam todos os vossos preconceitos profundamente enraizados e obstruem-na, e se eu estiver a dizer algo que os possa magoar, ou que os possa aborrecer emocionalmente, refugiam-se nestes preconceitos, nestas tradições, neste pano de fundo; e reagem a partir desse pano de fundo, e a essa reação chamam crítica. Para mim não é espírito crítico. É apenas oposição habilidosa, que não tem valor.

Ora bem, se forem todos Cristãos – e presumivelmente são todos Cristãos – talvez eu vá dizer algo que podem não compreender, e em vez de tentarem descobrir o que quero transmitir, imediatamente se refugiarão por trás das tradições, por trás dos preconceitos profundamente enraizados e das autoridades da ordem estabelecida, e a partir dessa fortaleza, na defensiva, atacarão. Para mim isso não é crítica: isso é uma maneira engenhosa de não atuar, de evitar a ação plena, completa.

Se quiserem entender o que vou dizer, pedia-lhes que fossem realmente críticos, não habilidosos na vossa oposição. Ser crítico requer muita inteligência. A crítica não é cepticismo, ou aceitação; isso seria igualmente estúpido. Se simplesmente dissessem, “Bem, eu sou céptico sobre o que diz”, isso seria tão estúpido como simplesmente aceitar. Ao passo que a verdadeira crítica consiste, não em transmitir valores, mas em tentar descobrir os verdadeiros valores. Não é assim? Se conferirem valores às coisas, se a mente conferir valores, então não estão a descobrir o mérito intrínseco da coisa, e a maior parte das nossas mentes está treinada para conferir valores. O dinheiro, por exemplo. Abstratamente o dinheiro não tem valor. Tem o valor que lhe damos. Isto é, se quiserem o poder que o dinheiro dá, então usam o dinheiro para ter poder, portanto estão a dar um valor a algo que inerentemente não tem valor; assim, da mesma maneira, se descobrirem e compreenderem o que vou dizer, têm que ter esta capacidade de crítica, que é realmente fácil se quiserem descobrir, se quiserem encontrar, não se disserem, “Bem, não quero ser atacado. Estou na defensiva. Tenho tudo o que quero, estou perfeitamente satisfeito. ” Então, uma tal atitude é perfeitamente irremediável. Estão então aqui apenas por curiosidade – e a maioria provavelmente está – e o que eu vou dizer não terá significado, e por isso dirão que é negativo, nada construtivo, nada positivo.

Portanto por favor lembrem-se que esta tarde vamos descobrir, considerar em conjunto, quais são as coisas falsas e as verdadeiras na situação social e religiosa existente; e para fazer isso por favor não tragam continuamente os vossos preconceitos, sejam Cristãos, ou de qualquer outra seita, mas tenham antes esta atitude inteligente e crítica, não só a respeito do que vou dizer, mas com respeito a tudo na vida, o que significa a cessação da procura de novos sistemas, e não a procura de um novo sistema que, quando encontrado, será de novo pervertido, corrompido. Na descoberta do falso e do verdadeiro nos sistemas social, religioso e econômico – o falso e o verdadeiro que nós próprios criamos – nessa descoberta, impediremos as nossas mentes e corações de criar falsos ambientes nos quais provavelmente a mente será de novo aprisionada.

A maior parte de vocês está à procura de um novo sistema de pensamento, um novo sistema de economia, um novo sistema de filosofia religiosa. Porque procuram um novo sistema? Vocês dizem, “Estou insatisfeito com o antigo”, isto é, se estiverem a procurar. Ora eu digo, não procurem um novo sistema, mas em vez disso examinem o próprio sistema em que estão presos, e então verão que nenhum sistema de nenhuma espécie originará a inteligência criativa que é essencial para a compreensão da verdade ou Deus ou seja lá qual for o nome que gostam de lhe dar. Isso significa que não seguindo qualquer sistema vão descobrir a realidade eterna; mas só a vão encontrar quando vocês, como indivíduos, começarem a compreender o próprio sistema que edificaram através dos séculos, e nesse sistema descobrirem o que é verdadeiro e o que é falso.

Portanto por favor lembrem-se disso – que não lhes estou a dar um novo sistema de filosofia. Penso que estes sistemas são gaiolas para manter presa a mente. Não ajudam o homem, são apenas impedimentos. Estes sistemas são um meio de exploração. Ao passo que se vocês, como indivíduos, começarem a questionar, verão que nesse questionamento criam conflito, e a partir desse conflito compreenderão – não na mera aceitação de um novo sistema que é apenas outro soporífero que os adormece e os transforma em mais uma máquina.

Vamos portanto desocbrir o falso e o verdadeiro nos sistemas existentes – os sistemas da religião e da sociologia. Para descobrir o que é falso e o que é verdadeiro, temos de ver em que se baseiam as religiões. Ora, eu falo de religião como a forma cristalizada de pensamento que se tornou no mais elevado ideal da comunidade. Espero que acompanhem tudo isto. Isto é, as religiões tal como são, não como vocês gostariam que fossem. Tal como são, em que se baseiam? Qual é o seu fundamento? Quando olham, quando examinam e pensam realmente com espírito crítico sobre isso – não trazendo as vossas esperanças e preconceitos, mas quando realmente pensam sobre isso – verão que se baseiam no conforto, dando-lhes consolo quando estão a sofrer. Isto é, a mente humana está continuamente à procura de segurança, de uma posição de certeza, seja numa crença ou num ideal ou num conceito, e portanto estão continuamente a procurar uma certeza, uma segurança, em que a mente se refugie como conforto. Ora o que acontece quando estão continuamente à procura de segurança, proteção, certeza? Naturalmente isso gera medo, e quando há medo tem que haver conformidade. Por favor, não tenho tempo de entrar em detalhes. Fá-lo-ei nas minhas várias palestras, mas nesta quero pôr tudo concisamente, e se estiverem interessados podem ponderar sobre isto, e depois podemos discuti-lo em reuniões de perguntas e respostas.

Portanto as pretensas religiões conferem o padrão de conformidade à mente que procura segurança nascida do medo na busca de conforto; e onde há procura de conforto, não há compreensão. As nossas religiões em todo o mundo, no seu desejo de dar conforto, no seu desejo de os conduzir a um padrão específico, de os moldar, dá-lhes vários padrões, moldes, seguranças, através daquilo a que chamam fé. Essa é uma das coisas que exigem – fé. Por favor não interpretem mal. Não se adiantem a mim. Elas exigem fé, e vocês aceitam a fé porque ela lhes proporciona um refúgio do conflito da existência diária, da luta contínua, das preocupações, dores e sofrimentos. Portanto dessa fé, que tem que ser uma fé dogmática, nascem as igrejas, e daí são estabelecidas ideias, crenças.

Ora para mim – e por favor lembrem-se disto, quero que critiquem, não que aceitem – para mim todas as crenças, todos os ideais são um obstáculo porque os impedem de compreender o presente. Vocês dizem que as crenças, os ideais, a fé, são necessários como um farol que os orientará através da confusão da vida. Isto é, estão mais interessados em crenças, em tradição, em ideais e na fé, do que em compreender a própria confusão. Para compreenderem a confusão não podem ter uma crença, um preconceito; têm que olhar para ela completamente, agarrá-la com uma mente clara, com uma mente não corrompida, não com uma mente que está influenciada por preconceitos específicos a que chamamos um ideal. Portanto onde há uma procura de conforto, de segurança, tem que haver um padrão, um molde, no qual nos refugiamos, e por isso a preconceber o que deve ser Deus, e o que deve ser a verdade.

Ora para mim, existe uma realidade viva. Existe algo que devém eternamente, algo fundamental, real, duradouro, mas que não pode ser preconcebido; não requer crenças, requer uma mente que não esteja acorrentada a um ideal tal como um animal está atado a um poste, mas que pelo contrário, requer uma mente que esteja continuamente a mover-se, a experimentar, nunca permanecendo. Eu afirmo que há uma realidade viva; chamem-lhe Deus, verdade, o que quiserem, coisa que é de muito pouca importância – e para compreenderem isso, é preciso haver suprema inteligência, e por isso não pode haver qualquer conformidade, mas antes o questionamento dessas coisas falsas e verdadeiras em que a mente se encontra aprisionada. E verão que a maior parte das pessoas, a maior parte de vocês são religiosamente propensos, estão à procura da verdade, e essa mesma procura indica que estão a fugir do conflito do presente, ou que estão insatisfeitos com a situação presente. Por isso tentam descobrir o que é real; isto é, deixam a situação que cria conflito e fogem e tentam descobrir o que é Deus, o que é a verdade. Por isso essa procura é a negação da verdade, porque estão a fugir – há evasão, desejo de conforto, de segurança. Por isso, quando as religiões se baseiam, como o fazem, na oferta de seguranças, tem que haver exploração; e para mim as religiões tal como são subsistem em nada mais do que numa séria de explorações. Aquilo a que chamamos os mediadores entre o nosso presente conflito e essa suposta realidade tornaram-se os nossos exploradores, e eles são os sacerdotes, os mestres, os professores, os salvadores; porque eu afirmo que só através da compreensão do conflito presente com todo o seu significado, com todos os seus delicados matizes – só assim podem descobrir o que é real, e ninguém os pode conduzir a isso.

Se ambos, o inquiridor e o professor, soubessem o que é a verdade, então ambos poderiam ir na sua direção; mas o discípulo não pode saber o que é a verdade. Por isso a sua inquirição sobre a verdade só pode existir no conflito, não longe dele, e assim, para mim, qualquer professor que descreva o que é a verdade, o que é Deus, está a negar isso mesmo, esse algo incomensurável que não pode ser medido por palavras. A ilusão das palavras não lhes dá segurança, e a ponte das palavras não os pode conduzir a esse algo. É somente quando vocês, como indivíduos, se começarem a aperceber no conflito imenso, da causa, e por consequência da falsidade desse conflito, que descobrirão o que é a verdade. Ali existe a felicidade eterna, a inteligência; mas não nesta coisa espúria chamada espiritualidade que é apenas uma conformidade, conduzida pela autoridade através do medo. Eu afirmo que existe algo extremamente real, infinito; mas para o descobrir o homem não deve ser uma máquina imitativa, e as nossas religiões não são nada mais que isso. E além disso, as nossas religiões em todo o mundo mantêm as pessoas separadas. Isto é, vocês com os vossos preconceitos específicos, autodenominando-se Cristãos, e os Indianos com as suas crenças específicas, autodenominando-se Hindus, nunca se encontram. As vossas crenças mantêm-nos separados. As vossas religiões estão a mantê-los separados. “Mas”, dizem vocês, “se os Hindus pudessem ao menos tornar-se Cristãos, então haveria uma unidade”, ou os Hindus dizem, “Deixemos que se tornem todos Hindus.” Mesmo então há divisão, porque a crença necessita de uma divisão, uma distinção, e por esse motivo a exploração e a luta contínua da diferença de classes.

Dizemos que as religiões unem. Pelo contrário. Olhem para o mundo fraccionado em seitas pequenas e tacanhas, lutando umas contra as outras para aumentar o seu número de membros, a sua riqueza, as suas posições, as suas autoridades, pensando que elas são a verdade. Só há uma verdade, mas não podem chegar a ela através de nenhuma seita, através de nenhuma religião. Para descobrir o que é verdade na religião, e o que é falso, não podem ser uma máquina; não podem aceitar as coisas como elas são. Fá-lo-ão se estiverem satisfeitos, e se estão satisfeitos não me ouvirão, e a minha palestra será inútil. Mas se estão insatisfeitos ajudá-los-ei a questionar corretamente, e desse questionamento descobrirão o que é a verdade, e nessa descoberta do que é verdadeiro descobrirão como viver amplamente, completamente, extaticamente; não com esta constante luta, batalhando contra tudo para vossa própria segurança, à qual chamam virtude.

Mais uma vez, este medo que é criado através da procura de segurança, procura refúgio na sociedade. A sociedade nada mais é que a expressão do individual multiplicada por milhares. Afinal, a sociedade não é uma coisa misteriosa. É o que vocês são. É premente, controladora, dominadora, tortuosa. A sociedade é a expressão do indivíduo. Esta sociedade oferece segurança através da tradição, a que chamamos opinião pública. Isto é, a opinião pública diz que possuir, possuir bens, é perfeitamente ético, moral, e dá-lhes distinção neste mundo, confere-lhes honras; vocês são pessoas notáveis neste mundo. É isso que, tradicionalmente, é aceito. É essa a opinião que criaram como indivíduos, porque é isso que vocês procuram. Todos vocês querem ser alguém no estado, seja Sir Qualquer Coisa ou Lord, e todo o resto, como vocês sabem, que se baseia na possessividade, nas posses; e isso tornou-se moral, verdadeiro, bom, perfeitamente cristão, ou perfeitamente hindu. É a mesma coisa. Ora nós chamamos a isso moralidade. Chamamos moralidade ao ajustamento a um padrão. Por favor, não estou a pregar o contrário disso. Estou a mostrar-lhes a falsidade disso, e se quiserem descobrir atuarão, não procurarão o reverso. Isto é, vocês consideram as posses, já sejam a vossa mulher, os vossos filhos, os vossos bens, vocês consideram isso perfeitamente moral. Agora suponham que tinha nascido uma outra sociedade em que as posses fossem más, onde esta ideia de possessividade fosse eticamente proibida – que entrasse na vossa mentalidade como a possessividade entra agora pelas circunstâncias, pela situação, pela opinião. Então a moralidade perde todo o seu significado, a moralidade é então uma mera conveniência. Não a percepção correta das coisas, mas o engenhoso ajuste às circunstâncias – a que chamam moralidade. Suponham que querem, como indivíduos, não ser possessivos, vejam o que têm que combater! Todo o sistema da sociedade não é senão possessividade. Se o compreendessem e não fossem levados pelas circunstâncias que não são chamadas morais, então vocês, como indivíduos, teriam que começar a afastar-se desse sistema voluntariamente, e não teriam que ser levados como cordeiros a aceitar a moralidade da não-possessividade.

Atualmente são forçados quer gostem quer não, quer pensem que é sensato ou não; são forçados pelas situações, pelo meio que criaram, porque são ainda possessivos, e agora talvez apareça um outro sistema que os leve ao oposto – a ser não-possessivos. Certamente não é moralidade; é apenas timidez ser forçado pelo meio a ser possessivo ou não-possessivo. Ao passo que, para mim, a verdadeira moralidade consiste em compreender totalmente o absurdo da possessividade e combatê-la voluntariamente; e não ser conduzido de uma maneira ou de outra.

Agora, se olharem, esta sociedade está baseada na consciência de classes que é mais uma vez a consciência da segurança. Da mesma maneira que as crenças se tornam em religiões, também as posses se tornam na expressão da nacionalidade. Da mesma maneira que as crenças separam as pessoas, condicionam as pessoas, mantêm-nas separadas, também a possessividade, expressando-se como consciência de classes e tornando-se em nacionalidade, mantém as pessoas separadas. Isto é, toda a nacionalidade se baseia na exploração da maioria pela minoria para seu próprio benefício através dos meios de produção. Essa nacionalidade, através do instrumento do patriotismo, é um processo de guerra. Todas as nacionalidades, todos os países soberanos, têm que se preparar para a guerra; é o seu dever, e não adianta serem pacifistas e ao mesmo tempo falar de patriotismo. Não podem falar de fraternidade, e depois falar sobre Cristianismo, porque isso nega-a; não mais aqui que na Índia, ou em qualquer outro país. Na Índia podem falar sobre Hinduísmo e dizer que somos um só, que toda a humanidade é uma só. São apenas palavras – hipocrisia.

Portanto todas as nacionalidades são um processo de guerra. Quando falava na Índia, disseram-me (presentemente os Hindus estão a travessar uma fase dessa doença do nacionalismo), “Olhemos primeiro pelo nosso país porque há tanta gente a morrer de fome; depois podemos falar sobre a unidade da humanidade”, que é a mesma coisa de que falam aqui. “Protejamo-nos e depois falaremos sobre unidade, fraternidade, e todo o resto.” Ora, se a Índia está realmente preocupada com o problema da fome, ou se vocês estão realmente preocupados com o problema do desemprego, não podem lidar apenas com o problema de desemprego da Nova Zelândia; é um problema humano, não um problema de um grupo específico chamado Nova Zelândia. Não podem resolver o problema da fome como um problema Indiano, ou como um problema Chinês, ou o problema do desemprego como um problema Inglês, ou Alemão, ou Americano, ou Australiano, mas têm que lidar como ele como um todo; e só podem lidar com ele como um todo quando não forem nacionalistas, e não forem explorados através do processo de patriotismo. Vocês não são patriotas todas as manhãs quando acordam. Só são patriotas quando os papéis dizem que têm que o ser, porque têm que conquistar o vosso próximo. Somos por isso bárbaros, e não os que invadem o vosso país. O bárbaro é o patriota. Para ele o seu país é mais importante que a humanidade, que o homem; e eu digo-vos que não resolverão os vossos problemas, este problema econômico e de nacionalidade, enquanto forem Novo Zelandeses. Só o resolverão quando forem seres humanos verdadeiros, livres dos preconceitos nacionalistas, quando deixarem de ser possessivos, e quando a vossa mente não estiver dividida pelas crenças. Então poderá haver verdadeira unidade humana, e então o problema da fome, o problema do desemprego, o problema da guerra, desaparecerá, porque vocês considerarão a humanidade como um todo e não como algum povo específico que quer explorar outro povo.

Veem portanto o que está a dividir o homem, o que está a destruir a verdadeira glória de viver na qual, unicamente, podem encontrar essa realidade viva, essa imortalidade, esse êxtase; mas para a encontrar têm que ser em primeiro lugar indivíduos. Isso significa que têm que começar a compreender, e por consequência a agir, para descobrir o que é falso no sistema existente, e assim, como indivíduos, formarão um núcleo. Não podem alterar as massas. O que são as massas? Vocês próprios multiplicados. Esperam que as massas atuem, esperando que por algum milagre haja uma mudança completa do dia para a noite, porque não pensam, não querem agir. Enquanto esta atitude de espera existir, haverá cada vez maior luta, cada vez mais sofrimento, falta de compreensão; a vida torna-se uma tragédia, algo sem valor. Ao passo que, se vocês, como indivíduos, agirem voluntariamente porque querem compreender e descobrir, então tornar-se-ão responsáveis, então não se tornarão reformadores, então haverá uma mudança completa, não baseada na possessividade, nas distinções, mas na verdadeira humanidade na qual há afeto, há pensamento, e por isso um êxtase de viver.

Jiddu Krishnamurti, O que é a Acção Correcta? Filosofia. Textos de J.Krishnamurti em Português.

Postado originalmente no site: http://sweetrockandnroll.blogspot.com.br/
Referência: http://www.jiddu-krishnamurti.net/pt/krishnamurti-o-que-e-a-accao-correcta/1934-03-28-krishnamurti-o-que-e-a-accao-correcta

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Quote of the day - Bhuda


"All that we are is the result of what we have thought. If a man speaks or acts with an evil thought, pain follows him. If a man speaks or acts with a pure thought, happiness follows him, like a shadow that never leaves him." (Bhuda)

Sugestões de livros para entender a crise (Por Rogério Rocha)

Neste vídeo trago quatro sugestões de obras cuja leitura pode nos ajudar mergulhar nas raízes dos problemas e compreender as razões que levam o Ocidente ao quadro de crise que ora se abate sobre muitas de suas nações. Assistam ao vídeo!.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Quem foram os mestres da suspeita? (Por Rogério Rocha)

Neste vídeo eu apresento a vocês os pensadores, filósofos e cientistas que foram denominados de "mestres da suspeita". Ao longo da apresentação tentarei fundamentar, em breves linhas, a razão pela qual tais figuras do pensamento humano terminaram por receber tal designação. 


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Hannah Arendt: a filósofa como poeta

Hannah Arendt: a filósofa como poeta
Hannah Arendt: a filósofa como poeta

Hannah Arendt: a filósofa como poeta

Hannah Arendt é mais conhecida como pensadora, analista privilegiada do totalitarismo, e, infelizmente, como a amante judia de Heidegger (“filósofo para filósofos”). Mas era também poeta
A faceta da judia Hannah Arendt filósofa quase militante — dotada de uma coragem intelectual excepcional, mesmo quando enfrentava o reducionismo e o vitimismo do establishment judaico — é por demais conhecida. Nascida em 1906 e falecida em 1975, é frequentemente citada em livros e reportagens e artigos de jornais de todo o mundo tal a vitalidade de suas ideias. Afirma-se que algumas de suas ideias são insight não desenvolvidos — e seu livro clássico, “Origens do Totalitarismo”, mereceu críticas de vários autores, como os judeus Bruno Bettelheim, psicanalista, e Raul Hilberg, historiador. Nos últimos tempos, nos quais dinheiro compra até amor verdadeiro, tem sido mencionada, com constância excessiva, por sua paixão pelo filósofo Martin Heidegger. Num de seus livros, “Homens em Tempos Sombrios” (Companhia das Letras, 256 páginas, tradução de Denise Bottmann), escreveu um ensaio sobre Heidegger apresentando-o como uma espécie de “último romântico”. Trata-se de uma “defesa” relativamente sutil, porque Heidegger encantou-se pelas “ideias” do nazista Adolf Hitler. Mas há uma Hannah Arendt pouco conhecida e nada divulgada — a poeta.
Como poeta, Hannah Arendt não era uma gigante, ao contrário dos seus adorados Rilke e Auden, mas não era medíocre. As poesias publicadas nesta edição foram extraídas da melhor biografia de Arendt em português: “Hannah Arendt — Por Amor ao Mundo” (Editora Relume-Dumará, 492 páginas), de Elizabeth Young-Bruehl. A tradução é de Antônio Trânsito (revisada por Ari Roitman e revisão técnica de Eduardo Jardim de Moraes). Evidentemente, a filósofa sabia que não era uma poeta do porte de Goethe, Heine, Rilke, Auden e T. S. Eliot, mas as poesias, ainda que por vezes exibam certa secura e a autora mostre apenas razoável capacidade no manejo das palavras, têm certa qualidade, sobretudo por seu caráter, digamos, histórico e filosófico. Ela escreveu, por exemplo, uma poesia sobre Walter Benjamin. Alguns poemas, é verdade, parecem ter sido escritos por uma colegial, mas, aqui e ali, a força filosófica do pensamento de Arendt injeta qualidade e vitalidade onde falta poesia. “A tristeza é como uma luz que arde no coração/A escuridão é uma brasa que vasculha nossa noite” — um dos bons momentos de sua poesia.
Arendt amava poesia, inclusive as do “stalinista” alemão Beltolt Brecht, que perdoava, como a Heidegger, pelo seu enorme talento. Ela lia o escritor americano William Faulkner, por exemplo, e adorava uma de suas frases (Arendt adorava citações, como Karl Marx): “O passado nunca está morto, e nem mesmo é passado”. No livro, embora não tenha a ver com o assunto exposto aqui, que é poesia, há um trecho surpreendente, uma revelação de Arendt ao seu admirado Jaspers: “A tentativa malsucedida de [de Theodor W. Adordo] de colaboração [com o nazismo] em 1933 foi exposta no jornal estudantil de Frankfurt, ‘Discus’. Ele respondeu com uma carta indescritivelmente lamentável, que não obstante deixou uma forte impressão nos alemães. A verdadeira infâmia do assunto foi que ele, meio-judeu (por lei), deu esse passo sem informar seus amigos. Ele tivera esperanças de se safar com o nome da família italiana de sua mãe” (aqui se encerra o texto de Arendt; o trecho a seguir, sem aspas, é da biógrafa), Adorno, ao invés do nome mais obviamente judeu de seu pai, Wiesengrund (página 109).

Cansaço

Tarde caindo —
Um suave lamento
soa nos pios dos pássaros
que convoquei.
Muros cinzentos
desmoronam.
Minhas próprias mãos
encontram-se novamente.
O que amei
não posso manter.
O que me cerca
não posso deixar.
Tudo declina
enquanto cresce a escuridão.
Não me domina —
deve ser o curso da vida.
(Cansaço foi escrito quando Hannah Arendt tinha 17 anos.)

— o —

Perdida em autocontemplação
Quando olho minha mão —
Estranha coisa me acompanhando —
Estou então em nenhuma terra,
Por nenhum Aqui e Agora,
Por nenhum Que apoiada.
Então sinto que deveria desprezar o mundo.
Deixar o tempo passar se ele quiser
Mas não deixar que haja mais sinais.
Olhe, aqui está minha mão,
Minha e estranhamente próxima,
Mas ainda — uma outra coisa.
Será mais do que sou?
Terá um propósito mais alto?
(Ao escrever este poema, Arendt já estava envolvida, emocionalmente, com Heidegger)

— o —

Por que você dá sua mão
Envergonhado, como se fosse um segredo?
Você é de uma terra tão distante
Que não conhece o nosso vinho?
(Poema sobre seu complicado relacionamento com Heidegger, que era casado)

Canção de verão

Através da abundância que amadurece no verão
Eu irei — e deslizarei minhas mãos,
Estenderei meus membros doloridos pa­ra baixo,
Em direção à terra escura e pesada.
Os campos que se inclinam e sussurram,
As trilhas nas profundezas da floresta,
Tudo exige um estrito silêncio:
Que possamos amar embora soframos;
Que nosso dar e nosso receber
Possam não contrair as mãos do sacerdote;
Que em quietude clara e nobre
Possa a alegria não morrer para nós.
As águas de verão transbordam,
O cansaço ameaça destruir-nos.
E perdemos nossa vida
Se amamos, se vivemos.
(Sobre este poema, escreve Elizabeth Young-Bruehl: [Arendt] “Ainda se sentia presa no dilema de um amor ilícito e impossível, que nunca iria ‘contrair as mãos dos sacerdotes’, mas estava determinada a manter viva a alegria que ele lhe trouxera”. O amor era Heidegger)

— o —

A noite me envolveu
Macia como o veludo, pesada como a tristeza.
Não conheço mais a sensação do amor
Não conheço mais os campos a brilhar,
E tudo quer fugir de mim —
Simplesmente para dar-me paz.
Penso nele e no amor —
Como se estivessem num país distante;
E o “vir e dar” seja estranho:
Eu mal sei o que me ata.
A noite me envolveu
Macia como o veludo, pesada como a tristeza.
Em parte alguma há uma rebelião surgindo
Na direção de nova alegria e tristeza.
E a distância que chamou para mim,
Todos os ontens tão claros e profundos,
Eles não mais estão me distraindo.
Conheço uma água grande e estranha
E uma flor a quem ninguém dá nome.
O que pode destruir-me agora?
A noite me envolveu
Macia como o veludo, pesada como a tristeza.
(Este é, na opinião de Elizabeth Young-Bruehl, um dos melhores poemas de Arendt. A biógrafa escreve: “Nesse poema, Hannah Arendt procurou alcançar aquele reino em que os poetas românticos alemães haviam descoberto coisas tais como a ‘flor azul’ inominável e vários mares não mapeados — uma paisagem de outro mundo e outra transcendência”.)

— o —

Consoladora, inclina-te suavemente para o meu coração.
Dá-se, silenciosa, alívio para a dor.
Coloca tua sombra sobre tudo por demais
brilhante —
Dá-me a exaustão, cobre o brilho.
Deixa-me teu silêncio, teu abrandamento refrescante.
Deixa-me embrulhar em tua escuridão tudo o que é mau.
Quando a claridade doer com novas visões
Dá-me a força para seguir adiante com
firmeza.

— o —

Não chore pela suave tristeza
Quando o olhar de quem não tem lar
Ainda o corteja envergonhado.
Sinta como a história mais pura
Ainda oculta tudo.
Sinta o movimento mais tenro
De gratidão e fidelidade.
E você saberá: sempre,
O amor renovado será dado.
(Nesse poema, Hannah Arendt “conversa” com seus amigos, como se eles fossem entender sua “devoção a alguém sem igual”, ou seja, Heidegger.)

W. B.

O crepúsculo voltará algum dia.
A noite descerá das estrelas.
Repousaremos nossos braços estendidos
Nas proximidades, nas distâncias.
Da escuridão soam suavemente
pequenas melodias arcaicas. Ouvindo,
vamos desapegar-nos,
vamos finalmente romper as fileiras.
Vozes distantes, tristezas próximas.
Essas são as vozes e esses os mortos
a quem enviamos como mensageiros
na frente, para levar-nos à sonolência.
(W. B. significa Walter Benjamin. Ao saber que o amigo havia se matado, ao fugir da perseguição nazista, Arendt transformou seu lamento num poema.)

— o —

Elas surgiram do lago estagnado do passado —
Essas muitas memórias.
Figuras enevoadas arrastaram os círculos ansiosos de meu encadeamento
Atrás de si, sedutoras, ao seu objetivo.
Mortos, o que quereis? Não tendes lar ou família em Orcus?
Finalmente a paz das profundezas?
Água e terra, fogo e ar, são vossos servidores como se um deus,
Poderosamente, vos possuísse. E vos convocaram
Das águas estagnadas, pântanos, charnecas e açudes,
Reuniram-vos, unificados, juntos.
Brilhando no crepúsculo cobris o reino dos vivos com neblina,
zombando do “não mais” que escurece.
Nós fomos brindar, abraçar-nos e rir, e relembrar
Sonhos de tempos passados.
Nós, também, nos cansamos de ruas, cidades, das rápidas
mudanças de solidão.
Por entre os barcos a remo com seus pares amorosos, como jóias
Em lagos nas florestas,
Nós, também, poderíamos fundir-nos quietamente, ocultos e envoltos nas
Nuvens indistintas que breve
Vestirão a terra, as margens, o arbusto e a árvore,
Esperando a tempestade.
Esperando — fora da neblina, do castelo de nuvens, loucura e sonho —
A tempestade que se eleva e se retorce.
(Poema escrito em 1943, nos Estados Unidos. Arendt acompanhava os acontecimentos da Europa com atenção e desfrutava de um pouco de paz.)

— o —

A tristeza é como uma luz que arde no coração
A escuridão é uma brasa que vasculha nossa noite.
Precisamos apenas acender a pequena chama triste
Para encontrar o caminho de casa, como sombras, através da
longa, vasta noite.
A floresta, a cidade, a rua, a árvore, são
luminosos.
Feliz é aquele que não tem lar; ele ainda o vê
em seus sonhos.
(Arendt “ansiava pelo mundo perdido, a Europa”, diz sua biógrafa. No poema acima, de 1946, há uma referência a um poema de Rilke, no qual escreve “feliz daquele que tem um lar”. Arendt está longe de seu lar, a Alemanha. Mas depois adaptou-se aos Estados Unidos.)

— o —

A terra poeteia, de campo a campo,
com árvores interlineares, e deixa
que teçamos nossos próprios caminhos ao redor
da terra arada, para o mundo.
Flores rejubilam-se ao vento,
a grama estende-se macia para acolhê-las.
O céu se torna azul e saúda suavemente
as macias cadeias que o sol teceu.
As pessoas passam, ninguém está perdido —
terra, céu, luz e florestas —
brincam na brincadeira do Todo-Poderoso.

O amor é uma poderosa força antipolítica

“O amor, em virtude de sua paixão, destrói o ‘entre’, esse espaço que nos relaciona com outros e nos separa deles. Enquanto dura seu encanto, o único ‘entre’ que pode inserir-se no meio de dois amantes é a criança, o próprio produto do amor. A criança, esse ‘entre’ com que os amantes agora estão relacionados e mantêm em comum, é representativa do mundo onde ela também os separa; é uma indicação de que eles inserirão um novo mundo no mundo existente. Por meio da criança, é como se os amantes retornassem ao mundo do qual seu amor os expeliu. Mas essa nova mundanidade, resultado e único final possíveis de um caso de amor, é, num certo sentido, o final de um amor, que deve superar novamente os padrões ou ser transformado em outro modo de estar juntos. O amor por sua natureza não é mundano, e é por isso — não por raridade — que é não apenas apolítico, mas antipolítico, talvez a mais poderosa de todas as forças antipolíticas humanas.”
(Trecho de “A Con­dição Hu­mana”, de Hannah Arendt)

Originalmente publicado em: www.revistabula.com

A crise da Linguagem (por Simone Nardi Grama)

POR SIMONE DE NARDI GRAMA*


Investigar a linguagem, e sua "crise", é um dos desafios mais intrincados para os pensadores. Conheça a visão de três grandes autores sobre o assunto


Platão, Sócrates, Crátilo e tantos outros já se debruçaram sobre a investigação da linguagem, sobre a significação dos nomes e sobre a relação entre a linguagem e o ser. Os sofistas fizeram uso hábil da linguagem, transformando o que poderia ser "falso", em "real". A Filosofia faz uso da linguagem para buscar o conhecimento, e vamos tentar identificar o que levou a linguagem a entrar em crise, se ela mesma por não conseguir expressar o mundo em palavras, ou se o ser humano a fez entrar em crise por fazer um uso degenerado das palavras com as quais ela nos serve.

COMMONS
 
Qual seria efetivamente a relação do ser humano com a linguagem, essa nunca foi uma pergunta nova, contudo, essa questão foi um dos temas que chamou a atenção de Mauthner que como muitos outros filósofos, tentou buscar na essência da linguagem a solução para o problema que se apresentava. Realmente seriam as palavras capazes de expressar a beleza da vida, a concepção humana de mundo?Estaria ela limitada e se estivesse, quais seriam seus limites e qual o papel que ela desempenha? Para responder a essas questões Mauthner vai examinar a linguagem em si, não as linguagens dos povos, mas a Linguagem, aquilo ao qual ele poderia chamar de essência da linguagem. Em sua crítica, ele não deseja separar ou diferenciar, como fez Kant, pois para ele isso seria uma mera observação da linguagem e não é essa sua intenção, ele deseja buscar uma visão mais clara, ou seja, a essência da linguagem em si. Suas reflexões visam demonstrar que a linguagem nada mais é do que uma grande ilusão, uma abstração, para isso ele vai demolir essas ilusões, revelando assim a verdadeira face da linguagem.

Mauthner
Fritz Mauthner (1849- 1923) foi um filósofo, novelista, crítico teatral e ensaísta austro-húngaro, especializado em filosofia da linguagem.

Nossas convenções
Hermógenes defendia uma visão convencionalista, que defendia que os nomes eram escolhidos por uma convenção, não podendo, portanto , existir nomes falsos, aqui na crise da linguagem, como também o fará Kraus, veremos que muitas vezes ela é usada conforme o desejo humano, por uma convenção que possa beneficiar algumas classes.


Segundo podemos encontrar no texto " A crise da Linguagem na Viena Fin-De-Siécle", para Mauthner a linguagem está subordinada aos nossos hábitos e as nossas convenções, não tento por isso, elementos universais, por isso a ausência da unidade e a variação no significado das palavras. Mauthner nos diz então, que devido a tudo isso, a linguagem não possui uma essência, sendo apenas um apanhado de convenções que, apesar de precárias, desempenham de forma eficiente, seu papel dentro da sociedade, sendo que tais convenções ocorrem exatamente por causa do "papel vil", entre as relações humanas, reduzindo a linguagem ao uso que fazemos dela que pode ser Bom ou Mau. Mauthner propõe então o suicídio da linguagem, sua desconstrução, insinuando o ingresso da filosofia no reino do silêncio, pois para ele apenas entre os incultos existe uma linguagem sã, enquanto que, no seio intelectual e artístico, evidenciava-se o uso vazio da linguagem. Mauthner propõe também o silêncio para alcançar o mítico,de forma a se alcançar uma vida harmoniosa com o mundo, ou seja, o silêncio faria com que o homem se harmonizasse novamente consigo mesmo e com o mundo que o rodeia.

Hofmannsthal também se debruçou sobre o problema da linguagem. Assim como Mauthner, Hofmannsthal acreditava que a linguagem era solidão, sobretudo porque sentia-se mal ao dizer palavras como "alma", espírito" ou "corpo", certos diálogos o deixavam furioso e lhe pareciam sobretudo falsos, o que o fazia sentir-se amargamente solitário, para ele as palavras eram estéreis, destituídas de um sentido e lhe traziam imobilidade, afastando-o e anulando-o frente ao mundo. Assim como Mauthner, Hofmannsthal apelou ao místico, buscou uma ligação mais forte com o mundo pautada apenas nos sentidos, buscando como Mauthner, o reino do silêncio, onde para ele a Vida sim se revelava com sua verdadeira linguagem. Assim ele coloca que a crise da linguagem ocorre porque ela não possui uma capacidade eficiente, para a expressar a Vida em palavras. Como Mauthner, Hofmannsthal acusa a linguagem de ser incapaz de demonstrar o mundo, por ser restrita e limitada.

KRAUS: DEGENERAÇÃO DA CULTURA, DEGENERAÇÃO DA LINGUAGEM
Karl Kraus, ao contrário de Mauthner e Hofmannsthal, dirige ao ser humano, a culpa pela crise da linguagem. A degeneração da cultura vienense para ele, causou também a degeneração da linguagem, que foi asfixiada pelo mau uso que fizeram dela, sobretudo artistas e jornalistas. Devemos lembrar que Hofmannsthal, embora tenha rompido com sua veia poética, escrevia peças de óperas. Kraus concordava com Mauthnner ao dizer que o povo humilde é que conhecia a verdadeira linguagem, porém para Kraus, isso vinha sendo tirado pelo mau uso dela em folhetins, e a crise da linguagem ocorreu exatamente com a relação de mau uso da imprensa no uso da língua, foi esse uso degenerado da imprensa que destruiu a linguagem. Ao contrário de Mautner e Hofmannsthal, Karl Kraus não acreditava que a linguagem em si fosse o problema, não acreditava que fosse incapaz de demonstrar o mundo em palavras , nem por isso inconsistente, sua corrupção ocorreu com a morte da cultura, onde para ele, a imprensa teve enorme influência. Era, na opinião de Kraus, a imprensa quem fornecia novas práticas e novos valores sociais a cultura vienense, era ela quem os manipulava e conduzia para onde bem entendesse e desejasse. O jornal possuía poder, e seu poder se espalhava por todas as classes, construindo aos poucos a opinião pública, produzindo um novo paradigma, uma nova cultura, através de interesses, puramente financeiros de quem pudesse pagar mais. "Ela tornou-se a principal responsável pela redução da palavra escrita a um envelope conveniente para uma opinião"( "A crise da Linguagem na Viena Fin-De-Siécle")

Mauthner
Fritz Mauthner (1849-1923) foi um filósofo, novelista, crítico teatral e ensaísta austro-húngaro, especializado em filosofia da linguagem.
Nossas convenções
Hermógenes defendia uma visão convencionalista, que defendia que os nomes eram escolhidos por uma convenção, não podendo, portanto , existir nomes falsos, aqui na crise da linguagem, como também o fará Kraus, veremos que muitas vezes ela é usada conforme o desejo humano, por uma convenção que possa beneficiar algumas classes.


A linguagem usada nos folhetins era ornamentada, maquiada, nada mais era do que uma linguagem estéril, coberta de más intenções e que possuía, simplesmente, a função de moldar opiniões, o que foi destruindo assim, a cultura vienense e destruindo, distorcendo por assim dizer a essência da linguagem. Essa "morte da cultura" afastava mais e mais a sociedade do místico, do real, de si mesma e talvez um detalhe que Kraus tenha disto, e que nos remete aos dias atuais: "escrever com a linguagem ou escrever guiado pela linguagem?", o certo é que os folhetins vienenses escreviam com a linguagem, encobriam, enganavam e iniciavam, para Kraus, a crise da linguagem. Karl Kraus pede a revalorização da linguagem, a superação de sua crise através do envolvimento no "interior da linguagem", de sua lógica, à volta ao bom uso da palavra, o que havia sido, com certeza, esquecido pela cultura vienense.
COMMONS
Três pensadores, um só objetivo, desvendar o que levou a linguagem a uma crise, de um lado a acusação de Mauthner e Hofmannsthal a linguagem, como sendo ela uma mera ilusão, incapaz de definir o mundo em que vivemos, segundo eles, apenas no reino do silêncio, dos sentimentos, é que permaneceria a verdadeira linguagem, que não poderia ser descrita em palavras; esse retorno ao místico une Mauthner e Hofmannsthal, esse retorno ao mundo, a hora de aprender a calar, a silenciar, pois para eles não há um universal, não há uma essência que possa tornar a linguagem algo eficiente para demonstrar a vida, por isso a necessidade da destruição da linguagem e a busca pelo mundo interior. De outro lado Karl Kraus, que dirige a culpa pela crise da linguagem a própria sociedade, ao uso degenerativo que as pessoas fizeram das palavras, aos interesses financeiros que os conduziram e a degeneraram, ela sim uma vítima da incapacidade humana de comunicar-se, pede ele a revalorização da mesma, para que possa , a linguagem, sobreviver.
Será que a crise da linguagem foi realmente superada?Pela visão de Kraus, é possível dizer que não, pois hoje os folhetins foram substituídos pelos telejornais, pela internet que fazem a massificação da sociedade, e a leva a morte da cultura,esmagando sob seus pés a linguagem das palavras, tal como ocorreu em Viena, sinal de que talvez também estejamos, em nosso fim de século cultural, e que Como Mauthner e Hofmannsthal concluíram, talvez apenas no silêncio, o homem possa realmente encontrar a verdadeira linguagem.

Hofmannsthal
Um dos fundadores do Festival de Salzburgo, o escritor e dramaturgo austríaco Hugo Laurenz August Hofmann von Hofmannsthal (1874- 1929) foi um colaborador do compositor e maestro alemão Richard Strauss (1864-1949).

REFERÊNCIAS
PANSARELLI, Daniel (org.) Metafísica, Epistemologia e Linguagem. São Bernardo do Campo: Umesp, 2009.
SILVA, José Fernando da. "A crise da Linguagem na Viena Fin-De-Siécle". Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, 2008.
*Simone De Nardi Grama é graduada em Filosofia e especialista em Filosofia Contemporânea e História pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).

Post publicado originalmente na Revista Filosofia online: conhecimentopratico.uol.com.br

domingo, 3 de janeiro de 2016

Citação do dia - Michel Foucault

Michel Foucault - filósofo francês

Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos - de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência (...) Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc.; sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir dela, valorizaram-se as reivindicações morais do humanismo. Mas não devemos nos enganar: a alma, ilusão dos teólogos, não foi substituída por um homem real, objeto de saber, de reflexão filosófica ou de intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda do que ele. Uma "alma" o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo. (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, pp. 31-32)