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quinta-feira, 11 de março de 2021
A QUESTÃO DA MORTE: RESSIGNIFICANDO A VIDA
Por Rogério Rocha
Gostaria, inicialmente, de lhes fazer uma pergunta: quem de nós estaria preparado para morrer hoje? A resposta, talvez, não a tenhamos para logo, dada a profundidade do questionamento e a singularidade decisiva de sua implicação. E mesmo se a tivéssemos, restaria, ainda assim, a meu sentir, duvidosa em sua essência.
Todos já vivenciamos de alguma forma a experiência da morte, sobretudo pela perda de amigos e entes queridos. Portanto, a morte, desde quando muito pequenos, já não nos é uma completa estranha. Ainda assim, tratamos, muitos de nós, de tentar ignorá-la, esquecê-la ou evitá-la enquanto tema central dentro da realidade de nossas vidas. Outros, ao contrário, a celebram, a respeitam ou a tem como parte de algo insondável.
Sob o aspecto médico-legal, a morte já foi concebida como a cessação das funções cardíacas. Hoje é compreendida como a cessação das funções cerebrais. Biologicamente, portanto, encontra-se relacionada a um processo de passagem do tempo e degradação orgânica das estruturas físicas e psíquicas dos seres vivos, que se efetiva no momento da falência das funções do cérebro.
As seitas iniciáticas, as sociedades secretas, as religiões e a espiritualidade nos conscientizam sobre a necessidade de refletirmos sobre a morte. Os livros e rituais da Maçonaria, por exemplo, trazem um grande número de citações, referências e passagens alegóricas em torno da morte. Com elas, um fundo pedagógico, um ensinar a viver à espera desse momento final; um aproximar-se com menos medo e mais serenidade do sentimento de finitude, vulnerabilidade e fragilidade que nos acompanha desde sempre.
Mas, a par disso, quero trazer para esta reflexão alguns elementos da sabedoria do pensamento maçônico e da filosofia clássica de Roma, na figura do filósofo estóico Sêneca. Como referência, usarei excertos das obras “Sobre a brevidade da vida” e “Consolação a Márcia”, ambas da autoria do reverenciado pensador.
Em “Sobre a brevidade da vida”, por mais que não pareça, Sêneca trabalha com a tese central de que o tempo que temos não é curto, mas sim que perdemos grande parte dele com coisas tolas.
O fato é que a vida breve não é sempre assim tão breve. Ocorre que, por vezes, através de nossas condutas ou do próprio destino, se assim considerarmos, temos a existência abreviada. Logo, as catástrofes, os acidentes e o mau uso de nossas liberdades podem estipular um fim prematuro.
Segundo Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), para aquele que dela sabe dispor, a vida se estende por muito tempo. E o que a destrói é a dedicação a atividade inúteis.
Deste modo, há pessoas que não perseguem nenhum objetivo fixo, que se entregam aos vícios, às paixões ou que não empregam seu tempo consigo mesmos, mas com ocupações fúteis ou com a mera inatividade. Essas então esbanjam e perdem a vida para o tempo, dizia ele.
Por outra parte, há quem nunca tenha tempo para si nem para ninguém. Quem nunca tire férias e passe a vida inteira a trabalhar. Ou mesmo há pessoas que fazem planos para 15, 20 ou 30 anos, sem qualquer certeza de que chegarão até lá.
Volto a Sêneca e abro aspas para que o pensador possa falar sobre aprender a morrer e a viver:
“Deve-se aprender a viver por toda vida, e, por mais que tu talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer. (…) Muitos dos maiores homens (…) empregaram até o último de seus dias para aprender a viver, contudo, muitos deles deixaram a vida tendo confessado ainda não sabê-lo.”
Aqui podemos retornar aos conhecimentos maçônicos e às referências simbólicas à morte em seus variados graus, mas, sobremodo, nos seus três graus de base. Outra vez a figura de um aprendizado que é buscado ao longo de toda a vida. Um aprender a viver em paz e união, dentro de vínculos fraternos, trabalhando as virtudes, buscando o conhecimento e aplacando as falhas e vícios, até que chegue aquele dia onde ocorre o encontro com o fim.
Daí podermos falar, dentro da filosofia maçônica, tanto num aprender a viver quanto num aprender a morrer. E isso é feito dentro da coisa mais preciosa de todas: o tempo.
Para Sêneca, a vida divide-se em três períodos: o que foi, o que é e o que há de ser. Dentre os quais o que vivemos é um momento breve; o que havemos de viver, duvidoso; o que já vivemos, certo. Ainda assim, há quem nunca seja senhor de um momento sequer da sua vida.
Em “Consolação a Márcia”, espécie de carta escrita com o fito de aplacar, pela via racional, as dores da alma de alguém que vive o luto duradouro de uma perda, o filósofo, escritor e político romano tenta dar alento e fazer mudar de postura a uma mulher que perdera o filho ainda muito jovem.
Passados três anos, Márcia, a mãe pesarosa, ainda chorava a morte do seu jovem rebento, cujo futuro promissor fora encerrado pelo advento de um terrível incidente. Com argumentos fortes e exemplos retirados da realidade, ele mostra a ela quantos também perderam seus entes queridos e foram capazes de superar o luto.
Para isso, leva-lhe a questionar se nossas dores devam ser grandes ou eternas. Mostra-lhe que nossos soluços não ressuscitarão os mortos e que nosso desamparo não mudará uma sorte imutável. Afinal, segundo explica, a morte é um golpe da vida há muito esperado e que devemos saber receber.
Sêneca alerta-nos ainda, por intermédio das falas dirigidas a Márcia, que não devemos nos iludir, pois somos meros depositários das coisas deste plano factual. Que elas passam, terminam, acabam. Logo, no mundo, de alguma forma, tudo é perda. Afinal, por quê inauguramos a vida em meio a lágrimas e choro? E reforçava, afirmando: “Se você chora porque seu filho morreu, culpe a hora em que ele nasceu. Seu fim lhe foi determinado desde o instante que veio ao mundo.”
Ademais, se para todos ela é o fim da existência orgânica, para muitos é a cura, para alguns a realização de um desejo. Montaigne dizia que: “Quem ensinasse os homens a morrer, os ensinaria a viver.” Platão, por sua vez, já afirmara: “A filosofia é uma preparação para a morte.” Epicuro também nos lembra que “A morte é uma quimera: porque enquanto eu existo, ela não existe; e quando ela existe, eu já não existo.”
A morte, então, acaba por nos lançar para fora da vida. E, para isso, nos coloca em confronto com o ato mais íntimo de nossa jornada. Por isso é poderosa a lição de Martin Heidegger, que em seu magistério nos alertava: “Em sentido genuíno, não fazemos a experiência da morte dos outros. No máximo, estamos apenas juntos”.
Ela é, pois, a última cena neste teatro que é o mundo. Aquela que nos lançará ao total desconhecido. Singular, intensa, só sua, só minha, ela seria uma espécie de trampolim para o porvir. Mas, afinal, transpor a vida não seria enfim um dos caminhos para a transcendência?
O fato é que, expostas tais considerações, gostaria de encerrar com algumas conclusões a que pude chegar: 1) A morte nos ensina tanto quanto a vida. Por essa razão, ela é capaz de ressignificar as nossas jornadas existenciais. 2) A morte é uma presença (constante). Mas por quê? Porque a vida é um projeto. Um desenvolver-se de coisas e momentos, no espaço e no tempo. E a morte (essa presença constante) vem para interromper o projeto da vida. 3) O saber e o conhecimento nos preparam para o bem envelhecer e para encararmos o fim da vida. 4) A morte não encerra a nossa história. Principalmente se tivermos uma vida valorosa e significativa. Pois é a partir daí que viraremos memória, seremos reconhecidos pelo que fomos e realizamos. E aqueles com quem partilhamos momentos contarão histórias sobre nós e celebrarão a saudade que deixarmos por meio de lembranças e homenagens.
Afinal, somos mesmo essas velhas crianças, sentadas nos bancos da estação do tempo, a perguntar, a todo momento, que horas são, somente para não esquecermos que o nosso destino é um dia partir.
terça-feira, 23 de fevereiro de 2021
COEXISTIR É SUPERAR O ÓDIO (por Rogério Henrique Castro Rocha)
Adentrado em seu terceiro decênio, este século tem sido pródigo em distúrbios de todas as ordens. Com o crescente acirramento de estados conflituosos entre indivíduos e grupos, o período em curso dá mostras de que teremos ainda duras caminhadas.
O cenário global tem-me feito perceber o quanto as pessoas vem sendo tragadas para dentro de uma espiral de reações/relações destrutivas, pesadas e violentas, mesmo, por vezes, no âmbito dos relacionamentos mais banais. Este fenômeno revela o nível de precariedade das relações humanas na contemporaneidade e, com ele, apresenta a progressiva fragmentação das amarras sociais na base das vivências mais comezinhas, demonstrando alguns dos traços característicos do espírito deste século. Dentre eles, infelizmente, a disposição para o embate.
A despeito do seu ritmo voraz, de sua notável liquidez – inflacionada pelos aparatos técnicos que se proliferam com o status de novidade – o presente histórico sobrepõe dezenas de camadas de sentido (ou de falta dele) às tantas outras conhecidas, tornando a existência um grande paradoxo, visto que, embora tenhamos múltiplas coisas à mão quase o tempo todo, temos também uma vida bem mais complexa. Sobretudo quando falamos das exigências sobre o nosso psiquismo, com as cobranças por mais saúde, sucesso, dinamismo social, proatividade no trabalho, beleza corporal, etc.
Tais imposições, tomadas por si, demandam enormes empenhos para o alcance de metas por vezes irreais, por outras somente não queridas.
Percebe-se que, a despeito de todas as aparentes facilidades adicionadas aos nossos cotidianos, a humanidade ainda não conseguiu definir, no plano dos fatos, que linha de comportamento adotar como resposta mais adequada às novas configurações relacionais, órfãos que são da bonomia, da gentileza, da benevolência, enfim, dos valores fraternais necessários ao bom gregarismo. O que acaba por expor ainda mais as precariedades dos indivíduos, carentes, dentre tantas coisas, de espiritualidade, paciência, amor e até mesmo de experiências com o que lhes transcende.
Como um bom exemplo disso, temos o ciberespaço. Esse ecossistema on-line (mundo virtual onde nos encontramos e nos perdemos) é a representação mais bem-acabada da precariedade complexa dessas carências.
Na pressa de um dizer que é, ao mesmo tempo, um mostrar-se, um falar e um performar, desprezam-se todas as instâncias de uma possível autocrítica. Desprezam-se, igualmente, a ética da alteridade, o respeito ao outro com quem necessito conviver (independentemente dos dissensos), o bom senso e uma moral social mínima.
No reino difuso da internet, onde ordem e caos tentam compor o débil tecido da coexistência social, ao invés da possibilidade da constituição de uma nova esfera pública, num palco propício ao debate, ao diálogo e à busca da formulação de novos consensos, temos o império do ódio irracional, das dissensões raivosas e dos separatismos baseados em visões de mundo aparentemente inconciliáveis.
O dilema das redes, agora, reside nas chamadas redes de ódio. Ambiente de encontros, mas também de radicalismos, as redes sociais são campo fértil para intrigas e escolhas gratuitas de adversários/inimigos, muitos dos quais, num momento posterior, podem virar alvos a serem atingidos, em sua dignidade e reputação, tanto por injúrias quanto pela propagação de inverdades.
Talvez por isso, muito nos tenha ainda a ensinar a virtude da prudência. Item raro na balbúrdia da mundanidade e que deveria nos servir de crivo toda vez que viéssemos a enunciar um dito ou propagar qualquer informação a respeito de um fato ou em torno de uma ideia. Afinal, falar por falar, fazendo valer unicamente a força do palavrório e os instintos nascidos das paixões que comandam corações e mentes, em nada contribui para que algum equilíbrio social possa ser alcançado.
Deste modo, haver gente do outro lado do espectro de movimentos de beligerância observados atualmente é um imperativo. Aos que assim estiverem, pelo bem do equilíbrio no jogo de oposições que a natureza do universo desde sempre impôs, três itens são imprescindíveis: a serenidade diante dos acontecimentos, a compreensão das nossas imperfeições e o entendimento do que temos de igual em relação aos outros (e do quanto nos havemos de tolerar).
Afora isso, por fim, importa saber que, para que haja coexistência, é preciso que partamos da ideia de que é possível superar todo o ódio escondido dentro de nós.