Por Felipe Maia G. da Silva (UFJF)
Em abril de 2001, Jürgen Habermas viajou com sua esposa para a China, a convite da Academia de Ciências Sociais chinesa para uma série de conferências em Pequim e Shangai. Em duas semanas ele deu oito conferências, falou sobre a globalização, a “constelação pós-nacional” e os direitos humanos, além de responder a questões em seis encontros com acadêmicos e artistas. Lá encontrou uma audiência bem informada sobre os desenvolvimentos da filosofia e das ciências sociais no Ocidente, inclusive sobre seus livros, muitos já traduzidos para o idioma chinês. Os chineses queriam saber de Habermas sobre a validade da teoria do discurso para além das fronteiras culturais, sobre sua concepção de socialismo e de democracia. Expressaram-se em termos muito abertos e críticos sobre as políticas do regime e viram em Habermas um ponto de apoio para suas demandas de democratização. O filósofo-intelectual, por sua vez, expunha o dilema da universalidade dos direitos humanos e sua prioridade em relação à soberania de Estados nacionais frente ao uso da política de direitos humanos como um instrumento de políticas de poder, tema que ocupa boa parte de suas reflexões desde a década de 1990. Os chineses relatam que a visita ensejou uma verdadeira “febre” habermasiana na China, na esteira das esperanças de democratização do regime político. Já Habermas ficou surpreso com o “diálogo intercultural” e com o sentido de sua viagem, anotando: “Eu esperava conversas entre acadêmicos. Agora, estou repentinamente falando para enormes audiências. É tudo muito mais político do que eu imaginava” (p. 326).
O episódio, relatado por Stefan Müller-Doohm, é significativo na biografia de Jurgen Habermas por revelar em um momento de maturidade a dupla condição de renomado filósofo profissional e intelectual público que ele conquistou ao longo de uma carreira que já se desenvolve há mais de sessenta anos. E, como ele ainda está vivo e bastante ativo, a biografia recentemente lançada já nasce com uma segunda edição revista e ampliada garantida para o futuro! A viagem revela também outras questões emblemáticas de sua biografia: o filósofo bastante enraizado no solo político-cultural alemão, participante e defensor do que há de emancipatório na cultura filosófica e política ocidental, ao mesmo tempo que se quer cosmopolita e se empenha em um diálogo intercultural global, num momento em que o entusiasmo com sua obra se confundia com uma esperança em ondas de democratização política em todo o planeta. O mundo ainda não havia assistido o ataque às torres gêmeas, nem a ascensão de líderes radicais de direita na Turquia, na Hungria ou na Polônia. Não poderíamos sequer sonhar com Donald Trump. Nem a China vislumbrava os recentes movimentos de centralização política com Xi Jinping. Não é que as coisas estivessem às mil maravilhas, a crítica ao neoliberalismo globalizante, vista em movimentos sociais de Seattle a Porto Alegre, expunha as misérias do mundo, para usar a expressão de Bourdieu. Mas a expectativa de uma saída superadora contrasta com o clima distópico que prevalece após a crise de 2008.
O livro de Stefan Müller-Doohm joga luz sobre esses temas, a partir da vida de Habermas. Trata-se de um estudo de fôlego, na melhor tradição da sociologia dos intelectuais, por um autor que já havia biografado Theodor Adorno; e no qual o esforço analítico de compreensão das condições e dos dilemas da construção de um intelectual público sobressai, sem contudo deixar de conter elementos importantes dos livros do tipo “vida e obra”, tais como a exposição do conteúdo de suas principais publicações, além de uma série impressionante de anexos com a volumosa bibliografia de Habermas e seus comentadores ou mesmo a interessantíssima lista dos seminários temáticos que ele ministrou ao longo de sua carreira universitária, fazendo do livro uma obra de consulta e referência muito útil a quem queira estudar Habermas.
A obra valoriza o lugar das biografias na sociologia, como forma de endereçar a questão robusta da dialética indivíduo – sociedade, de como alguém se torna um indivíduo na interação com os outros e se torna capaz de forjar sua trajetória e engajar-se nas questões de seu tempo. Sem descurar do exame das condições sociais e institucionais excepcionais que permitiram esse desenvolvimento. O biógrafo anota em seu prefácio que precisou lidar com a tentação de simplesmente contar uma história de excepcional sucesso profissional e pessoal, algo que atenuaria tendências “obscuras”, mas também faria pouco caso do ambiente convencional que permitiu aos membros de sua geração e posição social condições de extraordinária segurança pessoal em momentos decisivos de sua infância ou da socialização profissional, imprescindíveis para a realização das ambições pessoais. Isto posto, o que faz da trajetória de Habermas um tema sociologicamente interessante não é seu sucesso profissional, mas o movimento empreendido por ele de deixar a esfera protegida da ciência e procurar os embates na esfera pública, constituindo-se em um dos mais proeminentes intelectuais públicos de seu tempo. Müller-Doohm faz jus a essa empreitada, reconstituindo as controvérsias nas quais se projetou o intelectual, as posições que assumiu, suas estratégias, bem como a de seus adversários. O biografado se torna aí um modelo encarnado para o “tipo ideal” do intelectual público, um pouco como Sartre poderia ser no contexto francês da metade do séc. XX, ou Heinrich Heine e Voltaire o foram nos séculos anteriores. Habermas parece ter ocupado uma posição equivalente desde os anos 1970 ou 1980 até os dias de hoje, de modo que sua biografia revela também as condições mais gerais do debate intelectual em nosso tempo.
Essas questões ajudam a entender a posição de Habermas perante a tradição da assim chamada “Escola de Frankfurt”, na qual ele conforma as grandes questões que orientam seu desenvolvimento intelectual e político. Habermas aparece aí, ao mesmo tempo, como continuador e descontinuador da “teoria crítica”, por submeter a herança de Adorno, Marcuse e Horkheimer a uma leitura crítica, que, aliás, é o que procuram fazer as novas gerações com seu próprio legado. Mas, para além das diferenças teóricas, há uma descontinuidade cortante no que diz respeito às condições e ao contexto político e cultural no qual Habermas se desenvolveu. Ele, ao contrário de Adorno ou Marcuse, por exemplo, nunca se viu como um “outsider”, mas pode se desenvolver como um participante ativo nos processos políticos e sociais de seu tempo, sem possuir os sentimentos de marginalização ou deslocamento que acompanharam a geração anterior, quase todos oriundos de famílias judaicas, que iniciaram seus trabalhos em condições de precária institucionalização científica, em uma Alemanha que vivia uma escalada autoritária.
Habermas viveu a infância em uma família burguesa de uma pequena cidade alemã, com alta educação e a dose usual de conservadorismo político. Seu pai foi um alto funcionário da Câmara de Comércio, com muito conhecimento de economia, que apoiou o partido nazista e lutou na guerra, tendo sido feito prisioneiro dos americanos (e não dos russos). Após a guerra ele recuperou seu antigo posto e inclinou-se para a literatura econômica “ordoliberal” da Sociedade de Mont Pelerin. O jovem Habermas escapou de servir no front da Segunda Guerra, ao contrário de colegas apenas poucos anos mais velhos, mas não escapou do cumprimento de obrigações com as forças armadas alemãs, tendo, no entanto, preferido o treinamento como médico ao treinamento militar, o que o deixou bastante tentado a seguir a carreira na medicina. O fim da guerra abriu as chances para uma graduação em filosofia numa grande universidade alemã, num ambiente muito marcado pela tradição filosófica da hermenêutica e do neokantismo, com a figura dominante de Heidegger e não a linhagem de um marxismo hegelianizante como o de Frankfurt.
O que poderia ter sido uma socialização burguesa alemã convencional teve seu ponto fora da curva em uma deficiência congênita, uma fenda palatal que exigiu uma série de procedimentos cirúrgicos em seus primeiros anos de vida e o deixou permanentemente com uma entonação nasal na fala. Habermas registra que em sua infância teve sérias dificuldades de se fazer entender em sala de aula ou com os colegas devido a uma pronúncia distorcida da qual ele sequer tinha consciência – e que o transformava em alvo dos colegas. A situação não deve ter sido fácil no ambiente cultural alemão de então, pois, além de tudo, a fenda palatal era descrita pelos livros de biologia como uma das três piores “doenças genéticas” dos seres humanos. Ele, contudo, não parece ter assumido uma estigmatização forte. Posteriormente, Habermas racionalizaria sua experiência à qual atribui uma sensibilização pessoal acerca da importância da linguagem, da dependência dos seres humanos do cuidado de outros e das formas de discriminação, que podem ser vistas como algumas das intuições fundamentais de sua filosofia.
A gênese do intelectual público
A trajetória do intelectual público passa necessariamente pela relação com o universo do jornalismo e da imprensa escrita. Um tanto tipicamente, Habermas cumpre aqui também um certo rito de passagem, pois não tendo encontrado uma posição profissionalmente segura na universidade após seu doutoramento, foi para o jornalismo, tendo trabalhado como crítico cultural e filosófico para os jornais alemães. Sua atividade diária era basicamente a de alguém que lê, resenha e debate publicações contemporâneas. Nesse período ele escreveu cerca de 70 artigos, nos quais não aparece ainda uma linha de afirmação política muito explícita, o que se alteraria em 1955 com a questão pública acerca do rearmamento da República Federal Alemã, ao qual ele se opõe com vigor e que seria uma das razões do descontentamento inicial de Horkheimer com ele. Mas o texto mais emblemático do período, que tem um sabor de estreia na esfera pública, é um protesto contra Heidegger, intitulado “Pensando com Heidegger, contra Heidegger”, em virtude do silêncio do filósofo quando da reedição de seus textos escritos no período nazista com referências positivas ao regime. Para Habermas, a atitude do velho filósofo revelaria um sintoma de uma tendência geral dos alemães em relação ao passado que se queria esquecer – outro tema que o acompanharia por toda a vida em contextos e polêmicas diversas. O artigo gerou fortes reações da intelectualidade heideggeriana e do próprio Heidegger, o que certamente contribuiu para a projeção do jovem escritor que logo conseguiria uma bolsa de estudos para pesquisar o “conceito de ideologia” e em seguida seria contratado por Theodor Adorno como seu assistente no Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt, iniciando uma carreira que seria ao mesmo tempo atribulada e exitosa.
Muller-Doohm oferece um amplo panorama das atividades de Habermas na universidade. Aqui vão se desdobrando os temas que constituiriam seus grandes livros e as relações pessoais e profissionais tecidas ao longo desta trajetória. Adorno foi sem sombra de dúvidas a figura central, tanto em sua trajetória acadêmica quanto pelo modelo de intelectual público que projetou no pós-guerra, com intervenções que colocavam o dedo nas feridas ainda abertas do passado autoritário alemão. Mas são especialmente interessantes as relações com Horkheimer e com Gadamer. Com o primeiro o conflito pesado em sua primeira passagem pelo famoso Instituto em Frankfurt, devido à oposição de Horkheimer ao tipo de atividade política de Habermas no final dos anos 1950 na campanha contra o rearmamento e sua suspeita de que o jovem assistente de Adorno abraçaria teoricamente uma versão revolucionária do marxismo, algo que o tempo cuidaria de esclarecer. Embora as cicatrizes talvez não tenham sido inteiramente superadas, a suspeita inicial cederia lugar a uma postura colaborativa de ambas as partes.
Já com Gadamer, as diferenças teóricas e políticas estimularam desde o princípio a colaboração entre eles. Habermas gostava da hermenêutica pela ênfase na intersubjetividade linguística, mas criticava sua visão “afirmativa” da cultura e da tradição, que negligencia os aspectos ideológicos na produção do entendimento. Gadamer, por sua vez, lamentava que Habermas ainda nutrisse alguma esperança em ideais de “emancipação”, por julgar que as pessoas em geral querem simplesmente identificação, alívio e ordem, e não autonomia. Mas foi ele quem lutou por Habermas após sua habilitação para o magistério superior, oferecendo-lhe um posto na prestigiosa universidade de Heidelberg que era um centro de filósofos heideggerianos, na qual Habermas trabalharia por pouco tempo, preferindo voltar a Frankfurt em 1964, já reconciliado com Horkheimer.
Este investimento na convivência com posições diferentes foi uma das marcas distintiva do trabalho de Habermas, que pode ser encontrada nos vários volumes em que ele debate seus livros abertamente com os críticos, usualmente em seminários promovidos para esse fim. De acordo com Muller-Doohm, Habermas também se orientava pela pluralidade na escolha de seus assistentes de pesquisa, que usualmente possuíam inclinações teóricas distintas, algo que ele tentava usar produtivamente em seus trabalhos. Sua trajetória nas universidades alemãs é brilhante, tendo ocupado vários dos melhores postos nas melhores universidades. Também no exterior sua presença foi marcante, com estadias na França e nos Estados Unidos, até se tornar o conferencista verdadeiramente global que é hoje. Os insucessos são pequenos, mas não se apagam facilmente, como a recusa de uma posição permanente em Munique, recentemente lembrada por ele. Ou as incontornáveis disputas administrativas, que não escaparam à documentação do biógrafo.
É, todavia, a construção do intelectual público o tema de maior interesse. Muller-Doohm nos revela um personagem mais interessante do que poderiam imaginar os leitores de seus áridos textos teóricos. A presença de Habermas na esfera pública vai se construindo por meio de um conjunto de intervenções na imprensa escrita, em que o filósofo profissional cede lugar ao intelectual que reage a temas polêmicos de interesse geral. De acordo com Habermas, “é a capacidade de ficar irritado que transforma scholars em intelectuais” (p. 59). Metodologicamente, é como se essa irritação tocasse as cordas de algum valor que parece ameaçado, o que impulsiona um exame racional das condições do problema e a partir daí o desenvolvimento de uma base argumentativa e uma manifestação pública que quer estimular um debate político. Essas por sua vez produzem ou acentuam uma controvérsia com outros, que muitas vezes se assemelha mais a uma “disputa” que a um diálogo.
A distinção entre “disputa” e “discurso” torna-se importante e marca uma diferença entre a controvérsia intelectual e a atividade profissional do teórico. Esta última está condicionada por critérios de verificação do conhecimento, a partir da busca cooperativa pela verdade, que só pode se estabelecer na abertura permanente à crítica de outros teóricos, com possibilidades de refutação ou reformulação que têm em seu horizonte normativo a busca de um entendimento mútuo. Discurso, palavra que na língua portuguesa tem um sentido ligeiramente diferente do alemão, é o nome que se dá a essas formas de comunicação voltadas ao entendimento. Já as controvérsias intelectuais muitas vezes se estabelecem em torno de convicções formadas que não estão sujeitas à dinâmica do debate filosófico ou científico. Os intelectuais aqui competem mais estrategicamente para estabelecer uma autoridade interpretativa para si, em concorrência com outros. Disputam, ainda que por meio de argumentos, a persuasão da audiência, utilizando inclusive uma linguagem retórica, nem sempre conforme a imperativos muito exigentes de uma ética do discurso. Seus atos de fala têm um caráter performático, mais próximos às formas de dramatização estudadas pela sociologia cultural de Jeffrey Alexander, com tendências fortes à polarização ou ao exagero e até mesmo a caricatura das posições contrárias. E nisso, argumenta Müller-Doohm, Habermas não se distingue particularmente dos demais, ele também ataca, provoca e dramatiza no curso de suas polêmicas, a linguagem ganha feições incontornavelmente retóricas – o que não deveria, contudo, impedir um exame racional do núcleo dos argumentos mobilizados, nem nos levar a fazer tábula rasa das muitas formas de uso de linguagens retóricas.
O intelectual em ato
Muller-Doohm nos apresenta o intelectual em ato, sua performance numa série de controvérsias, desde os anos 1950 até os dias de hoje. Estão aí as disputas em torno do rearmamento da Alemanha, dos protestos estudantis de 1968, os novos movimentos sociais dos anos 1970, as brigadas terroristas, o persistente debate sobre a responsabilidade alemã no nazismo e a memória do Holocausto até as questões mais recentes a respeito do avanço neoliberal, da Comunidade Europeia ou dos temas da biotecnologia. Nelas se produz um tipo de “crítica” que não tem por referência o modelo filosófico, como em Kant, por exemplo, mas tem um sentido mais imediato e mais político, voltado para a análise de processos históricos e momentos de crise. Isso exigiria um equilíbrio difícil entre engajamento e distanciamento, ou seja, de acordo com Muller-Doohm, distanciamento para se constituir enquanto uma “autoridade independente”, mas suficientemente engajada para deixar as esferas recônditas da ciência e ser ouvida. Ninguém ganha o status de “intelectual” por ser simplesmente um “expert”, mas por participar do discurso público, como alguém que produz “argumentos convincentes” contra ou a favor de alguma coisa. É o reconhecimento da qualidade desse argumentos, postos à prova no debate público, que constitui o intelectual público.
O biógrafo mostra como, desde a controvérsia sobre Heidegger, a figura do intelectual foi se constituindo neste equilíbrio difícil entre a atividade científica profissional e as intervenções públicas. Há de fato muitas relações entre elas, veja-se por exemplo a escolha do tema de sua tese de habilitação, o famosíssimo “Mudança estrutural na esfera pública”, ou a longa pesquisa sobre as crises de legitimação nas democracias modernas. Editorialmente Habermas reservou suas “intervenções” para a série “Pequenos escritos políticos” que possui 12 volumes, enquanto o trabalho “científico” encontrou espaço em outros tantos livros. O que não o impediu de lamentar, no prefácio ao último volume daqueles escritos, que esses textos não foram levados devidamente em conta no debate especializado! Fica mais clara a fronteira tênue entre essas formas de expressão, mas não se apaga a legalidade própria de cada uma delas, que poderia fazer parecer excessivamente homogêneo ou instrumental um conjunto tão complexo.
É nas disputas e em suas tomadas de posição que se constitui o intelectual público, e nelas Habermas procurou se orientar por uma postura interessada em possibilidades emancipatórias, que ele identifica com o aprendizado e o desenvolvimento de formas de comunicação livres de coerção, mais que com o domínio do mundo material, embora este não possa ser subestimado. Politicamente Habermas inspira uma esquerda democrática, que quer radicalizar as possibilidades normativas abertas pelo estado democrático de direito em direção a uma cidadania ativa e à solidariedade social. A direita o elegeu muitas vezes como alvo principal, caracterizando-o como o chefe da “New Left”, na esteira dos protestos estudantis do final dos anos 1960, negligenciando até mesmo a polêmica de Habermas com as lideranças estudantis na época. Num disparate completo, houve quem o responsabilizasse intelectualmente pela atividade de grupos terroristas. Uma disputa pesada, na qual a polêmica intelectual andava cercada pela malícia ou pela mais pura maledicência. Como mostra o biógrafo, os círculos intelectuais conservadores se rearticulavam em meados dos anos 1970 a partir da denúncia de uma suposta hegemonia cultural da esquerda, centrando fogo nos ideais emancipatórios da esquerda e abrindo uma verdadeira guerra cultural, na qual esposavam uma posição orgulhosa do nacionalismo alemão e uma visão de aguda separação entre a política e questões morais. A possibilidade de formação de uma vontade política livre de dominação por vias comunicativas era vista simplesmente como a dominação do discurso, repondo o núcleo da visão schmittiana da política. A “nova direita” também se voltava para políticas educacionais, combatendo o ensino “crítico” e “emancipador” em nome de virtudes tradicionalistas de disciplina, sacrifício e diligência. Habermas reagiu fortemente ao “ideological turn” nos jornais e ecos dessa polêmica podem ser vistos em textos tais como “O discurso filosófico da modernidade”, no qual o debate com o neoconservadorismo assume a forma de uma defesa das possibilidades emancipatórias contidas no “projeto inacabado” iluminista.
Dos anos 1990 em diante, os temas da política internacional ganham o proscênio, desde a reunificação alemã às questões contemporâneas da União Europeia e da crise global. É aqui que de fato se constitui uma comunidade de diálogo sobre questões públicas e extra-científicas para além do solo estritamente nacional alemão no qual ele esteve fortemente enraizado. O intelectual cosmopolita que ele se tornou, um “globetrotter” nas palavras do biógrafo, não seria possível sem uma audiência global. Muller-Doohm apresenta as questões difíceis que motivaram Habermas, a oscilação de suas posições no enfrentamento dos dilemas da guerra e dos direitos humanos, os temas espinhosos da bioética e da crise financeira de 2008. A ruptura com o passado tradicional alemão se apresentou também como uma ruptura com o nacionalismo como um vetor de orientação nas questões internacionais, bem como a análise das interdependências produzidas pela globalização econômica e das pressões que elas estabelecem sobre estados nacionais democráticos, que impulsionaram a busca de um campo supra nacional para o desenvolvimento dos direitos e da democracia.
Por fim, deve-se concluir que o estudo de Müller-Doohm oferece uma contribuição altamente relevante para a compreensão do pensamento político de Habermas e para a sociologia dos intelectuais. Ao operar na fronteira entre o intelectual e o filósofo, revela as distinções e as conexões entre as duas “vocações” consagradas, que um Weber tentou diferenciar. Seu exame da performance daquele que talvez seja o mais proeminente intelectual de nosso tempo em controvérsias distintas enriquece tanto o entendimento sobre os meios empregados nas “batalhas de ideias” quanto permite pensar em torno do quê e com quais perspectivas os intelectuais se mobilizam. É certo que essa luta cultural não pode se desenvolver senão em ambientes de pluralismo e democracia política e talvez sejam parte necessária da constituição de esferas públicas em sociedades modernas, com tudo o que isso implica, inclusive os elementos retóricos e dramáticos envolvidos no uso estratégico da linguagem. Resta saber, questão que Müller-Doohm não enfrenta, ao menos não diretamente: será que a luta cultural é capaz de produzir algum esclarecimento? Ou será que o afastamento de critérios muito exigentes de uma ética do discurso contaminaria de modo indelével a esfera pública? A questão é relevante, em uma sociedade global na qual a comunicação se tornou tão onipresente quanto atravessada por relações de poder, em que o equilíbrio entre disputa e discurso (como uma argumentação que busca o entendimento) parece se desfazer em favor da primeira afetando a formação de vontades políticas mais amplas para lidar com os problemas do tempo presente. Ao fim e ao cabo retornar a Habermas pode ser um bom antídoto contra tendências distópicas e uma aposta nas possibilidades políticas de uma esfera pública democrática.
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