Adentrado em seu terceiro decênio, este século tem sido pródigo em distúrbios de todas as ordens. Com o crescente acirramento de estados conflituosos entre indivíduos e grupos, o período em curso dá mostras de que teremos ainda duras caminhadas.
O cenário global tem-me feito perceber o quanto as pessoas vem sendo tragadas para dentro de uma espiral de reações/relações destrutivas, pesadas e violentas, mesmo, por vezes, no âmbito dos relacionamentos mais banais. Este fenômeno revela o nível de precariedade das relações humanas na contemporaneidade e, com ele, apresenta a progressiva fragmentação das amarras sociais na base das vivências mais comezinhas, demonstrando alguns dos traços característicos do espírito deste século. Dentre eles, infelizmente, a disposição para o embate.
A despeito do seu ritmo voraz, de sua notável liquidez – inflacionada pelos aparatos técnicos que se proliferam com o status de novidade – o presente histórico sobrepõe dezenas de camadas de sentido (ou de falta dele) às tantas outras conhecidas, tornando a existência um grande paradoxo, visto que, embora tenhamos múltiplas coisas à mão quase o tempo todo, temos também uma vida bem mais complexa. Sobretudo quando falamos das exigências sobre o nosso psiquismo, com as cobranças por mais saúde, sucesso, dinamismo social, proatividade no trabalho, beleza corporal, etc.
Tais imposições, tomadas por si, demandam enormes empenhos para o alcance de metas por vezes irreais, por outras somente não queridas.
Percebe-se que, a despeito de todas as aparentes facilidades adicionadas aos nossos cotidianos, a humanidade ainda não conseguiu definir, no plano dos fatos, que linha de comportamento adotar como resposta mais adequada às novas configurações relacionais, órfãos que são da bonomia, da gentileza, da benevolência, enfim, dos valores fraternais necessários ao bom gregarismo. O que acaba por expor ainda mais as precariedades dos indivíduos, carentes, dentre tantas coisas, de espiritualidade, paciência, amor e até mesmo de experiências com o que lhes transcende.
Como um bom exemplo disso, temos o ciberespaço. Esse ecossistema on-line (mundo virtual onde nos encontramos e nos perdemos) é a representação mais bem-acabada da precariedade complexa dessas carências.
Na pressa de um dizer que é, ao mesmo tempo, um mostrar-se, um falar e um performar, desprezam-se todas as instâncias de uma possível autocrítica. Desprezam-se, igualmente, a ética da alteridade, o respeito ao outro com quem necessito conviver (independentemente dos dissensos), o bom senso e uma moral social mínima.
No reino difuso da internet, onde ordem e caos tentam compor o débil tecido da coexistência social, ao invés da possibilidade da constituição de uma nova esfera pública, num palco propício ao debate, ao diálogo e à busca da formulação de novos consensos, temos o império do ódio irracional, das dissensões raivosas e dos separatismos baseados em visões de mundo aparentemente inconciliáveis.
O dilema das redes, agora, reside nas chamadas redes de ódio. Ambiente de encontros, mas também de radicalismos, as redes sociais são campo fértil para intrigas e escolhas gratuitas de adversários/inimigos, muitos dos quais, num momento posterior, podem virar alvos a serem atingidos, em sua dignidade e reputação, tanto por injúrias quanto pela propagação de inverdades.
Talvez por isso, muito nos tenha ainda a ensinar a virtude da prudência. Item raro na balbúrdia da mundanidade e que deveria nos servir de crivo toda vez que viéssemos a enunciar um dito ou propagar qualquer informação a respeito de um fato ou em torno de uma ideia. Afinal, falar por falar, fazendo valer unicamente a força do palavrório e os instintos nascidos das paixões que comandam corações e mentes, em nada contribui para que algum equilíbrio social possa ser alcançado.
Deste modo, haver gente do outro lado do espectro de movimentos de beligerância observados atualmente é um imperativo. Aos que assim estiverem, pelo bem do equilíbrio no jogo de oposições que a natureza do universo desde sempre impôs, três itens são imprescindíveis: a serenidade diante dos acontecimentos, a compreensão das nossas imperfeições e o entendimento do que temos de igual em relação aos outros (e do quanto nos havemos de tolerar).
Afora isso, por fim, importa saber que, para que haja coexistência, é preciso que partamos da ideia de que é possível superar todo o ódio escondido dentro de nós.
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