Escolas, correntes, controvérsias têm marcado, ao longo do tempo, a evolução do pensamento sobre o direito
José Reinaldo de Lima Lopes
O direito, embora sendo uma das mais tradicionais disciplinas
universitárias, cujas primeiras escolas datam do final do século 11,
está constantemente em busca de identidade. Pode ser porque o objeto da
discussão e do conhecimento jurídicos tem um caráter peculiar: normas
não existem como as coisas materiais, não ocupam lugar no espaço, não
têm uma realidade molecular. E, mesmo assim, poucos diriam que direito
ou normas jurídicas não existem, ou não passam de ficção, ou fantasias
como o Papai Noel ou o unicórnio. O direito assemelha-se a outras
práticas segundo regras, como jogos ou línguas. Embora línguas e jogos
não existam como objetos moleculares, todos lhes reconhecem uma
existência objetiva, e, apesar de frutos da ação humana, não podem ser
mudados por seus falantes ou jogadores individuais. Fazer perguntas
sobre esta natureza curiosa das regras e sistemas jurídicos é uma das
ocupações principais da filosofia do direito.
Ela se ocupa desses aspectos mais gerais e abstratos dos sistemas
jurídicos e abre-se em diversas correntes que os explicam de formas
variadas. É tradicionalmente feita pelos próprios juristas, embora
também filósofos dela se ocupem, e hoje é ensinada em todos os lugares
em que se ensina direito nas universidades. Não é por acaso, pois várias
das perguntas feitas pela filosofia do direito são também as que os
juristas se fazem especialmente quando chamados em casos difíceis a
aplicar o seu conhecimento: casos novos diante de leis velhas, propostas
de novas leis para novos casos, propostas de novas leis para casos
velhos e assim por diante. Por isso, problemas da filosofia do direito
são às vezes desdobramentos de dificuldades que qualquer jurista
encontra para aplicar a lei ao caso concreto.
É a atividade de conhecer e aplicar as leis, com seus inúmeros
problemas concretos, que estimula o pensamento filosófico a respeito do
direito. Qual a lei a aplicar? A lei que se pretende aplicar está em
vigor? É compatível com as outras leis existentes? As leis novas revogam
as leis velhas, ou, pelo contrário, os costumes, sendo por definição
mais estáveis, devem ser preferidos a inovações? Pode o poder político
mudar tudo a qualquer tempo ou há limites? Os limites são tradicionais
ou racionais, particulares ou universais? A lei é um capricho de quem
tem o poder ou a força para impor sua vontade ou é alguma coisa que se
pode compreender e justificar com motivos mais ou menos plausíveis e
aceitáveis por qualquer um? E a grande questão de todas: a decisão, a
norma, a sociedade são justas? Por qual critério medir sua justiça? Como
a filosofia não procede por simples dedução das coisas, mas por
reflexão crítica ou refutação das opiniões normalmente aceitas, as
perguntas da filosofia do direito procedem, no fundo, de perguntas de
juristas feitas em chave filosófica.
Algumas questões dizem respeito à condição de existência das regras e
sua aplicabilidade: são questões de teoria geral do direito. Outra
série de questões, no entanto, pode surgir do desconforto evidente que
certas soluções previstas trazem para casos concretos que estão em
julgamento: dizem respeito ao sentido geral de um sistema jurídico, são
questões de justiça e eqüidade, são propriamente da filosofia do
direito. Nos últimos anos são estes campos que em geral ocupam os
filósofos do direito: questões da natureza, questões de interpretação e
questões de justiça dos sistemas normativos.
Quanto à natureza, pode-se dizer que as várias correntes de filosofia
se distinguem pela idéia que fazem da realidade do direito. Para
algumas, o direito pode e deve ser visto como um objeto que se conhece
de fora, como um fato. Bastaria adaptar ou refinar os métodos das
ciências sociais ou naturais para se fazer uma verdadeira ciência do
direito. É a busca pelo tratamento científico do direito. Conhecer
efetivamente o direito seria, para essas escolas, conhecer o fato social
do poder, como se produz e como se mantém. Teoria do direito e ciência
do direito equiparam-se, assim, a um ramo específico das ciências
empíricas do mundo social. Essa corrente tem uma representação clara no
realismo americano e escandinavo.
Para outras, o direito é normativo e a disciplina que dele se ocupa é
descritiva das normas. Dentro dessa tradição surge um dos mais
importantes juristas do século 20, Hans Kelsen (1881-1973). Para ele há
uma clara divisão entre o direito como é e o direito como gostaríamos
que fosse. A disciplina que entende das regras e de sua lógica interna é
propriamente uma teoria pura do direito. O direito tal como gostaríamos
que fosse é objeto de especulação político-filosófica, mas justamente
por ser filosófica esta especulação não seria propriamente uma ciência
do direito. Estudar o direito não é fazer análise social nem prescrever o
melhor para a sociedade, mas apreender o arcabouço formal das regras
vigentes (estudo estrutural ou estático) e as formas jurídicas pelas
quais as normas jurídicas ganham ou perdem existência (estudo funcional
ou dinâmico).
Outros ainda, concordando com a distinção entre o que é e o que
gostaríamos que fosse, criticaram tanto o realismo quanto posturas
kelsenianas. O realismo se equivoca, segundo eles, pois confunde uma
regularidade empírica com uma regra de ação (uma prescrição ou um guia
de ação). Entre os críticos desse realismo encontra-se o outro grande
jurista do século 20, Herbert Hart (1907-1992). Para ele a regra não é
apenas comando: logo, explicar o que são regras jurídicas apenas pelos
fatos do poder (como os realistas) ou pela validade e condicionalidade
(como Kelsen) seria um erro. Como explicar, com estas duas vertentes,
regras que não impõem penas mas negam validade a certos atos (uma
eleição nula ou um contrato nulo, por exemplo)? Como explicar que as
pessoas cumprem regras não por medo, mas por consciência de uma
obrigação (parar no sinal vermelho, por exemplo)? Para Hart o direito é
uma prática social regrada (como um jogo), em que o poder puro e simples
ou a ameaça da autoridade não explicam tudo. Embora seja possível
distinguir a regra existente daquilo que eu gostaria que fosse a regra,
não se pode entender uma regra “do lado de fora”: se entendo a regra,
sou capaz de agir (ou não) de acordo com ela. Logo, conhecer direito é
sempre admitir que há uma regra (em princípio) e que seguir uma regra é
uma prática social. Hart deve muito ao ambiente em que se formou, a
Inglaterra, berço da filosofia da linguagem e da filosofia analítica.
Foi em Oxford, onde Hart viveu e lecionou muitos anos, que uma nova
filosofia começava a nascer e na qual o uso da razão e da palavra para
“fazer coisas” aparecia na obra de John Austin (1911-1960) ou em
Wittgenstein (1889-1951) ou na filosofia moral em diversos autores, como
Richard Hare (1919-2002) e John Mackie (1917-1981), ou mesmo em Bernard
Williams (1929-2003) e Donald Davidson (1917-2003).
Como um sistema de regras, o direito só é compreensível ou
racionalizável se for possível apreender justificativas gerais para as
regras, dizem outros. De outra maneira ninguém aprenderia direito,
simplesmente obedeceria a cada ordem recebida. O importante é, portanto,
analisar como o direito nos habilita a pensar por regras. Assim, de um
debate sobre a natureza do “sistema jurídico” chegamos a um debate sobre
o “raciocínio jurídico”. Novas correntes colocaram no centro das
atenções o processo de deliberação segundo regras. Ao fazerem isso,
deslocaram o lugar privilegiado que as proposições (proposições
normativas) antes ocupavam e, em seu posto, destacaram a decisão. Nessa
ordem de idéias um primeiro movimento importante foi retomar o estudo
da chamada razão prática: algumas linhas concentraram-se no estudo do
discurso que expõe razões para agir antes que no discurso que fala do
mundo. Surgiram então duas importantes correntes: em primeiro lugar, a
nova retórica, cujo nome mais importante ficou sendo o de Chaim Perelman
(1912-1984), para quem a compreensão melhor do que é o direito dá-se
com a compreensão melhor do que é o raciocínio de justificação de
decisões, o raciocínio retórico (não demonstrativo). A segunda corrente
tomou formas exemplares na obra de Neil MacCormick (1941-) e Joseph Raz
(1939-), cujos estudos sobre o raciocínio jurídico devolveram um lugar
privilegiado à razão no direito.
Pode-se talvez acrescentar uma terceira vertente: as correntes
hermenêuticas, como a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer
(1900-2002). Para essa corrente, toda relação de conhecimento é uma
relação de interpretação, não de pura e simples descrição, e o direito
oferece o caso mais exemplar de interpretação, que se dá sempre no tempo
e na tensão entre passado e futuro. Gadamer abre uma porta para o
diálogo com o direito, que já havia sido tentada antes por Emílio Betti
(1890-1968). Gadamer e Betti, no entanto, tendem ainda a imaginar o
direito e as normas a aplicar como objetos, enquanto as escolas
analíticas assemelham-nos mais a jogos, de forma que entender regras é
entender um jogo complexo, não apenas entender conceitos, conotações,
denotações ou mensagens.
Dentro da larga família dos interpretativistas surgiu a obra de
Ronald Dworkin (1931-). Ele insiste que o direito não é um objeto dado,
como seria um simples conjunto de normas. É uma “prática interpretativa”
e, como tal, é uma espécie de criação coletiva cuja unidade surge da
referência comum a critérios normativos não só jurídico-positivos, mas
dotados de sentido político-moral. Os que participam de alguma ordem
jurídica não apenas obedecem a regras comuns, mas têm uma referência
comum de caráter moral e político. O direito depende, pois, de uma certa
integridade (pela qual os agentes se integram a um projeto comum). A
filosofia de Dworkin tornou-se muito influente para além do mundo
anglófono no qual se originou. Apesar de propor sua teoria como resposta
ao positivismo de Hart, foi bem recebido na Europa, onde encontrou um
interlocutor filosófico, Jurgen Habermas (1929-).
Essa atenção ao processo decisório, segundo uma forma de discurso – o
discurso prático ou o discurso hemenêutico –, permitiu rever as
relações entre moral e direito. Norberto Bobbio (1909-2004) é um caso
bastante significativo da encruzilhada em que se achou a filosofia do
direito na segunda metade do século 20. Quando sua obra atingiu a
maturidade e seu nome foi mundialmente reconhecido, seu estilo analítico
de expor a teoria do direito devia muito à crítica kelseniana, e
separações e distinções – uma delas a de direito e moral – eram
freqüentes e centrais, entre elas a separação direito-moral. Com o
passar do tempo, à medida que se aproximava mais e mais da reflexão
sobre o poder, viu no direito um viés finalista, e a presença de certos
valores, como a liberdade e o respeito à pessoa, ficou cada vez mais
importante em sua reflexão. Bobbio permaneceu, porém, um positivista,
como Hart: ambos nunca se negaram a debater as questões morais de seu
tempo, mas não acreditavam que o direito por si os habilitava a tal.
Isso vale para muitos autores das últimas décadas do século 20 e começo
do século 21.
Se o pensamento segundo regras ganhou destaque, viu-se com maior
clareza que ele é um “caso especial” do raciocínio prático em geral
(Robert Alexy) e, portanto, voltou-se a debater sua relação com outra
esfera da razão prática, o raciocínio moral. O retorno do diálogo entre
direito e filosofia moral teve vários ensaios e tentativas. Em primeiro
lugar tentou-se um retorno via direito natural, mas sem sucesso. Leo
Strauss (1899-1973) e Michel Villey (1914-1988) talvez sejam os nomes
mais conhecidos de uma série de autores que viram no direito natural uma
resposta aos horrores dos regimes totalitários do século 20. O direito
natural de que falavam, porém, pressupunha consensos infactíveis em
sociedades pluralistas e pós-tradicionais e mostrava um caráter quase
“restaurador”. Era um herdeiro do direito natural concebido como
filosofia moral geral.
Se algum sucesso poderia vir na linha do direito natural foi
conseguido por John Finnis (1940-). Apesar de Finnis propor certos bens
como evidentes, o mais original de seu pensamento está no caráter
analítico de seu trabalho e no destaque dado pela função crítica do
direito natural nos seus grandes teóricos clássicos. Em sua leitura, o
que determina o direito natural é o uso adequado (e crítico) da razão na
sua atividade prática (de escolha e decisão). O direito natural não é
um conjunto de comandos vindos de um legislador sobrenatural, mas a
razão aplicada às escolhas. Pode-se falar de direito natural partindo-se
da evidente necessidade de cooperação na vida humana. Como ele e outros
na sua mesma corrente de pensamento insistem em dizer, o direito
natural não é sobrenatural e, por isso, não deve ser pensado a partir de
outra realidade que não a realidade da sociabilidade humana.
Outra vertente procedeu de Karl-Otto Apel (1922-), e ficou conhecida
como a ética do discurso. Nela, Apel propõe uma leitura da tradição
kantiana (a moral da consciência) modificada pelo relevo dado à condição
de possibilidade da consciência que é a língua, de modo que ao sujeito
individual (solipsismo) deve-se substituir o sujeito socializado, que
participa de uma comunidade ideal (como é uma comunidade lingüística
abstrata), e decide efetivamente em uma comunidade real (os seus
interlocutores empíricos). Por esse projeto, Apel salva a pretensão
moderna de universalidade do discurso sobre direitos, mas concede que
esta universalidade é um elemento crítico social da vida segundo regras.
A tarefa moral nunca completada, mas sempre factível, é mudar as
comunidades empíricas em função de comunidades ideais. Dessa filosofia
de Apel nasceu uma importante corrente, cujo nome mais destacado é o já
mencionado Jurgen Habermas.
Essas vertentes contemporâneas contrapõem, pois, o caráter moral do
direito ao debater sua pertença a uma esfera de racionalidade. Pode-se
afirmar que afinal de contas o raciocínio jurídico assemelha-se ao
raciocínio moral, mas não se interessa pela moral inteira. O ordenamento
jurídico, em uma sociedade complexa e não tradicional, não quer fazer
os homens bons, de modo que o aspecto da moral que abrange deve
contentar-se em tratar da virtude pública por excelência, a justiça.
Esta, tradicionalmente, era considerada a razão mesma de ser do direito,
pois era (e é) a virtude da definição e da aplicação das medidas entre
os seres humanos que convivem.
Essas correntes dialogam de uma forma ou outra com uma das obras de
maior repercussão na filosofia moral da segunda metade do século 20, Uma
teoria da justiça de John Rawls (1921-2002), e mesmo com alguns de seus
interlocutores (críticos), como Brian Barry (1936-), ou opositores – os
comunitaristas, como Charles Taylor (1931-). Ao propor a crítica da
sociedade contemporânea pelo critério da justiça, Rawls sugere que as
instituições, aí incluído o direito de uma sociedade, possam ser medidas
por princípios de justiça. Esses princípios não são, e não podem ser,
descritivos, mas normativos. Dessa forma, regras de distribuição e
comutação fazem ou não sentido conforme medidas por tais critérios. A
porta estava aberta outra vez para o velho confronto entre os céticos e
empiristas (exemplarmente representados na história da filosofia
ocidental por Trasímaco na República de Platão), e os jusnaturalistas e
racionalistas (representados pelos clássicos do direito natural), e
talvez esse confronto volte a ter interlocutores na filosofia do direito
no século 21.
José Reinaldo de Lima Lopes
é professor associado da Faculdade de Direito da USP e da Escola de Direito da FGV (SP) e autor do livro Palavras e a lei
Fonte: Revista Cult Online
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