Por Bruno Magalhães
A filosofia socrática começou a se desenvolver no confronto com a atividade dos sofistas. Sócrates foi um observador crítico desses professores itinerantes que floresceram em Atenas no quinto século antes de Jesus Cristo. Os sofistas eram pagos a peso de ouro para ensinar aos jovens a vencer um debate sem precisar ter razão. Grandes sofistas como Protágoras, Górgias, Hípias e Antifonte não eram, porém, meros professores de retórica, pois buscavam adornar sua atividade e suas teses com uma fundamentação filosófica.
Como já disse em outro post, os sofistas começaram a ganhar notoriedade ao tempo em que as doutrinas dos filósofos físicos começavam a perder o sabor. Eles então se aproveitaram de determinadas linhas de investigação dos físicos e buscaram aplicá-las na resolução dos problemas práticos que uma atividade política nascente suscitava. Com efeito, eles absorveram as diversas ontologias pré-socráticas e a partir delas adotaram atitudes sensitivistas, subjetivistas e relativistas que aplicaram ao campo moral e político. Porém, como eram homens da vida prática e nela pretendiam ver colhidos os frutos de sua atuação, não cogitaram tentar aplicar o método dos antigos físicos, com objeto tão diferente, às suas investidas intelectuais.
Ora, Sócrates também se interessava pelo campo moral e político. E, assim como os sofistas, também se preocupava com a educação dos jovens (alguns dos quais seriam, em poucas décadas, a classe dirigente em Atenas). A educação a ser dada aos jovens, segundo a concepção de Sócrates, não tratava das especulações cosmológicas, mas sim dos problemas práticos da conduta moral do homem como indivíduo e como parte do corpo social. Nisso também estavam de acordo os sofistas. Porém, Sócrates não buscava educar a juventude para torná-los oradores atraentes com um conhecimento enciclopédico e superficial. O que preocupava Sócrates não era que os jovens estivessem aptos a vencer debates oratórios, mas que estivessem capacitados a praticar o bem, a virtude e a justiça. Em resumo, ao contrário dos sofistas, Sócrates se preocupava na formação moral do homem que atuaria na vida pública, seja como cidadão, seja como governante.
Por tudo isso e por muito mais, Sócrates não foi um sofista — embora com eles tenha sido confundido. É natural que, no início, haja dificuldade de diferenciar uma nova atividade intelectual do pano de fundo do qual surgiu. Sócrates era um esquisitão que fazia um negócio mais ou menos parecido com aquilo que os sofistas faziam. Mas não cobrava dinheiro por isso (o que, convenhamos, tornava a coisa ainda mais estranha). Os objetivos de Sócrates eram bem diversos, e seu método, também. A atividade de Sócrates acabou apontando para uma direção diversa justamente porque, conservando o tema dos sofistas, ele o estudou através de um novo método.
Essa nova direção tomada por Sócrates não é uma questão meramente técnica. Sócrates não ia com a cara dos sofistas, é verdade, e poderia ser tentado a inovar sobre eles simplesmente para com eles não ser confundido. Porém, o buraco é mais embaixo. Sócrates amava sua cidade, a Atenas que com Péricles viveu seu esplendor. Com a Guerra do Peloponeso, viu a decadência de Atenas e a dissolução de suas forças vitais diante dos espartanos. Para ele, parte da culpa pelo lamentável estado de coisas era dainfluência dissolvente dos sofistas, que enfraqueciam a fé na religião tradicional através de seu relativismo cético e proporcionavam um ambiente de desrespeito às leis, aos costumes e às instituições básicas da cidade através da promoção de certo desenraizamento da cidade por seu declarado cosmopolitismo. Sócrates criticou os sofistas também por sua pretensão de saber ilimitado — um saber não-fundamentado que, em realidade, corrompia a alma dos jovens. Isso acontece porque o discurso dos sofistas era independente do pensamento. Daí que ambos, na atividade sofística, não têm suficientes pontos de contato com a realidade das coisas.
Uma vez que Sócrates decidiu trilhar um novo caminho, sua primeira atitude é a de uma retração silenciosa que busca refúgio no não-saber, distante dos palácios dos governadores e dos tribunais de Atenas. Não se trata de renúncia ao conhecimento nem de mero ceticismo. O não-saber socrático o prepara uma nova forma de saber.
Foi nessa sua retração inicial que desenvolveu a noção de alma como a essência do homem, da alma como sua consciência operante e pensante. É difícil para a gente, hoje, ter a exata dimensão da importância dessa descoberta. Antes dele, a alma possuía outras conotações, mas sua operação não estava relacionada à consciência humana e ao guiamento da vida. Nisso Sócrates foi além dos sofistas — aliás, foi além de todo mundo. Sua concepção da alma humana teve evidentes repercussões em sua atividade pedagógica: na Apologia platônica, Sócrates disse perante o tribunal que o julgava que adotara como missão convencer os atenienses que o cuidado com a própria alma era a atividade mais urgente e nobre a que o homem pode e deve se dedicar — e reconhece que nessa atividade talvez ele tivesse algo a ensinar aos outros. Apesar de sua confissão de não-saber e de sua ironia, não há dúvidas de que Sócrates via a si mesmo como um médico da alma humana, que a conhece e sabe que alimentos lhe fortalecerão em cada caso.
Enquanto os sofistas ensinavam e trabalhavam através de discursos longos e unilaterais (que buscavam convencer a plateia a respeito dessa ou daquela questão), Sócrates percebeu que a verdade é-de ser alcançada por degraus, passo a passo, através do contato entre duas inteligências. Isso o levou a adotar o método do discurso breve, sempre pronto a se adaptar às circunstâncias vivenciadas pelo interlocutor.
Rejeitando a erística dos sofistas, Sócrates inventou a dialética. Compreendeu que para se aproximar da verdade não precisava propriamente da eloquência dos professores de retórica, mas de conhecer aquilo de que se fala e de dar conta dos raciocínios. Enquanto o discurso longo dos sofistas já vem pronto e acabado, o discurso breve tem a vantagem de permitir, em cada passo da pesquisa, as retificações que forem necessárias. Essas mudanças de rumo, muito comuns nos diálogos socráticos de Platão (para não falar da frequente dificuldade de se chegar a alguma conclusão minimamente satisfatória sobre os pontos discutidos), cunharam para muitos de seus ouvintes a imagem de um pensador confuso e desorientado.
Não é mesmo estranho que o homem que disse “a única coisa que eu sei é que não sei de nada” seja o precursor do método científico e o criador da concepção de alma humana que até hoje orienta as reflexões ocidentais? Sim, pode parecer estranho, mas não é de fato. O não-saber socrático, como já disse, é uma espécie de higienização mental e uma forma muito eficaz de abertura à realidade. Ao dizer que nada sabia, é provável que Sócrates estivesse assumindo a posição de quem está disposto a rever todos os seus posicionamentos e suas opiniões (um pouco como fez René Descartes, dezenove séculos depois) e a descartá-los (ou descarteá-los) para dar espaço ao verdadeiro conhecimento. Essa humilde renúncia às próprias opiniões é um ato de confiança na realidade (em verdade é um ato de confiança na divindade, pois Sócrates era um homem piedoso), realidade capaz de nos auxiliar no aprendizado da verdade — verdade que, para alguns, é a adequada coincidência entre o juízo e a realidade.
Post originalmente publicado em: http://astravessias.org/socrates-e-os-sofistas-semelhancas-e-diferencas/
Nenhum comentário:
Postar um comentário