quinta-feira, 9 de março de 2023

CONSIDERAÇÕES SOBRE A INICIAÇÃO MAÇÔNICA DE VOLTAIRE Ivan A. Pinheiro Rogério Henrique C. Rocha “A Extraordinária Iniciação de Voltaire” é um vídeo , em forma de narrativa, que recorrentemente tem sido veiculado nas redes sociais (Whatsapp e Telegram) que reúnem os Irmãos da Ordem. Sob variados aspectos, como se pretende demonstrar, se justificam algumas reflexões sobre o vídeo, razão pela qual constituem o objetivo deste texto. Por que Voltaire é merecedor dessa dignidade? Quais os intuitos subjacentes à iniciativa? Caberia uma apreciação crítica? A essas, assim como a outras questões, espera-se que ao longo do artigo sejam dadas algumas contribuições. A transcrição da narrativa do vídeo, acrescida de alguns complementos e assinada por Jerônimo Borges também pode ser encontrada na internet , e da qual, para melhor acompanhamento do que se segue, foram reunidos alguns trechos que se encontram ao final expostos na forma de Anexo. A biografia, a obra e o legado de François-Marie Arouet, filósofo iluminista que recebeu o pseudônimo de Voltaire, assim como o contexto, o do Iluminismo francês, no qual ele viveu, estão amplamente documentados em fontes facilmente obteníveis – entre tantas, vide, por exemplo, a última edição de “O Malhete” (2023) -, razão pela qual sobre elas este texto passa à margem. O adjetivo constante do título do documento narrativo antecipa e confere a dimensão do ocorrido: foi um evento extraordinário, fora do comum; em termo mais familiar aos maçons, uma efeméride, ou seja, um acontecimento marcante, cujo momento guardava especial relevância. E se por justificáveis motivos foi considerado extraordinário aos olhos profanos , sob a ótica dos Iniciados também não deixou de sê-lo, mas por outros motivos: foi uma Iniciação extraordinária, isto é, não ordinária, pois contou com presença de não Iniciados, inclusive mulheres, o neófito não foi submetido às tradicionais provas (as próprias de cada Rito), o que é denominado como “Iniciação” e, atualmente, corresponde, no Rito Escocês Antigo e Aceito, à Iniciação, à Elevação e à Exaltação (as quais, salvo excepcionalidades, requerem longos interstícios) e, finalmente, o filósofo fez um discurso tão alongado que, certamente e contrário ao senso, ocupou a maior parte da duração da cerimônia. Tudo isso, como o texto primário bem assinala, revela que a cerimônia foi antes uma homenagem à Voltaire do que uma Iniciação nos termos habitualmente atribuídos à expressão e herdado das tradições: a admissão em uma Escola de Mistérios - a primeira etapa de um longo processo de formação e desenvolvimento naquela que se autodefine como “[...] um sistema de Moral, velado por alegorias e ilustrado por símbolos” (RITUAL, 2007, p. 7). Assim, ainda que determinadas práticas não sejam consideradas excepcionalidades no contexto de alguns Ritos, bem como a legislação maçônica as admita sob condicionantes, é, antes de mais nada, pelo conjunto que parece ser um equívoco fazer referência ao evento como sendo a “Iniciação” de Voltaire. Portanto, é na perspectiva da homenagem, como o próprio texto primário revela, que se seguem as próximas considerações. Mais do que uma curiosidade diletante, a juízo dos autores o vídeo-texto suscita inúmeras considerações que ainda hoje, passados mais de 2 séculos, merecem reflexões; e é de se perguntar se não foi esta a intenção do autor muito mais do que chamar a atenção para a espetaculosidade aos olhos profanos e também aos de alguns Iniciados, talvez desinformados. Primeiramente, parece ser impossível dissociar as excepcionalidades sublinhadas do conjunto das mentes brilhantes reunidas naquela Loja que, nas palavras de J. Borges, era um “celeiro cultural”. Enquanto as mentes ordinárias ficam presas aos detalhes, às minúcias ritualísticas-burocráticas, as mentes brilhantes lançam-se aos píncaros, de onde, obviamente, a partir do horizonte ampliado, têm a melhor visão. O texto não deixa claro se os Irmãos citados, com idades bastante diferentes, eram ou não contemporâneos; de qualquer forma, ainda que não o fossem, é razoável admitir que pairava no ambiente da Loja uma aura inspiradora, motivação natural que prescindia do chamamento à assiduidade nas sessões. Parafraseando o Salmo 133 (BÍBLIA SAGRADA, 2006), por certo que, se nem sempre fosse bom e agradável conviver em meio a este caldo de cultura, no mínimo poderia ser útil. A exceção se faz necessária porque é de se esperar que em razão das formações e visões de mundo tão distintas (do cientificismo ao esoterismo), houvesse atritos e mesmo conflitos entre os Irmãos, mas estes, há muito é sabido, devem ser administrados, não eliminados, porque não só inerentes ao ser humano, como indispensáveis ao seu crescimento e amadurecimento. Do próprio Voltaire se diz que era “[...] fútil, irreverente , obsceno, inescrupuloso, às vezes até desonesto [...]” (DURANT, 2000, p. 199). Não cabe entrar em detalhes, mas a literatura técnica já tem explicações sobre o comportamento inusitado, quando não inaudito, dos indivíduos por demais talentosos; e nestes casos, para reuni-los produtivamente e deles extrair o que têm de melhor – em efetivo círculo virtuoso -, são requeridas habilidades, “engenho e arte” que somente pessoas igualmente talentosas reúnem. E desde então, como chegamos aonde chegamos, quando algumas convocações são convenientemente acompanhadas de lembranças acerca das sanções regulatórias em casos de abstenção? Conclui-se essas primeiras considerações trazendo à memória uma propaganda muito popular nos anos 80 - Qual o segredo de Tostines? – “Mestre, mestre, Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? Mestre, me dê uma luz!” . Apesar do temperamento irascível, o homenageado também [...] se revela ter sido incansavelmente bom, atencioso, pródigo quanto a sua energia e a sua bolsa, tão aplicado em ajudar amigos quanto em esmagar inimigos [...] Como é contraditório o ser humano. (ibid) E nunca é demais sublinhar a “[...] assombrosa inexaurível fertilidade e brilhantismo da sua mente” (ibid). Destarte, também por isso, a sua inteligência invulgar e o conjunto das realizações, não caberia ser Iniciado e tampouco submetido aos demais ritos de passagem, afinal, Voltaire já era considerado como o primus inter pares. Talvez o Irmão mais exigente, não sem razão, alegue que somos eternos Aprendizes; sim, é verdade, e dessa condição nem mesmo Voltaire escaparia, se não fosse pela aprendizagem que todos devemos desenvolver para a chegada dos derradeiros momentos, pelo temperamento já apresentado. Porém é certo que não seria a Maçonaria que iria contribuir ou transformá-lo, senão pela ausência de método, pela sua provecta idade. Assim, a Iniciação foi, antes, uma homenagem e reconhecimento a alguém que a Ordem considerava um modelo (ou um dos modelos) a ser seguido pelos Irmãos, mensagem subjacente que, no passado, provavelmente em razão dos critérios mais seletivos e rigorosos empregados na escolha dos Iniciados-homenageados, era a consequência lógica, uma apreensão até natural haja vista a estatura, amplamente reconhecida, dos homenageados. E hoje, quase 250 anos após, quem seria o homenageado da vez? Quem, pela sua envergadura (sob todos os aspectos), poderia ser reconhecido como um (ou o) modelo, a reserva moral da nação (ou da comunidade) a ser seguido? Quem, cujo maior capital não seja o conveniente (re)alinhamento com o poder político da hora ou a quantidade de likes nas redes sociais? Triste a nação que, mutatis mutandis, deve agir tal como Diógenes e procurar com uma lupa a quem homenagear, aquele a quem reconhecidamente todas as extraordinariedades são admissíveis como atos ordinários. Embora de origem aristocrática e tendo recebido educação em colégios administrados por jesuítas – notórios pela excelência pedagógica – (FRANCA, 2019), Voltaire tornou-se crítico da aristocracia, da Igreja Católica e do Absolutismo, o que, se lhe rendeu amizades, admiradores e apoiadores, também lhe trouxe muitas inimizades e perseguidores – por isso foi preso e viveu como exilado. Por conta dessa conjunção de focos sobre os quais dirigia a sua crítica, ainda que coerente, é um equívoco atribuir ao filósofo a autoria da expressão “O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre", pois, com efeito, ela cabe ao sacerdote católico francês Jean Meslier (1664-1729) , por certo um dissidente, e que pode ser encontrada no livro Extrait des sentiments, editado por próprio Voltaire – daí a confusão. Contudo, apesar da defesa intransigente da tolerância, pelo menos duas frases do grande pensador iluminista, a rigor, não o recomendariam como modelo incondicional a ser seguido pelos adeptos de todos os Ritos: 1) “Se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo”; e, 2) “Eu não acredito no deus que os homens criaram, mas acredito no Deus que criou os homens”. De ambas se conclui o seu posicionamento deísta, o que de pronto o afastaria (da admiração dos praticantes) dos Ritos teístas, como é o caso do Rito Escocês Retificado. Todavia, de outro lado, seria o alvo da admiração dos adeptos do Rito Moderno (também denominado Francês). Ademais, as diferenças não se limitam à questão da crença em um Criador – a exemplo do Grande Arquiteto do Universo – que interfere na realidade cotidiana, mas se estendem, e para se ater aos aspectos mais seculares, à admissão de um Poder Centralizado e a uma norma outorgada (as Escrituras) ao invés de promulgada (pelos Parlamentos), condições com as quais Voltaire não transigiria. O advento do retorno de Cristo, da Jerusalém celeste, dos últimos dias e do Juízo Final, conjunto de premissas subjacentes a vários Ritos, porque circunscrito pelo que denominou de “o Deus que os homens criaram”, também o afastam da possível condição de modelo a ser seguido por uma Maçonaria que se propõe universal. Claro que, na Modernidade Contemporânea (ou Pós-Modernidade?), tais diferenças foram mitigadas a modo de todos se acomodarem. Entretanto, e é importante observar, que nem as diferenças frente às questões seculares, e tampouco as que se colocam à ordem transcendental, são neutras, indiferentes no que tange aos desdobramentos práticos dos ensinamentos ínsitos a cada Rito. Notório na defesa intransigente das liberdades (pensamento, religião , expressão e outras), portanto contrário a toda sorte de intolerâncias, foi uma das principais luzes contra o Absolutismo em geral e o francês em particular que, na Europa, se já não vivia momentos agônicos, experimentava profundas mudanças nas doutrinas que, em breve, teriam repercussões mais pragmáticas. Por tudo isso, não deixa de causar estranheza a presença, que só pode ser interpretada como endosso às ideias do homenageado , não só da “alta nobreza” quanto dos representantes de Frederico II – O Grande, Rei da Prússia, e também de Catarina II – A Grande, genuínas espécies, the crème de la crème, do gênero dos déspotas esclarecidos; nem Platão, nas suas melhores expectativas, poderia ter imaginado melhor cenário. Também aqui trata-se de um caso de contradição, mas diferentemente daquela pessoal e apontada por Durant (op. cit.), as ações e as contradições dos 2 (dois) Grandes citados, nem sempre alinhadas com as ideias do homenageado, tiveram fortes repercussões tanto sobre as respectivas populações nacionais quanto sobre os povos externos àquelas nações, os quais, por sua vez, curiosa e paradoxalmente lutavam pela cidadania nos termos defendidos por Voltaire. Já se encaminhando para o final das reflexões, este texto, para além dos objetivos declarados, também se propõe a chamar a atenção e levantar alguns questionamentos: o que se passa com a Maçonaria que hoje não consegue reunir em suas Lojas o conjunto de notoriedades à semelhança do dos seus primeiros anos Especulativos? Teria sido a Les Neuf-Soeurs uma exceção; neste caso, por que? Quais seriam, hoje, as referências (modelos) nacionais que justificariam as excepcionalidades conferidas pela Maçonaria a Voltaire? Exemplos como o da “extraordinária Iniciação de Voltaire”, ao conferir tratamento diferenciado a um novo membro, feririam o princípio tão caro à Ordem como o da igualdade entre os Irmãos? Voltaire, como visto, se de um lado foi genial e deixou legados à civilização; de outro, há registros que atestam ter cometido desvios de conduta, de moral questionável. Teria “acertado no atacado e errado no varejo”. Haveria então uma métrica capaz de ponderar os comportamentos e ao fim e ao cabo determinar que a genialidade categoricamente se sobrepusesse aos desvios éticos? Em caso afirmativo, como criticar os Irmãos pelas suas atitudes e comportamentos no dia a dia? Por último, é importante ressaltar que não se deve descuidar do pensamento crítico e tampouco da cautela no que tange a considerações como os da espécie das que aqui foram feitas, condições necessárias para evitar generalizações e aplausos indevidos que podem levar a insuperáveis contradições internas. Finalmente, depois de tudo o que foi dito, talvez fosse desnecessário, mas é importante deixar claro aos incautos: que ninguém pense e acredite que foi a Maçonaria que contribuiu para que Voltaire seja hoje o símbolo (universal) que representa (liberdade, legalidade, combate a intolerância, etc.); ao contrário, é a Maçonaria que busca ter a sua imagem associada, identificada com o pensamento e a obra de Voltaire. Que não se mantenham ilusões e falsos orgulhos por identificação; foi Voltaire quem fez pela Maçonaria, e não vice-versa, e tampouco esta, por si mesma, fará por qualquer outro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BÍBLIA SAGRADA. Bíblia do Peregrino. Comentários de Luís A. Schökel. 2ª Ed. São Paulo: Paulus, 2006. DURANT, Will. A História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2000. Coleção: Os Pensadores. FRANCA S.J., Pe. Leonel. O Método Pedagógico dos Jesuítas – ratio studiorum. Porto Alegre: Hugo de São Vítor, 2019. O MALHETE. Tolerância e Escuridão – Voltaire e a era do Iluminismo. O Malhete - informativo maçônico, político e cultural, Linhares-ES, ano XV, n0 167, p. 6-10, março, 2023. RITUAL. Ritual do Grau de Aprendiz Maçom - REAA. Porto Alegre: GLMERGS, 2007. VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. São Paulo: Escala, 2006. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, n0 58. ______ . Tratado sobre a tolerância – por ocasião da morte de Jean Calas (1763). Porto Alegre, RS: L&PM, 2008. ______ . Cândido ou o Otimismo. São Paulo: Martim Claret, 2001. ANEXO A EXTRAORDINÁRIA INICIAÇÃO DE VOLTAIRE Jerônimo Borges No entanto, a mais fascinante das iniciações da maçonaria universal ocorreu em Paris no dia 07 de abril de 1778, na Loja “Les Neuf-Soeurs”, com a iniciação de Francois-Marie Arouet, que adotava o pseudônimo de Voltaire, já com a provecta idade de 84 anos. Essa Loja era um verdadeiro celeiro cultural onde se destacavam [...] o filósofo Diderot [...] o físico e estadista norte-americano Benjamin Franklin [...] os astrônomos Pierre Simon Laplace [...] Jean Le Rond D`Alembert [...] o grande matemático e filósofo Condorcet [...] além de poetas, escritores e intelectuais da França, Itália, Inglaterra e Alemanha, entre outros. Foi apresentado por Benjamin Franklin e Court de Gebelin . A cerimônia de Iniciação foi dirigida pelo astrônomo Joseph Jérôme Lalande , Venerável Mestre da Loja, na presença de 250 maçons. Foi uma sessão longa, diferenciada, terminando os trabalhos perto da Meia-Noite. Encontravam-se os representantes da Imperatriz Catarina da Rússia e do Rei Frederico II da Prússia, seu particular amigo, além das representações de embaixadas [...] Destacavam-se ainda, damas da alta nobreza empunhando estandartes das Lojas “Felicitarias” e “Linfas da Rosa”, do Rito de Adoção que ocuparam lugar de destaque no Oriente da Loja. Silêncio profundo ... surge caminhando vagarosamente o octogenário Voltaire, amparado nos braços de Franklin e Gebelin, sob os olhares atentos da plateia, seguida de uma chuva incessante de frenéticos aplausos. Não lhe vendaram os olhos e tampouco o submeteram às provas de costume. Afinal, era Voltaire, orgulho da Europa. Foi uma das cerimônias mais brilhantes registradas pela Maçonaria, segundo os estudiosos. A sua iniciação, já alcançando o 30 Grau, não foi um pedido de Voltaire. O privilégio, é que foi estendido em homenagem ao maior expoente vivo daquela época. Depois [dos embaixadores de Catarina e de Frederico] discursaram Laplace e Diderot. Finalmente falou Voltaire [...] num improviso contagiante durante duas horas com palavras ora irônicas, ora proféticas, sob o silêncio sepulcral dos presentes. A iniciação de Voltaire motivou a maior explosão da História da Humanidade estremecendo até mesmo o trono de Luiz XVI, com a presença dos embaixadores de Catarina e Frederico II, o Grande. Era o prenúncio do final da tirania e do absolutismo, antecipando à Revolução Francesa, que absorveu muitas de suas ideias. Algumas das frases imortais de Voltaire, algumas das quais ditas no discurso de sua iniciação: • Pense por si mesmo e dê aos outros o direito de fazer o mesmo. • É perigoso estar certo quando o governo está errado. • Ame a verdade, perdoe o erro. • O trabalho afasta três grandes males: o ócio, o vício e a necessidade. • Eu não acredito no deus que os homens criaram, mas acredito no Deus que criou os homens. Certa ocasião enviando uma das mais mordazes cartas que um intelectual remete a outro, comentou o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade”. Disse para Jean-Jacques Rousseau que seu livro fazia surtir o desejo de voltar a ser animal, e andar de quatro patas, mas ele já o havia abandonado esse hábito há sessenta anos. Contudo, quando as autoridades queimaram sua obra e lhe perseguiram, Voltaire se insurgiu e escreveu a Rousseau: “Eu não concordo com uma só palavra sua, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-las”. O Mestre-Maçom Voltaire faleceu três meses depois de iniciado.