terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O QUE É A AÇÃO CORRETA? - Jiddu Krishnamurti


                         Auckland, Nova Zelândia, 1ª palestra - 28 de março de 1934.

Amigos, penso que cada um de nós está aprisionado seja num problema religioso seja numa luta social ou num conflito econômico. Cada um de nós está a sofrer pela falta de compreensão destes variados problemas, e tentamos resolver cada um deles por si; isto é, se têm um problema religioso, pensam que o vão resolver pondo de lado o problema econômico ou social e centrando-se inteiramente no problema religioso, ou se têm um problema econômico pensam que vão resolver esse problema econômico limitando-se inteiramente a esse conflito específico. Ao passo que eu digo que não podem resolver estes problemas por si sós; não podem resolver o problema religioso por si só, nem o problema econômico nem o problema social, a menos que vejam a inter-relação entre os problemas religiosos, sociais e econômicos.


Aquilo a que chamamos problemas são meramente sintomas, que aumentam e se multiplicam porque não agarramos a vida toda como uma coisa só, mas dividimo-la em problemas econômicos, sociais ou religiosos. Se olharem para todas as variadas soluções que são oferecidas para os vários padecimentos, verão que lidam com os problemas em separado, em compartimentos estanques, e não tomam os problemas religiosos, sociais e econômicos compreensivamente como um todo. Ora é minha intenção mostrar que enquanto lidarmos com estes problemas em separado apenas aumentamos o desentendimento, e portanto o conflito, e desse modo o sofrimento e a dor; até que lidemos com o problema social e com os problemas religiosos e econômicos como um todo compreensivo, não dividido, mas de preferência vendo a ligação delicada e subtil entre aquilo que chamamos problemas religiosos, sociais ou econômicos – até que vejam esta ligação real, esta ligação íntima e subtil entre os três, seja qual for o problema que possam ter, não o vão resolver. Apenas incrementarão a luta. Embora possamos pensar que resolvemos um problema, esse problema surge novamente de uma forma diferente, e assim vamos através da vida resolvendo problema após problema, luta após luta, sem compreender totalmente o pleno significado do nosso viver.

Portanto, para compreender esta ligação íntima entre aquilo a que chamamos problemas religiosos, sociais e econômicos, tem que haver uma completa reorientação do pensamento – isto é, cada indivíduo tem que deixar de ser uma peça de engrenagem, uma máquina, seja na estrutura social seja na religiosa. Olhem e verão que a maior parte dos seres humanos são escravos, meras peças de engrenagem nesta máquina. Não são realmente seres humanos, apenas reagem a um meio estabelecido e por isso não existe verdadeira ação individual, pensamento individual; e para descobrir essa relação íntima entre todas as nossas ações, religiosas, políticas ou sociais, têm que pensar como indivíduos, não como um grupo, não como um corpo coletivo; e essa é uma das coisas mais difíceis de fazer, que os indivíduos saiam da sua estrutura social, ou religiosa, e a examinem com espírito crítico, para descobrir o que é falso e o que é verdadeiro nessa estrutura. E então verão que já não estão preocupados com um sintoma, mas estão a tentar descobrir a causa do próprio problema, e não apenas a lidar com os sintomas.

Talvez alguns de vocês digam no fim da minha palestra que nada lhes dei de positivo, nada em que possam claramente trabalhar, um sistema que possam seguir. Eu não tenho nenhum sistema. Penso que os sistemas são perniciosos, porque podem de momento aliviar os problemas, mas se simplesmente seguirem um sistema são escravos dele. Apenas substituem o velho sistema por um novo, o que não origina compreensão. O que origina compreensão não é procurar um novo sistema, mas sim descobrirem por si próprios, como indivíduos, não como uma máquina coletiva mas como indivíduos, o que é falso e o que é verdadeiro no sistema existente, e não substituir o velho sistema por um novo.

Ora, ser capaz de criticar, ser capaz de questionar, é o primeiro requisito essencial para qualquer homem pensante, para que possa começar a descobrir o que é falso e o que é verdadeiro no sistema existente, e por esse motivo nesse pensamento há ação, e não mera aceitação. Assim durante esta palestra, se quiserem compreender o que vou dizer, tem que haver espírito crítico. O espírito crítico é essencial. O questionamento é correto, mas nós fomos treinados para não questionar, para não criticar, fomos cuidadosamente treinados para nos opormos. Por exemplo, se eu disser algo que não vão gostar – como o farei, espero – naturalmente começarão a opor-se, porque a oposição é mais fácil do que descobrir se o que digo tem algum valor. Se descobrirem que o que eu digo tem valor, então há ação, e por isso terão que alterar toda a vossa atitude perante a vida. Por esse motivo, como não estamos preparados para fazer isso, criámos uma hábil técnica de oposição. Isto é, se não gostarem de qualquer coisa que estou a dizer, apresentam todos os vossos preconceitos profundamente enraizados e obstruem-na, e se eu estiver a dizer algo que os possa magoar, ou que os possa aborrecer emocionalmente, refugiam-se nestes preconceitos, nestas tradições, neste pano de fundo; e reagem a partir desse pano de fundo, e a essa reação chamam crítica. Para mim não é espírito crítico. É apenas oposição habilidosa, que não tem valor.

Ora bem, se forem todos Cristãos – e presumivelmente são todos Cristãos – talvez eu vá dizer algo que podem não compreender, e em vez de tentarem descobrir o que quero transmitir, imediatamente se refugiarão por trás das tradições, por trás dos preconceitos profundamente enraizados e das autoridades da ordem estabelecida, e a partir dessa fortaleza, na defensiva, atacarão. Para mim isso não é crítica: isso é uma maneira engenhosa de não atuar, de evitar a ação plena, completa.

Se quiserem entender o que vou dizer, pedia-lhes que fossem realmente críticos, não habilidosos na vossa oposição. Ser crítico requer muita inteligência. A crítica não é cepticismo, ou aceitação; isso seria igualmente estúpido. Se simplesmente dissessem, “Bem, eu sou céptico sobre o que diz”, isso seria tão estúpido como simplesmente aceitar. Ao passo que a verdadeira crítica consiste, não em transmitir valores, mas em tentar descobrir os verdadeiros valores. Não é assim? Se conferirem valores às coisas, se a mente conferir valores, então não estão a descobrir o mérito intrínseco da coisa, e a maior parte das nossas mentes está treinada para conferir valores. O dinheiro, por exemplo. Abstratamente o dinheiro não tem valor. Tem o valor que lhe damos. Isto é, se quiserem o poder que o dinheiro dá, então usam o dinheiro para ter poder, portanto estão a dar um valor a algo que inerentemente não tem valor; assim, da mesma maneira, se descobrirem e compreenderem o que vou dizer, têm que ter esta capacidade de crítica, que é realmente fácil se quiserem descobrir, se quiserem encontrar, não se disserem, “Bem, não quero ser atacado. Estou na defensiva. Tenho tudo o que quero, estou perfeitamente satisfeito. ” Então, uma tal atitude é perfeitamente irremediável. Estão então aqui apenas por curiosidade – e a maioria provavelmente está – e o que eu vou dizer não terá significado, e por isso dirão que é negativo, nada construtivo, nada positivo.

Portanto por favor lembrem-se que esta tarde vamos descobrir, considerar em conjunto, quais são as coisas falsas e as verdadeiras na situação social e religiosa existente; e para fazer isso por favor não tragam continuamente os vossos preconceitos, sejam Cristãos, ou de qualquer outra seita, mas tenham antes esta atitude inteligente e crítica, não só a respeito do que vou dizer, mas com respeito a tudo na vida, o que significa a cessação da procura de novos sistemas, e não a procura de um novo sistema que, quando encontrado, será de novo pervertido, corrompido. Na descoberta do falso e do verdadeiro nos sistemas social, religioso e econômico – o falso e o verdadeiro que nós próprios criamos – nessa descoberta, impediremos as nossas mentes e corações de criar falsos ambientes nos quais provavelmente a mente será de novo aprisionada.

A maior parte de vocês está à procura de um novo sistema de pensamento, um novo sistema de economia, um novo sistema de filosofia religiosa. Porque procuram um novo sistema? Vocês dizem, “Estou insatisfeito com o antigo”, isto é, se estiverem a procurar. Ora eu digo, não procurem um novo sistema, mas em vez disso examinem o próprio sistema em que estão presos, e então verão que nenhum sistema de nenhuma espécie originará a inteligência criativa que é essencial para a compreensão da verdade ou Deus ou seja lá qual for o nome que gostam de lhe dar. Isso significa que não seguindo qualquer sistema vão descobrir a realidade eterna; mas só a vão encontrar quando vocês, como indivíduos, começarem a compreender o próprio sistema que edificaram através dos séculos, e nesse sistema descobrirem o que é verdadeiro e o que é falso.

Portanto por favor lembrem-se disso – que não lhes estou a dar um novo sistema de filosofia. Penso que estes sistemas são gaiolas para manter presa a mente. Não ajudam o homem, são apenas impedimentos. Estes sistemas são um meio de exploração. Ao passo que se vocês, como indivíduos, começarem a questionar, verão que nesse questionamento criam conflito, e a partir desse conflito compreenderão – não na mera aceitação de um novo sistema que é apenas outro soporífero que os adormece e os transforma em mais uma máquina.

Vamos portanto desocbrir o falso e o verdadeiro nos sistemas existentes – os sistemas da religião e da sociologia. Para descobrir o que é falso e o que é verdadeiro, temos de ver em que se baseiam as religiões. Ora, eu falo de religião como a forma cristalizada de pensamento que se tornou no mais elevado ideal da comunidade. Espero que acompanhem tudo isto. Isto é, as religiões tal como são, não como vocês gostariam que fossem. Tal como são, em que se baseiam? Qual é o seu fundamento? Quando olham, quando examinam e pensam realmente com espírito crítico sobre isso – não trazendo as vossas esperanças e preconceitos, mas quando realmente pensam sobre isso – verão que se baseiam no conforto, dando-lhes consolo quando estão a sofrer. Isto é, a mente humana está continuamente à procura de segurança, de uma posição de certeza, seja numa crença ou num ideal ou num conceito, e portanto estão continuamente a procurar uma certeza, uma segurança, em que a mente se refugie como conforto. Ora o que acontece quando estão continuamente à procura de segurança, proteção, certeza? Naturalmente isso gera medo, e quando há medo tem que haver conformidade. Por favor, não tenho tempo de entrar em detalhes. Fá-lo-ei nas minhas várias palestras, mas nesta quero pôr tudo concisamente, e se estiverem interessados podem ponderar sobre isto, e depois podemos discuti-lo em reuniões de perguntas e respostas.

Portanto as pretensas religiões conferem o padrão de conformidade à mente que procura segurança nascida do medo na busca de conforto; e onde há procura de conforto, não há compreensão. As nossas religiões em todo o mundo, no seu desejo de dar conforto, no seu desejo de os conduzir a um padrão específico, de os moldar, dá-lhes vários padrões, moldes, seguranças, através daquilo a que chamam fé. Essa é uma das coisas que exigem – fé. Por favor não interpretem mal. Não se adiantem a mim. Elas exigem fé, e vocês aceitam a fé porque ela lhes proporciona um refúgio do conflito da existência diária, da luta contínua, das preocupações, dores e sofrimentos. Portanto dessa fé, que tem que ser uma fé dogmática, nascem as igrejas, e daí são estabelecidas ideias, crenças.

Ora para mim – e por favor lembrem-se disto, quero que critiquem, não que aceitem – para mim todas as crenças, todos os ideais são um obstáculo porque os impedem de compreender o presente. Vocês dizem que as crenças, os ideais, a fé, são necessários como um farol que os orientará através da confusão da vida. Isto é, estão mais interessados em crenças, em tradição, em ideais e na fé, do que em compreender a própria confusão. Para compreenderem a confusão não podem ter uma crença, um preconceito; têm que olhar para ela completamente, agarrá-la com uma mente clara, com uma mente não corrompida, não com uma mente que está influenciada por preconceitos específicos a que chamamos um ideal. Portanto onde há uma procura de conforto, de segurança, tem que haver um padrão, um molde, no qual nos refugiamos, e por isso a preconceber o que deve ser Deus, e o que deve ser a verdade.

Ora para mim, existe uma realidade viva. Existe algo que devém eternamente, algo fundamental, real, duradouro, mas que não pode ser preconcebido; não requer crenças, requer uma mente que não esteja acorrentada a um ideal tal como um animal está atado a um poste, mas que pelo contrário, requer uma mente que esteja continuamente a mover-se, a experimentar, nunca permanecendo. Eu afirmo que há uma realidade viva; chamem-lhe Deus, verdade, o que quiserem, coisa que é de muito pouca importância – e para compreenderem isso, é preciso haver suprema inteligência, e por isso não pode haver qualquer conformidade, mas antes o questionamento dessas coisas falsas e verdadeiras em que a mente se encontra aprisionada. E verão que a maior parte das pessoas, a maior parte de vocês são religiosamente propensos, estão à procura da verdade, e essa mesma procura indica que estão a fugir do conflito do presente, ou que estão insatisfeitos com a situação presente. Por isso tentam descobrir o que é real; isto é, deixam a situação que cria conflito e fogem e tentam descobrir o que é Deus, o que é a verdade. Por isso essa procura é a negação da verdade, porque estão a fugir – há evasão, desejo de conforto, de segurança. Por isso, quando as religiões se baseiam, como o fazem, na oferta de seguranças, tem que haver exploração; e para mim as religiões tal como são subsistem em nada mais do que numa séria de explorações. Aquilo a que chamamos os mediadores entre o nosso presente conflito e essa suposta realidade tornaram-se os nossos exploradores, e eles são os sacerdotes, os mestres, os professores, os salvadores; porque eu afirmo que só através da compreensão do conflito presente com todo o seu significado, com todos os seus delicados matizes – só assim podem descobrir o que é real, e ninguém os pode conduzir a isso.

Se ambos, o inquiridor e o professor, soubessem o que é a verdade, então ambos poderiam ir na sua direção; mas o discípulo não pode saber o que é a verdade. Por isso a sua inquirição sobre a verdade só pode existir no conflito, não longe dele, e assim, para mim, qualquer professor que descreva o que é a verdade, o que é Deus, está a negar isso mesmo, esse algo incomensurável que não pode ser medido por palavras. A ilusão das palavras não lhes dá segurança, e a ponte das palavras não os pode conduzir a esse algo. É somente quando vocês, como indivíduos, se começarem a aperceber no conflito imenso, da causa, e por consequência da falsidade desse conflito, que descobrirão o que é a verdade. Ali existe a felicidade eterna, a inteligência; mas não nesta coisa espúria chamada espiritualidade que é apenas uma conformidade, conduzida pela autoridade através do medo. Eu afirmo que existe algo extremamente real, infinito; mas para o descobrir o homem não deve ser uma máquina imitativa, e as nossas religiões não são nada mais que isso. E além disso, as nossas religiões em todo o mundo mantêm as pessoas separadas. Isto é, vocês com os vossos preconceitos específicos, autodenominando-se Cristãos, e os Indianos com as suas crenças específicas, autodenominando-se Hindus, nunca se encontram. As vossas crenças mantêm-nos separados. As vossas religiões estão a mantê-los separados. “Mas”, dizem vocês, “se os Hindus pudessem ao menos tornar-se Cristãos, então haveria uma unidade”, ou os Hindus dizem, “Deixemos que se tornem todos Hindus.” Mesmo então há divisão, porque a crença necessita de uma divisão, uma distinção, e por esse motivo a exploração e a luta contínua da diferença de classes.

Dizemos que as religiões unem. Pelo contrário. Olhem para o mundo fraccionado em seitas pequenas e tacanhas, lutando umas contra as outras para aumentar o seu número de membros, a sua riqueza, as suas posições, as suas autoridades, pensando que elas são a verdade. Só há uma verdade, mas não podem chegar a ela através de nenhuma seita, através de nenhuma religião. Para descobrir o que é verdade na religião, e o que é falso, não podem ser uma máquina; não podem aceitar as coisas como elas são. Fá-lo-ão se estiverem satisfeitos, e se estão satisfeitos não me ouvirão, e a minha palestra será inútil. Mas se estão insatisfeitos ajudá-los-ei a questionar corretamente, e desse questionamento descobrirão o que é a verdade, e nessa descoberta do que é verdadeiro descobrirão como viver amplamente, completamente, extaticamente; não com esta constante luta, batalhando contra tudo para vossa própria segurança, à qual chamam virtude.

Mais uma vez, este medo que é criado através da procura de segurança, procura refúgio na sociedade. A sociedade nada mais é que a expressão do individual multiplicada por milhares. Afinal, a sociedade não é uma coisa misteriosa. É o que vocês são. É premente, controladora, dominadora, tortuosa. A sociedade é a expressão do indivíduo. Esta sociedade oferece segurança através da tradição, a que chamamos opinião pública. Isto é, a opinião pública diz que possuir, possuir bens, é perfeitamente ético, moral, e dá-lhes distinção neste mundo, confere-lhes honras; vocês são pessoas notáveis neste mundo. É isso que, tradicionalmente, é aceito. É essa a opinião que criaram como indivíduos, porque é isso que vocês procuram. Todos vocês querem ser alguém no estado, seja Sir Qualquer Coisa ou Lord, e todo o resto, como vocês sabem, que se baseia na possessividade, nas posses; e isso tornou-se moral, verdadeiro, bom, perfeitamente cristão, ou perfeitamente hindu. É a mesma coisa. Ora nós chamamos a isso moralidade. Chamamos moralidade ao ajustamento a um padrão. Por favor, não estou a pregar o contrário disso. Estou a mostrar-lhes a falsidade disso, e se quiserem descobrir atuarão, não procurarão o reverso. Isto é, vocês consideram as posses, já sejam a vossa mulher, os vossos filhos, os vossos bens, vocês consideram isso perfeitamente moral. Agora suponham que tinha nascido uma outra sociedade em que as posses fossem más, onde esta ideia de possessividade fosse eticamente proibida – que entrasse na vossa mentalidade como a possessividade entra agora pelas circunstâncias, pela situação, pela opinião. Então a moralidade perde todo o seu significado, a moralidade é então uma mera conveniência. Não a percepção correta das coisas, mas o engenhoso ajuste às circunstâncias – a que chamam moralidade. Suponham que querem, como indivíduos, não ser possessivos, vejam o que têm que combater! Todo o sistema da sociedade não é senão possessividade. Se o compreendessem e não fossem levados pelas circunstâncias que não são chamadas morais, então vocês, como indivíduos, teriam que começar a afastar-se desse sistema voluntariamente, e não teriam que ser levados como cordeiros a aceitar a moralidade da não-possessividade.

Atualmente são forçados quer gostem quer não, quer pensem que é sensato ou não; são forçados pelas situações, pelo meio que criaram, porque são ainda possessivos, e agora talvez apareça um outro sistema que os leve ao oposto – a ser não-possessivos. Certamente não é moralidade; é apenas timidez ser forçado pelo meio a ser possessivo ou não-possessivo. Ao passo que, para mim, a verdadeira moralidade consiste em compreender totalmente o absurdo da possessividade e combatê-la voluntariamente; e não ser conduzido de uma maneira ou de outra.

Agora, se olharem, esta sociedade está baseada na consciência de classes que é mais uma vez a consciência da segurança. Da mesma maneira que as crenças se tornam em religiões, também as posses se tornam na expressão da nacionalidade. Da mesma maneira que as crenças separam as pessoas, condicionam as pessoas, mantêm-nas separadas, também a possessividade, expressando-se como consciência de classes e tornando-se em nacionalidade, mantém as pessoas separadas. Isto é, toda a nacionalidade se baseia na exploração da maioria pela minoria para seu próprio benefício através dos meios de produção. Essa nacionalidade, através do instrumento do patriotismo, é um processo de guerra. Todas as nacionalidades, todos os países soberanos, têm que se preparar para a guerra; é o seu dever, e não adianta serem pacifistas e ao mesmo tempo falar de patriotismo. Não podem falar de fraternidade, e depois falar sobre Cristianismo, porque isso nega-a; não mais aqui que na Índia, ou em qualquer outro país. Na Índia podem falar sobre Hinduísmo e dizer que somos um só, que toda a humanidade é uma só. São apenas palavras – hipocrisia.

Portanto todas as nacionalidades são um processo de guerra. Quando falava na Índia, disseram-me (presentemente os Hindus estão a travessar uma fase dessa doença do nacionalismo), “Olhemos primeiro pelo nosso país porque há tanta gente a morrer de fome; depois podemos falar sobre a unidade da humanidade”, que é a mesma coisa de que falam aqui. “Protejamo-nos e depois falaremos sobre unidade, fraternidade, e todo o resto.” Ora, se a Índia está realmente preocupada com o problema da fome, ou se vocês estão realmente preocupados com o problema do desemprego, não podem lidar apenas com o problema de desemprego da Nova Zelândia; é um problema humano, não um problema de um grupo específico chamado Nova Zelândia. Não podem resolver o problema da fome como um problema Indiano, ou como um problema Chinês, ou o problema do desemprego como um problema Inglês, ou Alemão, ou Americano, ou Australiano, mas têm que lidar como ele como um todo; e só podem lidar com ele como um todo quando não forem nacionalistas, e não forem explorados através do processo de patriotismo. Vocês não são patriotas todas as manhãs quando acordam. Só são patriotas quando os papéis dizem que têm que o ser, porque têm que conquistar o vosso próximo. Somos por isso bárbaros, e não os que invadem o vosso país. O bárbaro é o patriota. Para ele o seu país é mais importante que a humanidade, que o homem; e eu digo-vos que não resolverão os vossos problemas, este problema econômico e de nacionalidade, enquanto forem Novo Zelandeses. Só o resolverão quando forem seres humanos verdadeiros, livres dos preconceitos nacionalistas, quando deixarem de ser possessivos, e quando a vossa mente não estiver dividida pelas crenças. Então poderá haver verdadeira unidade humana, e então o problema da fome, o problema do desemprego, o problema da guerra, desaparecerá, porque vocês considerarão a humanidade como um todo e não como algum povo específico que quer explorar outro povo.

Veem portanto o que está a dividir o homem, o que está a destruir a verdadeira glória de viver na qual, unicamente, podem encontrar essa realidade viva, essa imortalidade, esse êxtase; mas para a encontrar têm que ser em primeiro lugar indivíduos. Isso significa que têm que começar a compreender, e por consequência a agir, para descobrir o que é falso no sistema existente, e assim, como indivíduos, formarão um núcleo. Não podem alterar as massas. O que são as massas? Vocês próprios multiplicados. Esperam que as massas atuem, esperando que por algum milagre haja uma mudança completa do dia para a noite, porque não pensam, não querem agir. Enquanto esta atitude de espera existir, haverá cada vez maior luta, cada vez mais sofrimento, falta de compreensão; a vida torna-se uma tragédia, algo sem valor. Ao passo que, se vocês, como indivíduos, agirem voluntariamente porque querem compreender e descobrir, então tornar-se-ão responsáveis, então não se tornarão reformadores, então haverá uma mudança completa, não baseada na possessividade, nas distinções, mas na verdadeira humanidade na qual há afeto, há pensamento, e por isso um êxtase de viver.

Jiddu Krishnamurti, O que é a Acção Correcta? Filosofia. Textos de J.Krishnamurti em Português.

Postado originalmente no site: http://sweetrockandnroll.blogspot.com.br/
Referência: http://www.jiddu-krishnamurti.net/pt/krishnamurti-o-que-e-a-accao-correcta/1934-03-28-krishnamurti-o-que-e-a-accao-correcta

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Quote of the day - Bhuda


"All that we are is the result of what we have thought. If a man speaks or acts with an evil thought, pain follows him. If a man speaks or acts with a pure thought, happiness follows him, like a shadow that never leaves him." (Bhuda)

Sugestões de livros para entender a crise (Por Rogério Rocha)

Neste vídeo trago quatro sugestões de obras cuja leitura pode nos ajudar mergulhar nas raízes dos problemas e compreender as razões que levam o Ocidente ao quadro de crise que ora se abate sobre muitas de suas nações. Assistam ao vídeo!.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Quem foram os mestres da suspeita? (Por Rogério Rocha)

Neste vídeo eu apresento a vocês os pensadores, filósofos e cientistas que foram denominados de "mestres da suspeita". Ao longo da apresentação tentarei fundamentar, em breves linhas, a razão pela qual tais figuras do pensamento humano terminaram por receber tal designação. 


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Hannah Arendt: a filósofa como poeta

Hannah Arendt: a filósofa como poeta
Hannah Arendt: a filósofa como poeta

Hannah Arendt: a filósofa como poeta

Hannah Arendt é mais conhecida como pensadora, analista privilegiada do totalitarismo, e, infelizmente, como a amante judia de Heidegger (“filósofo para filósofos”). Mas era também poeta
A faceta da judia Hannah Arendt filósofa quase militante — dotada de uma coragem intelectual excepcional, mesmo quando enfrentava o reducionismo e o vitimismo do establishment judaico — é por demais conhecida. Nascida em 1906 e falecida em 1975, é frequentemente citada em livros e reportagens e artigos de jornais de todo o mundo tal a vitalidade de suas ideias. Afirma-se que algumas de suas ideias são insight não desenvolvidos — e seu livro clássico, “Origens do Totalitarismo”, mereceu críticas de vários autores, como os judeus Bruno Bettelheim, psicanalista, e Raul Hilberg, historiador. Nos últimos tempos, nos quais dinheiro compra até amor verdadeiro, tem sido mencionada, com constância excessiva, por sua paixão pelo filósofo Martin Heidegger. Num de seus livros, “Homens em Tempos Sombrios” (Companhia das Letras, 256 páginas, tradução de Denise Bottmann), escreveu um ensaio sobre Heidegger apresentando-o como uma espécie de “último romântico”. Trata-se de uma “defesa” relativamente sutil, porque Heidegger encantou-se pelas “ideias” do nazista Adolf Hitler. Mas há uma Hannah Arendt pouco conhecida e nada divulgada — a poeta.
Como poeta, Hannah Arendt não era uma gigante, ao contrário dos seus adorados Rilke e Auden, mas não era medíocre. As poesias publicadas nesta edição foram extraídas da melhor biografia de Arendt em português: “Hannah Arendt — Por Amor ao Mundo” (Editora Relume-Dumará, 492 páginas), de Elizabeth Young-Bruehl. A tradução é de Antônio Trânsito (revisada por Ari Roitman e revisão técnica de Eduardo Jardim de Moraes). Evidentemente, a filósofa sabia que não era uma poeta do porte de Goethe, Heine, Rilke, Auden e T. S. Eliot, mas as poesias, ainda que por vezes exibam certa secura e a autora mostre apenas razoável capacidade no manejo das palavras, têm certa qualidade, sobretudo por seu caráter, digamos, histórico e filosófico. Ela escreveu, por exemplo, uma poesia sobre Walter Benjamin. Alguns poemas, é verdade, parecem ter sido escritos por uma colegial, mas, aqui e ali, a força filosófica do pensamento de Arendt injeta qualidade e vitalidade onde falta poesia. “A tristeza é como uma luz que arde no coração/A escuridão é uma brasa que vasculha nossa noite” — um dos bons momentos de sua poesia.
Arendt amava poesia, inclusive as do “stalinista” alemão Beltolt Brecht, que perdoava, como a Heidegger, pelo seu enorme talento. Ela lia o escritor americano William Faulkner, por exemplo, e adorava uma de suas frases (Arendt adorava citações, como Karl Marx): “O passado nunca está morto, e nem mesmo é passado”. No livro, embora não tenha a ver com o assunto exposto aqui, que é poesia, há um trecho surpreendente, uma revelação de Arendt ao seu admirado Jaspers: “A tentativa malsucedida de [de Theodor W. Adordo] de colaboração [com o nazismo] em 1933 foi exposta no jornal estudantil de Frankfurt, ‘Discus’. Ele respondeu com uma carta indescritivelmente lamentável, que não obstante deixou uma forte impressão nos alemães. A verdadeira infâmia do assunto foi que ele, meio-judeu (por lei), deu esse passo sem informar seus amigos. Ele tivera esperanças de se safar com o nome da família italiana de sua mãe” (aqui se encerra o texto de Arendt; o trecho a seguir, sem aspas, é da biógrafa), Adorno, ao invés do nome mais obviamente judeu de seu pai, Wiesengrund (página 109).

Cansaço

Tarde caindo —
Um suave lamento
soa nos pios dos pássaros
que convoquei.
Muros cinzentos
desmoronam.
Minhas próprias mãos
encontram-se novamente.
O que amei
não posso manter.
O que me cerca
não posso deixar.
Tudo declina
enquanto cresce a escuridão.
Não me domina —
deve ser o curso da vida.
(Cansaço foi escrito quando Hannah Arendt tinha 17 anos.)

— o —

Perdida em autocontemplação
Quando olho minha mão —
Estranha coisa me acompanhando —
Estou então em nenhuma terra,
Por nenhum Aqui e Agora,
Por nenhum Que apoiada.
Então sinto que deveria desprezar o mundo.
Deixar o tempo passar se ele quiser
Mas não deixar que haja mais sinais.
Olhe, aqui está minha mão,
Minha e estranhamente próxima,
Mas ainda — uma outra coisa.
Será mais do que sou?
Terá um propósito mais alto?
(Ao escrever este poema, Arendt já estava envolvida, emocionalmente, com Heidegger)

— o —

Por que você dá sua mão
Envergonhado, como se fosse um segredo?
Você é de uma terra tão distante
Que não conhece o nosso vinho?
(Poema sobre seu complicado relacionamento com Heidegger, que era casado)

Canção de verão

Através da abundância que amadurece no verão
Eu irei — e deslizarei minhas mãos,
Estenderei meus membros doloridos pa­ra baixo,
Em direção à terra escura e pesada.
Os campos que se inclinam e sussurram,
As trilhas nas profundezas da floresta,
Tudo exige um estrito silêncio:
Que possamos amar embora soframos;
Que nosso dar e nosso receber
Possam não contrair as mãos do sacerdote;
Que em quietude clara e nobre
Possa a alegria não morrer para nós.
As águas de verão transbordam,
O cansaço ameaça destruir-nos.
E perdemos nossa vida
Se amamos, se vivemos.
(Sobre este poema, escreve Elizabeth Young-Bruehl: [Arendt] “Ainda se sentia presa no dilema de um amor ilícito e impossível, que nunca iria ‘contrair as mãos dos sacerdotes’, mas estava determinada a manter viva a alegria que ele lhe trouxera”. O amor era Heidegger)

— o —

A noite me envolveu
Macia como o veludo, pesada como a tristeza.
Não conheço mais a sensação do amor
Não conheço mais os campos a brilhar,
E tudo quer fugir de mim —
Simplesmente para dar-me paz.
Penso nele e no amor —
Como se estivessem num país distante;
E o “vir e dar” seja estranho:
Eu mal sei o que me ata.
A noite me envolveu
Macia como o veludo, pesada como a tristeza.
Em parte alguma há uma rebelião surgindo
Na direção de nova alegria e tristeza.
E a distância que chamou para mim,
Todos os ontens tão claros e profundos,
Eles não mais estão me distraindo.
Conheço uma água grande e estranha
E uma flor a quem ninguém dá nome.
O que pode destruir-me agora?
A noite me envolveu
Macia como o veludo, pesada como a tristeza.
(Este é, na opinião de Elizabeth Young-Bruehl, um dos melhores poemas de Arendt. A biógrafa escreve: “Nesse poema, Hannah Arendt procurou alcançar aquele reino em que os poetas românticos alemães haviam descoberto coisas tais como a ‘flor azul’ inominável e vários mares não mapeados — uma paisagem de outro mundo e outra transcendência”.)

— o —

Consoladora, inclina-te suavemente para o meu coração.
Dá-se, silenciosa, alívio para a dor.
Coloca tua sombra sobre tudo por demais
brilhante —
Dá-me a exaustão, cobre o brilho.
Deixa-me teu silêncio, teu abrandamento refrescante.
Deixa-me embrulhar em tua escuridão tudo o que é mau.
Quando a claridade doer com novas visões
Dá-me a força para seguir adiante com
firmeza.

— o —

Não chore pela suave tristeza
Quando o olhar de quem não tem lar
Ainda o corteja envergonhado.
Sinta como a história mais pura
Ainda oculta tudo.
Sinta o movimento mais tenro
De gratidão e fidelidade.
E você saberá: sempre,
O amor renovado será dado.
(Nesse poema, Hannah Arendt “conversa” com seus amigos, como se eles fossem entender sua “devoção a alguém sem igual”, ou seja, Heidegger.)

W. B.

O crepúsculo voltará algum dia.
A noite descerá das estrelas.
Repousaremos nossos braços estendidos
Nas proximidades, nas distâncias.
Da escuridão soam suavemente
pequenas melodias arcaicas. Ouvindo,
vamos desapegar-nos,
vamos finalmente romper as fileiras.
Vozes distantes, tristezas próximas.
Essas são as vozes e esses os mortos
a quem enviamos como mensageiros
na frente, para levar-nos à sonolência.
(W. B. significa Walter Benjamin. Ao saber que o amigo havia se matado, ao fugir da perseguição nazista, Arendt transformou seu lamento num poema.)

— o —

Elas surgiram do lago estagnado do passado —
Essas muitas memórias.
Figuras enevoadas arrastaram os círculos ansiosos de meu encadeamento
Atrás de si, sedutoras, ao seu objetivo.
Mortos, o que quereis? Não tendes lar ou família em Orcus?
Finalmente a paz das profundezas?
Água e terra, fogo e ar, são vossos servidores como se um deus,
Poderosamente, vos possuísse. E vos convocaram
Das águas estagnadas, pântanos, charnecas e açudes,
Reuniram-vos, unificados, juntos.
Brilhando no crepúsculo cobris o reino dos vivos com neblina,
zombando do “não mais” que escurece.
Nós fomos brindar, abraçar-nos e rir, e relembrar
Sonhos de tempos passados.
Nós, também, nos cansamos de ruas, cidades, das rápidas
mudanças de solidão.
Por entre os barcos a remo com seus pares amorosos, como jóias
Em lagos nas florestas,
Nós, também, poderíamos fundir-nos quietamente, ocultos e envoltos nas
Nuvens indistintas que breve
Vestirão a terra, as margens, o arbusto e a árvore,
Esperando a tempestade.
Esperando — fora da neblina, do castelo de nuvens, loucura e sonho —
A tempestade que se eleva e se retorce.
(Poema escrito em 1943, nos Estados Unidos. Arendt acompanhava os acontecimentos da Europa com atenção e desfrutava de um pouco de paz.)

— o —

A tristeza é como uma luz que arde no coração
A escuridão é uma brasa que vasculha nossa noite.
Precisamos apenas acender a pequena chama triste
Para encontrar o caminho de casa, como sombras, através da
longa, vasta noite.
A floresta, a cidade, a rua, a árvore, são
luminosos.
Feliz é aquele que não tem lar; ele ainda o vê
em seus sonhos.
(Arendt “ansiava pelo mundo perdido, a Europa”, diz sua biógrafa. No poema acima, de 1946, há uma referência a um poema de Rilke, no qual escreve “feliz daquele que tem um lar”. Arendt está longe de seu lar, a Alemanha. Mas depois adaptou-se aos Estados Unidos.)

— o —

A terra poeteia, de campo a campo,
com árvores interlineares, e deixa
que teçamos nossos próprios caminhos ao redor
da terra arada, para o mundo.
Flores rejubilam-se ao vento,
a grama estende-se macia para acolhê-las.
O céu se torna azul e saúda suavemente
as macias cadeias que o sol teceu.
As pessoas passam, ninguém está perdido —
terra, céu, luz e florestas —
brincam na brincadeira do Todo-Poderoso.

O amor é uma poderosa força antipolítica

“O amor, em virtude de sua paixão, destrói o ‘entre’, esse espaço que nos relaciona com outros e nos separa deles. Enquanto dura seu encanto, o único ‘entre’ que pode inserir-se no meio de dois amantes é a criança, o próprio produto do amor. A criança, esse ‘entre’ com que os amantes agora estão relacionados e mantêm em comum, é representativa do mundo onde ela também os separa; é uma indicação de que eles inserirão um novo mundo no mundo existente. Por meio da criança, é como se os amantes retornassem ao mundo do qual seu amor os expeliu. Mas essa nova mundanidade, resultado e único final possíveis de um caso de amor, é, num certo sentido, o final de um amor, que deve superar novamente os padrões ou ser transformado em outro modo de estar juntos. O amor por sua natureza não é mundano, e é por isso — não por raridade — que é não apenas apolítico, mas antipolítico, talvez a mais poderosa de todas as forças antipolíticas humanas.”
(Trecho de “A Con­dição Hu­mana”, de Hannah Arendt)

Originalmente publicado em: www.revistabula.com

A crise da Linguagem (por Simone Nardi Grama)

POR SIMONE DE NARDI GRAMA*


Investigar a linguagem, e sua "crise", é um dos desafios mais intrincados para os pensadores. Conheça a visão de três grandes autores sobre o assunto


Platão, Sócrates, Crátilo e tantos outros já se debruçaram sobre a investigação da linguagem, sobre a significação dos nomes e sobre a relação entre a linguagem e o ser. Os sofistas fizeram uso hábil da linguagem, transformando o que poderia ser "falso", em "real". A Filosofia faz uso da linguagem para buscar o conhecimento, e vamos tentar identificar o que levou a linguagem a entrar em crise, se ela mesma por não conseguir expressar o mundo em palavras, ou se o ser humano a fez entrar em crise por fazer um uso degenerado das palavras com as quais ela nos serve.

COMMONS
 
Qual seria efetivamente a relação do ser humano com a linguagem, essa nunca foi uma pergunta nova, contudo, essa questão foi um dos temas que chamou a atenção de Mauthner que como muitos outros filósofos, tentou buscar na essência da linguagem a solução para o problema que se apresentava. Realmente seriam as palavras capazes de expressar a beleza da vida, a concepção humana de mundo?Estaria ela limitada e se estivesse, quais seriam seus limites e qual o papel que ela desempenha? Para responder a essas questões Mauthner vai examinar a linguagem em si, não as linguagens dos povos, mas a Linguagem, aquilo ao qual ele poderia chamar de essência da linguagem. Em sua crítica, ele não deseja separar ou diferenciar, como fez Kant, pois para ele isso seria uma mera observação da linguagem e não é essa sua intenção, ele deseja buscar uma visão mais clara, ou seja, a essência da linguagem em si. Suas reflexões visam demonstrar que a linguagem nada mais é do que uma grande ilusão, uma abstração, para isso ele vai demolir essas ilusões, revelando assim a verdadeira face da linguagem.

Mauthner
Fritz Mauthner (1849- 1923) foi um filósofo, novelista, crítico teatral e ensaísta austro-húngaro, especializado em filosofia da linguagem.

Nossas convenções
Hermógenes defendia uma visão convencionalista, que defendia que os nomes eram escolhidos por uma convenção, não podendo, portanto , existir nomes falsos, aqui na crise da linguagem, como também o fará Kraus, veremos que muitas vezes ela é usada conforme o desejo humano, por uma convenção que possa beneficiar algumas classes.


Segundo podemos encontrar no texto " A crise da Linguagem na Viena Fin-De-Siécle", para Mauthner a linguagem está subordinada aos nossos hábitos e as nossas convenções, não tento por isso, elementos universais, por isso a ausência da unidade e a variação no significado das palavras. Mauthner nos diz então, que devido a tudo isso, a linguagem não possui uma essência, sendo apenas um apanhado de convenções que, apesar de precárias, desempenham de forma eficiente, seu papel dentro da sociedade, sendo que tais convenções ocorrem exatamente por causa do "papel vil", entre as relações humanas, reduzindo a linguagem ao uso que fazemos dela que pode ser Bom ou Mau. Mauthner propõe então o suicídio da linguagem, sua desconstrução, insinuando o ingresso da filosofia no reino do silêncio, pois para ele apenas entre os incultos existe uma linguagem sã, enquanto que, no seio intelectual e artístico, evidenciava-se o uso vazio da linguagem. Mauthner propõe também o silêncio para alcançar o mítico,de forma a se alcançar uma vida harmoniosa com o mundo, ou seja, o silêncio faria com que o homem se harmonizasse novamente consigo mesmo e com o mundo que o rodeia.

Hofmannsthal também se debruçou sobre o problema da linguagem. Assim como Mauthner, Hofmannsthal acreditava que a linguagem era solidão, sobretudo porque sentia-se mal ao dizer palavras como "alma", espírito" ou "corpo", certos diálogos o deixavam furioso e lhe pareciam sobretudo falsos, o que o fazia sentir-se amargamente solitário, para ele as palavras eram estéreis, destituídas de um sentido e lhe traziam imobilidade, afastando-o e anulando-o frente ao mundo. Assim como Mauthner, Hofmannsthal apelou ao místico, buscou uma ligação mais forte com o mundo pautada apenas nos sentidos, buscando como Mauthner, o reino do silêncio, onde para ele a Vida sim se revelava com sua verdadeira linguagem. Assim ele coloca que a crise da linguagem ocorre porque ela não possui uma capacidade eficiente, para a expressar a Vida em palavras. Como Mauthner, Hofmannsthal acusa a linguagem de ser incapaz de demonstrar o mundo, por ser restrita e limitada.

KRAUS: DEGENERAÇÃO DA CULTURA, DEGENERAÇÃO DA LINGUAGEM
Karl Kraus, ao contrário de Mauthner e Hofmannsthal, dirige ao ser humano, a culpa pela crise da linguagem. A degeneração da cultura vienense para ele, causou também a degeneração da linguagem, que foi asfixiada pelo mau uso que fizeram dela, sobretudo artistas e jornalistas. Devemos lembrar que Hofmannsthal, embora tenha rompido com sua veia poética, escrevia peças de óperas. Kraus concordava com Mauthnner ao dizer que o povo humilde é que conhecia a verdadeira linguagem, porém para Kraus, isso vinha sendo tirado pelo mau uso dela em folhetins, e a crise da linguagem ocorreu exatamente com a relação de mau uso da imprensa no uso da língua, foi esse uso degenerado da imprensa que destruiu a linguagem. Ao contrário de Mautner e Hofmannsthal, Karl Kraus não acreditava que a linguagem em si fosse o problema, não acreditava que fosse incapaz de demonstrar o mundo em palavras , nem por isso inconsistente, sua corrupção ocorreu com a morte da cultura, onde para ele, a imprensa teve enorme influência. Era, na opinião de Kraus, a imprensa quem fornecia novas práticas e novos valores sociais a cultura vienense, era ela quem os manipulava e conduzia para onde bem entendesse e desejasse. O jornal possuía poder, e seu poder se espalhava por todas as classes, construindo aos poucos a opinião pública, produzindo um novo paradigma, uma nova cultura, através de interesses, puramente financeiros de quem pudesse pagar mais. "Ela tornou-se a principal responsável pela redução da palavra escrita a um envelope conveniente para uma opinião"( "A crise da Linguagem na Viena Fin-De-Siécle")

Mauthner
Fritz Mauthner (1849-1923) foi um filósofo, novelista, crítico teatral e ensaísta austro-húngaro, especializado em filosofia da linguagem.
Nossas convenções
Hermógenes defendia uma visão convencionalista, que defendia que os nomes eram escolhidos por uma convenção, não podendo, portanto , existir nomes falsos, aqui na crise da linguagem, como também o fará Kraus, veremos que muitas vezes ela é usada conforme o desejo humano, por uma convenção que possa beneficiar algumas classes.


A linguagem usada nos folhetins era ornamentada, maquiada, nada mais era do que uma linguagem estéril, coberta de más intenções e que possuía, simplesmente, a função de moldar opiniões, o que foi destruindo assim, a cultura vienense e destruindo, distorcendo por assim dizer a essência da linguagem. Essa "morte da cultura" afastava mais e mais a sociedade do místico, do real, de si mesma e talvez um detalhe que Kraus tenha disto, e que nos remete aos dias atuais: "escrever com a linguagem ou escrever guiado pela linguagem?", o certo é que os folhetins vienenses escreviam com a linguagem, encobriam, enganavam e iniciavam, para Kraus, a crise da linguagem. Karl Kraus pede a revalorização da linguagem, a superação de sua crise através do envolvimento no "interior da linguagem", de sua lógica, à volta ao bom uso da palavra, o que havia sido, com certeza, esquecido pela cultura vienense.
COMMONS
Três pensadores, um só objetivo, desvendar o que levou a linguagem a uma crise, de um lado a acusação de Mauthner e Hofmannsthal a linguagem, como sendo ela uma mera ilusão, incapaz de definir o mundo em que vivemos, segundo eles, apenas no reino do silêncio, dos sentimentos, é que permaneceria a verdadeira linguagem, que não poderia ser descrita em palavras; esse retorno ao místico une Mauthner e Hofmannsthal, esse retorno ao mundo, a hora de aprender a calar, a silenciar, pois para eles não há um universal, não há uma essência que possa tornar a linguagem algo eficiente para demonstrar a vida, por isso a necessidade da destruição da linguagem e a busca pelo mundo interior. De outro lado Karl Kraus, que dirige a culpa pela crise da linguagem a própria sociedade, ao uso degenerativo que as pessoas fizeram das palavras, aos interesses financeiros que os conduziram e a degeneraram, ela sim uma vítima da incapacidade humana de comunicar-se, pede ele a revalorização da mesma, para que possa , a linguagem, sobreviver.
Será que a crise da linguagem foi realmente superada?Pela visão de Kraus, é possível dizer que não, pois hoje os folhetins foram substituídos pelos telejornais, pela internet que fazem a massificação da sociedade, e a leva a morte da cultura,esmagando sob seus pés a linguagem das palavras, tal como ocorreu em Viena, sinal de que talvez também estejamos, em nosso fim de século cultural, e que Como Mauthner e Hofmannsthal concluíram, talvez apenas no silêncio, o homem possa realmente encontrar a verdadeira linguagem.

Hofmannsthal
Um dos fundadores do Festival de Salzburgo, o escritor e dramaturgo austríaco Hugo Laurenz August Hofmann von Hofmannsthal (1874- 1929) foi um colaborador do compositor e maestro alemão Richard Strauss (1864-1949).

REFERÊNCIAS
PANSARELLI, Daniel (org.) Metafísica, Epistemologia e Linguagem. São Bernardo do Campo: Umesp, 2009.
SILVA, José Fernando da. "A crise da Linguagem na Viena Fin-De-Siécle". Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, 2008.
*Simone De Nardi Grama é graduada em Filosofia e especialista em Filosofia Contemporânea e História pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).

Post publicado originalmente na Revista Filosofia online: conhecimentopratico.uol.com.br

domingo, 3 de janeiro de 2016

Citação do dia - Michel Foucault

Michel Foucault - filósofo francês

Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos - de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência (...) Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc.; sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir dela, valorizaram-se as reivindicações morais do humanismo. Mas não devemos nos enganar: a alma, ilusão dos teólogos, não foi substituída por um homem real, objeto de saber, de reflexão filosófica ou de intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda do que ele. Uma "alma" o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo. (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, pp. 31-32)