quinta-feira, 30 de maio de 2013

Longe de Aristóteles, longe do coração


A partir do seu berço, a Antiga Grécia, o estudo da filosofia, passa inevitavelmente por três grandes nomes: Sócrates, Platão e Aristóteles. Este último, no entanto, foi o que apresentou uma espécie de enciclopédia de todo o saber que foi produzido e acumulado pelos gregos, em todos os ramos do pensamento e da prática, que, no conjunto, se chama de "Filosofia". Suas influências no mundo ocidental se propagaram por 20 séculos, e suas obras ainda são leitura obrigatória para os estudantes dos cursos de Filosofia da atualidade. Se devemos a Sócrates o início da filosofia moral, a Aristóteles devemos a distinção entre o saber teórico e o saber prático.

Aristóteles (384-322 a.C.) nasceu em Estagira, cidade macedônica ao norte de Atenas. Saiu de sua cidade natal e foi para Atenas a fim de tornar-se discípulo de Platão, na Academia. Gastou muito dinheiro com manuscritos (os livros da época) e foi um dos primeiros a organizar uma "biblioteca", por isso seu mestre sempre se referia à sua casa como "a casa do leitor". Foi ele quem propôs a existência de quatro fatores na relação causal: forma, matéria, motivo (que produz mudanças) e o fim (pelo qual ocorre um processo de mudança). A "forma" não é só o formato, mas a força que dá o formato, que modela a matéria, visando uma figura. Para Aristóteles, não há necessariamente aí uma "providência externa" projetando e executando acontecimentos terrenos. Por isso, ele cria o termo "enteléquia", "finalidade interior" ou "impulso interno". Assim, tudo é fruto apenas de "causas naturais". Elaborou as noções de ato (energeia) e de potência (dynamis). Ato seria o estado atual do ser, enquanto potência, aquilo em que esse ser se transforma. Assim, uma semente, enquanto ato, é apenas uma semente, mas, como potência, é uma árvore. A potência atualiza-se em ato sempre em vista de uma finalidade.
Práxis 
Práxis significa "prática e ação". O primeiro grande gênio da filosofia a utilizar o termo foi Aristóteles, mas ganhou impulso com o materialismo dialético do teórico alemão Karl Marx (1818-1883), autor de O capital.
Menão 
Menão, ou melhor, Mênon, é um diálogo de Platão, no qual Sócrates conversa com o estudante Mênon, da região de Tessália. O diálogo versa sobre virtude e a natureza do conhecimento, mente e alma. Uma dos personagens marcantes do diálogo é o escravo de Mênon, para quem Sócrates ensina fundamentos da geometria, provando a capacidade de aprendizado dos homens.

Mas Aristóteles compreendia muito bem que tudo também tinha ou provinha de uma "fonte" - ou seja, "toda causa precisa ter uma causa anterior". Donde desenvolveu a ideia do "motor imóvel" (primum mobile immotum) - um ser invisível, incorpóreo, indivisível, sem espaço, assexuado, sem paixão, sem alteração, perfeito e eterno. Esse ser não é exatamente "o criador do mundo", mas "aquele que o movimenta", como uma força mecânica imprescindível, a todas as coisas - pura energia (Actus Purus). É ele, também, quem dirá que a ética é um saber prático, pois refere-se à práxis  . Na práxis, o agente, a ação e a finalidade do agir são inseparáveis. Na práxis ética somos aquilo que fazemos e esse "fazer" tem em si mesmo uma finalidade boa e virtuosa.

Podemos dizer que Aristóteles não somente fundou a Ética como disciplina filosófica, mas também expôs a maior parte dos problemas que ocuparam a atenção dos "filósofos morais", uma vez que foi ele quem definiu o campo das ações éticas. Estas não são definidas apenas pela virtude, pelo bem e pela obrigação, mas também pertencem àquela esfera da realidade na qual cabem a deliberação e a decisão ou escolha.

O estudo da conduta ou do fim do homem como indivíduo é a Ética. Ela também é uma reflexão que leva o indivíduo a discutir, problematizar e interpretar o significado dos valores morais, que estabelecem a conduta e os costumes de cada sociedade, os quais, na maior parte dos casos, são acatados como se fossem algo natural, e não cultural. Ser ético, portanto, é agir de modo a não ferir um código moral preestabelecido, de tal forma que, uma vez sendo esse o procedimento de todos, resulte em um bem comum e em uma boa relação entre membros de uma sociedade.

SOBRE A VIRTUDE

No diálogo Menão  , Platão explora a questão da "virtude", perguntando-se se ela pode ser ensinada, se pode ser adquirida com exercícios, ou se nós a recebemos por natureza. Ali, Sócrates diz que antes deve-se saber o que é a virtude, pois, de outra forma, não haverá como saber como ela nos chega, ao que Menão rebate, questionando "como é possível buscar o que não se conhece?", uma vez que corre-se o risco de, mesmo o encontrando, não reconhecê-lo. Enquanto Platão tenta resolver esse embate de argumentos com sua teoria da "reminiscência" - acreditando que em nós já há um "conhecimento verdadeiro" sobre todas as coisas universais e necessárias, que pode ser acessado -, Aristóteles, seu discípulo, mantendo- -se fiel ao modo filosófico de pensar que pergunta pelo que é, prefere tomar este outro caminho, que se resume na máxima "não investigamos para saber o que é a virtude, mas a fim de nos tornarmos bons" (Ética a Nicômaco).



No sistema aristotélico, a ética é a ciência das condutas, cujo objetivo último é garantir ou possibilitar a conquista da felicidade (ética eudaimônica), e esta consistiria na realização humana e no sucesso daquilo que o homem pretende obter ou fazer, e o faz no seu mais alto grau de excelência, ou seja, para chegar aonde deseja, o homem deve desenvolver suas virtudes (areté).

Os escritos aristotélicos sobre a ética e a política são a chave para a compreensão da posição filosófica do pensador de Estagira acerca da filosofia da práxis. Ética a Nicômaco é a obra de Aristóteles menos questionada quanto a sua verdadeira autoria, embora haja uma série de textos, divulgados e explorados durante toda a Idade Média, que foram atribuídos a ele sem qualquer comprovação disso, compondo o chamado Corpus Aristotelicum.

Aristóteles elabora uma hierarquia de bens do desejo, considerando-os desiguaisapropriados e até impróprios, numa busca incessante de chegar a um bem que seja mais próprio ao homem, ou seja, o orientador da vida humana. As pistas para se encontrar esse "bem maior" se encontram nas seguintes proposições:

 deve ser perfeito, definitivo e suficiente por si mesmo para fazer feliz o homem que o possui, sem necessidade de mais nada;
 deve ser procurado por si mesmo e não em ordem de conseguir outro bem qualquer, o que faria do segundo maior que o primeiro;
 deve ser algo real e atual, presente, não uma simples potência, aptidão ou capacidade para adquirir um bem qualquer;
 não deve ser algo que vem ao homem de forma puramente passiva, como uma dádiva, mas deve ser fruto da ação humana, como uma conquista, na qual esteja envolvida a atividade humana que possa ser considerada a mais nobre, pois o fim deve ser o mais nobre;
 deve fazer o homem bom;
 deve ser algo firme, estável e contínuo, que dure por uma longa vida, não algo peremptório e efêmero, descontínuo e curto.


Feito isso, a tarefa se torna menos árdua, mas não menos complexa. Deve ser feita uma investigação do homem não como "ser estático", mas "em ação", em funcionamento; portanto, deve-se entender suas "funções". Descartadas as que são comuns ao homem e aos outros seres, como viver e sentir, chega-se ao viver conforme o logos - uma atividade da alma em consonância com a virtude. Assim, duas são as condições para que o homem alcance o seu bem próprio: saber qual é esse bem (condição necessária) e viver uma vida regulada pelo logos (condição suficiente), ao que o filósofo grego concluirá que a "virtude dianoética" do cultivo da sabedoria na "vida teorética" é a atividade que distingue o homem dos outros animais, sendo, portanto, a mais nobre, a mais desejada e superior. "Virtude dianoética", para Aristóteles, é a perfeição da alma racional. Duas são as virtudes dianoéticas: phrónesis, a sabedoria que diz respeito aos princípios dos homens, e sophia, a sapiência que diz respeito às verdades supremas.

Aristóteles acrescenta à consciência moral a vontade guiada pela razão, como outro elemento fundamental da vida ética. Segundo Marilena Chauí, "A importância dada por Aristóteles à vontade racional, à deliberação e à escolha o levou a considerar uma virtude como condição de todas as outras e presente em todas elas: a prudência ou sabedoria prática. O prudente é aquele que, em todas as situações, é capaz de julgar e avaliar qual a atitude e qual a ação que melhor realizarão a finalidade ética, ou seja, entre as várias escolhas possíveis, qual a mais adequada para que o agente seja virtuoso e realize o que é bom para si e para os outros" (1998).

Todas as ações humanas tendem a "fins" que são "bens". O conjunto das ações humanas e o conjunto dos fins particulares para os quais elas tendem, subordinando-se a um fim último, que é o "bem supremo", ou a felicidade. Esse "bem supremo", realizável pelo homem, consiste em aperfeiçoar-se enquanto "homem", isto é, consiste em uma atividade da alma segundo a sua virtude - havendo mais de uma virtude, então, segundo a melhor e mais perfeita. Diz ele: "Realizando ações justas, tornamo-nos justos; ações moderadas, moderados; ações corajosas, corajosos". Para Aristóteles, as ações acabam por se tornar "hábitos", "estados" ou "modos de ser", que nós mesmos vamos construindo, sem necessidade alguma de imposições ou coerções externas. Aristóteles proclama os valores da alma como valores supremos, embora, com seu forte senso realista, reconheça uma utilidade também nos bens materiais, em quantidade necessária, já que eles, mesmo não estando em condições de proporcionar a felicidade, podem, de certa forma, comprometer a realização dela com a sua ausência.

Aproveitando a deixa da "utilidade dos bens materiais", para não perder de vista aquilo que foi dito lá no início, voltemos à questão do exercício político e dos constantes deslizes praticados por aqueles que são eleitos democraticamente para, nos mais elevados cargos públicos, representar os cidadãos de uma cidade, estado ou país. O que temos visto, pelo menos no âmbito da política brasileira, é um sem-número de casos horripilantes de aquisição de bens materiais por parte de representantes impostores, por meio da malversação do erário público, da desmedida exploração de privilégios escusos e do conluio com bandidos e empresários corruptos e corruptores. Exemplos mais extremos de total e explícita falta de ética, que, em hipótese nenhuma, deveriam fazer parte da conduta de um simples cidadão, por conseguinte, menos ainda de cidadãos que se tratam pelo nobre termo de "vossa excelência".

"Excelência", esta palavra foi citada em um outro parágrafo na sua denotação própria, mas, como vemos, não podemos dizer o mesmo sobre ela no parágrafo acima. Excelência, na conduta enquanto cidadão, exercendo ou não um elevado cargo público ou uma profissão de destaque na sociedade, como a de médico, padre, professor ou advogado (como ainda é de costume se ter em grande prestígio) é exemplo de "vida ética", não apenas para se tratar como assunto filosófico, mas, sobretudo, para se saber se o homem, mesmo com todos os percalços que lhe são impostos pela vida, ainda se conduz para e pelo bem.

Acima de tudo, Aristóteles diz que "A virtude tem a ver com paixões e ações, nas quais o excesso e a falta constituem erros e são censurados, ao passo que o meio é louvado e constitui a retidão". Daí desprende-se que agir com paixão é agir com o coração. Uma paixão comedida, é certo, porém, movida pelo desejo, o benfazejo desejo que almeja somente o bem. Não um bem particular e interesseiro, mas um bem coletivo e comum. Exercer uma profissão, para muitos, é como exercer um "dom", algo que parece estar na própria natureza do indivíduo, e que ele aparenta saber "de cor" como fazer, sem que ninguém o tenha ensinado. Um agir que ele sabe já em seu coração e que, exatamente por essa razão, deveria coincidir com o "agir ético". O coração é, para Aristóteles, o órgão principal no corpo humano, pois é a partir dele que todos os outros órgãos se desenvolvem, além de ser, também, produtor, o recipiente e o distribuidor do sangue - o alimento do corpo. E, como os órgãos da percepção - os olhos, os ouvidos, a pele - estão ligados ao coração pelos vasos sanguíneos, as diversas sensações acabam por confluir no coração, onde as impressões do mundo exterior são coordenadas. Refutando Platão, que situava a coordenação dos sentidos no cérebro, Aristóteles define o coração como lugar responsável pela percepção e, ao mesmo tempo, como o centro das emoções.

Muito tempo já se passou desde que o estagirita escreveu seu tratado ético, como um guia para a conduta humana e, infelizmente, a mediania, uma virtude imprescindível para Aristóteles, parece estar longe da mente e do coração da maioria dos homens de hoje que se propõem às atividades mais "nobres" da vida humana. Com isso, toda a coletividade é prejudicada e ainda é impingida a assistir a vitória da impunidade sobre outra importante virtude, a justiça. Como o próprio Aristóteles diz, em Política, "[...] é fora de dúvida que os homens que estão no poder precisam possuir alguma superioridade sobre aqueles que são governados". Porém, quando os representantes políticos, aqueles que deveriam servir de exemplo ao povo que o escolheu como "os melhores", são o produtores de atos corruptos e promotores de crimes contra os próprios cidadãos a quem representam legitimamente, dificilmente encontramos nessa sociedade valores éticos. Diante de tais evidências, concluímos que Ética pode até ser uma palavra bonita de se pronunciar, mas sua "beleza" só tem mesmo eficácia na ação. "Ademais, errar é possível de muitos modos, ao passo que agir retamente só é possível de um".

*Jaya Hari Das é filósofo, graduado pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA, e diretor do MOFICUSHINTH - Movimento Filosófico "Cura do Ser Humano Integral" - Terapia Hari.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Por que Sandel é um pop star da Filosofia?


Por Paulo Ghiraldelli Jr.
Por que Michael Sandel faz sucesso? A resposta fácil é dizer que ele fala bem, torna questões complexas fáceis de entender por um público mais amplo sem com isso ceder ao didatismo ou ao escorregão conceitual. Essa verdade às vezes nubla outra: o professor de Harvard tem sido cada vez mais ouvido porque ele tem uma novidade para dizer, e esta novidade está soando aos ouvidos dos jovens como alguma coisa que faz sentido.
Qual a novidade de Sandel? Bem, em termos de novidade mesmo, de algo inédito, Sandel não tem muito a dizer. Mas o que ele diz é tão caduco, tão fora de propósito até bem pouco tempo atrás, que soa como novidade. Ele sabe bem disso. Sua novidade pode ser enunciada, resumidamente, na seguinte pergunta: que tal voltarmos a considerar questões econômicas ou mesmo toda a disciplina Economia como algo no âmbito da filosofia moral, como era nos tempos de Adam Smith?
A garotada que o escuta no mundo todo – presencialmente ou pelos seus cursos disponibilizados na Internet – pode não ter lido Adam Smith. Alguns, inclusive, podem até nem saber quem é Adam Smith. Há os que nunca imaginaram que Economia e filosofia moral estiveram juntas. Todavia, quando ele fala aos jovens, Sandel não coloca seu projeto desse modo. Para os jovens, ele não faz metateoria, ele simplesmente disserta sobre um tema da filosofia política, e assim fazendo traz relações que são geradas no mundo econômico, no âmbito do mercado moderno, para o campo da avaliação ético moral. Diferentemente dos jovens existentes até mais ou menos os anos sessenta e setenta, os estudantes de hoje estão adorando isso.
Até os anos setenta e mesmo oitenta, qualquer crítica moral ao “capitalismo” ou, melhor dizendo, “ao mercado”, embora bastante popular, era tomada pelos jovens mais aplicados nos estudos, como uma forma tosca, romantizada de ver as coisas. Todas as pessoas faziam juízo moral sobre o mercado, mas ninguém dizia isso em rodas mais cultas. Nas rodas dos letrados, era importante não ser piegas e, portanto, o correto era não deixar de professar uma crítica marxista de cunho “científico”. Criticava-se o positivismo do século XIX, mas era nele que estava o ideal dos letrados. O correto era, portanto, analisar a modernidade segundo seus mecanismos evolutivos internos, como quem analisa uma doença se propagando em um organismo. Dizia-se na mesa de bar “o capitalista é um ladrão filho da puta”. Mas, na hora de escrever, essas mesmas pessoas não podiam dizer isso. Avaliações morais não podiam ser feitas. Era necessário mostrar que se o capitalista era alguém deplorável, assim era por conta de ser capitalista, de ser uma peça no mundo gerenciado pelo mercado e “pelo Capital”.
Esse tipo de pensamento, dominado pela sociologia, gerou antes hipocrisia que teoria eficaz. Para sair disso os teóricos – em especial os americanos – resolveram adotar uma divisão no campo da filosofia política e no campo do direito. Começaram a falar em teorias teleológicas e teorias deontológicas. Essa divisão ainda permanece. As primeiras são as que colocam o bem acima do direito, as segundas fazem o inverso. As primeiras são teorias geradas por uma avaliação moral que fixa o bem como um fim. São as teorias tradicionalmente filosóficas, uma vez que quase sempre metafísicas. As segundas são descritivas. A ideia básica destas últimas não é alcançar a felicidade, mas apenas administrar a justiça.
No mundo americano esse tipo de formulação descritiva ganhou uma expressão máxima em John Rawls. Ele propôs uma teoria contratualista de modo que a sociedade pudesse viver em um regime de justiça social. Assim, valorações morais ficariam de fora da teoria e também de fora da própria vida política prática, no campo da discussão plural, racional e pública, no âmbito da democracia liberal de tipo americano.
Nós aqui hoje temos um pé nesse tipo de formulação. Não raro, pedimos que os debates políticos não se embrenhem em questões que seriam do âmbito privado, como a união gay ou aborto etc. Nesse caso, pede-se que a política não seja guiada por valores morais que, enfim, são próprias da vida pessoal. Isso implica, portanto, em deixarmos de lado posições religiosas quando vamos para a praça pública discutir política, ou seja, a administração da cidade e a justiça na cidade. Mantendo o Estado neutro em termos de desejos que seriam os da vida privada de cada um, acreditamos poder exercer a democracia liberal em seu máximo de presteza e eficiência.
Ora, Sandel é aquele que aparece para dizer que talvez nunca tenhamos, de fato, feito tal coisa. E mais: nunca faremos tal coisa, e temos de admitir, então, que em questões de política, introduzimos nossa escala de valores que é montada a partir do que entendemos ser o bem. Fazemos isso por meio de nossa cultura particular, de nossa vida religiosa, de nossos costumes comunitários. Ora, se fazemos isso desde sempre, então, poderíamos assumir isso. Assumir, sim, mas não para tirar do estado sua busca de neutralidade, tornando-o uma instância a mais entre grupos sociais divergentes, mas de modo a levarmos em conta que teremos de, no campo político, sair da ideia de respeito ao outro para abraçar a ideia de aprendizado sobre o outro.
A ideia de respeito é própria da teoria liberal deontológica. Nesse tipo de formulação, os valores morais de cada um são os valores morais de cada um e nada mais. Os seus valores são os seus e os meus são os meus. Não nos confrontamos na arena pública com eles. Na arena pública colocamos plataformas políticas que dizem respeito à administração da cidade. Ora, a ideia de aprendizado é também liberal, mas ela não implica em respeito como separação e indiferença ou aparente indiferença. Ela implica em colocar tudo em debate, inclusive nossas posições morais, uma vez que elas dirigem nossas ideias sobre a administração da cidade. O que pedimos é que o outro tente pensar a partir dos nossos valores e, ao mesmo tempo, nós faremos um esforço no mesmo sentido em relação aos valores do outro. Essa situação parece ser mais difícil, mas não temos como fugir dela. Talvez ela seja a única possível na democracia. Fora disso, não teríamos democracia, teríamos apenas períodos políticos no qual vingaria um tipo de plebiscito.
O que Michael Sandel diz é o seguinte: vamos ter de admitir religião, moral, gostos pessoais etc. no campo da discussão pública da política, e vamos ter de aprender uns com os outros sobre vidas diferentes de grupos diferentes, e fazer leis que levem em conta esse aprendizado comum.  Ou seja, teremos de reconhecer uma prática que há muito já estamos fazendo. Por exemplo: a escravidão acabou nos Estados Unidos não sem a religião entrar no debate político; a religião entrou e, por meio de uma noção do que é o bem, conquistou muitos para a ideia de que a escravidão era uma instituição cruel e, portanto, pecaminosa. Não foi com a ausência da religião no debate público que conseguimos eliminar algo tão amado pelos conservadores, justamente os que pareciam ser mais religiosos. Exemplos desse tipo não faltam se pensarmos os direitos de minorias no contexto de nossa vida política hoje.
Como a democracia atual não é mais só uma regime que visa administra conflitos entre ricos e pobres, mas administrar também os direitos de minorias, então é natural que os jovens escutem Michael Sandel. Ele pode não estar falando algo novo, mas ele está ponde de maneira mais clara a necessidade que temos de entender essa relação entre o liberalismo que trabalha com um sujeito abstrato e o liberalismo (ou comunitarismo) que trabalha com um sujeito engajado em suas práticas vitais, familiares, comunitárias.
© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte: filosofia.pro.br

A arte afirmativa em Martin Heidegger


Heidegger


Por  Camilo Lelis Jota Pereira 


A tese central da estética proposta por Heidegger em “A origem da obra de arte” é claramente comprometida com a questão ontológica, isto é, sua argumentação procura demonstrar que a arte revela, de um modo particular, a verdade do ser. Com isto neste artigo pretendemos demonstrar que a estética de Heidegger, lida por uma via valorativa, confirma a abertura de perspectivas pluralistas para a compreensão da vida e um “novo infinito” para o mundo, anunciados na obra de Nietzsche.
O que é este remanejamento do questionamento estético para o campo ontológico? O que, este remanejamento, muda em relação à compreensão tradicionalista? Para procurar responder a estes questionamentos, voltemos o olhar para a análise realizada por Heidegger no livro citado.
O livro subdivide-se em A coisa e a obra, a obra e a verdade, a verdade e a arte e como ressalta Moosburger “Os títulos indicam o primado da pergunta pela verdade – verdade que, (…), é pensada no sentido de não encobrimento ou não-velamento (unverborgenheit).” Este direcionamento à pergunta sobre a verdade demonstra a dimensão ontológica da investigação heideggeriana no campo estético, proporcionando à filosofia voltar seu olhar para estudar a obra de arte no que, segundo Heidegger, realmente ela é.
A arte esta na origem, transcende o homem, por isto é ontológica, este é o direcionamento da reflexão de Heidegger, em vista a demonstrá-la efetua-se uma análise da obra de arte; a análise da obra permite a Heidegger caminhar por raciocínios que levam a conceitos que reconfiguram a maneira de entender a arte e já na primeira parte do livro, uma forma que foge ao pensamento lógico é colocada, o filósofo demonstra a circularidade que circunscreve a discussão artística:
Segundo a compreensão normal, a obra surge a partir e através da atividade do artista. Mas por meio e a partir de que é que o artista é o que é? Através da obra; pois é pela obra que se conhece o artista , ou seja: a obra é que primeiro faz aparecer o artista como mestre da arte. O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. (HEIDEGGER, 1997) O que realmente a obra de arte é? Para descobrir o que a obra de arte é, Heidegger percorre a história da filosofa ocidental e demonstra que a caracterização comumente usada da arte sugere que esta, é um objeto, impreterivelmente, relacionada ao sujeito. A prevalência desta caracterização da obra de arte conduz a um estado limitante da possibilidade da arte, pois para o pensamento do filósofo alemão a arte estaria em outro patamar, como um lugar privilegiado para que ocorra a verdade, sua dimensão não seria restrita à do conhecimento humano.
Mas como pode a arte estar limitando-se? Para entendermos esta limitação, vamos abordar como que Heidegger define a estética moderna.
A estética tradicional trabalha dentro da perspectiva subjetivista, que tem em Kant seu maior expoente, por isto iremos lançar mão da interpretação do pensamento deste filósofo com vista a clarificar a posição de Heidegger.
A inversão copernicana, promovida por Kant, confere ao sujeito transcendental status de agente idealizador da realidade, promove o eu como medida de tudo, a realidade é compreendida em referência ao aparelho cognoscitivo, isto é, o sujeito impõe estruturas cognitivas prévias sobre o objeto, sendo assim, a verdade – pensada como adequação – pode ser fundamentada na autoconsciência deste sujeito, pois este não pode acessar a coisa em si, sua ação esta direcionada aos fenômenos, que respeitam as regras prévias dos juízos subjetivos.
Dentro desta posição subjetivista, a estética transfere para o homem o centro da manifestação artística, o estudo acerca da arte é transferido para a interpretação do estado sentimental do homem em relação ao belo, este entendido como produção intelectiva do sujeito criador e contemplador. Esta visão da arte é compreendida como redutora da manifestação do novo, a abertura do mundo que encontra no artístico um lugar propicio para acontecer é restringido à lógica – demasiadamente humana.
Esta posição antropocêntrica em relação à obra de arte é atacada por Heidegger, pois tratando a obra como um objeto que supõe a existência de um sujeito, o jogo desta compreensão de mundo delimita de tal maneira a estética, que direciona sua ação apenas ao sujeito, o começo e o fim da arte relaciona-se ao homem. Com vista a reestruturar esta via de reflexão sobre a arte, é proposto o direcionamento da investigação para o que é uma obra de arte.
Na primeira parte do livro surge diante da reflexão realizada, uma característica da obra de arte: seu caráter de coisa; concernente a esta definição a pergunta: como a obra pode ser considerada uma coisa? Esta pergunta é respondida através da análise acerca de como que a obra é o que é e como é. No desenrolar desta análise, Heidegger demonstra que a obra de arte esta aí no meio de nós de forma não muito diferente das outras coisas que compõe nosso ambiente.
O quadro está pendurado na parede, como a arma de caça, ou um chapéu. Um quadro como, por exemplo, o de van Gogh, que representa um par de sapatos de camponês, vagueia de exposição em exposição. Enviam-se obras como o carvão de Ruhr, os troncos de árvore da Floresta Negra. (…) Os quartetos de Beethoven estão nos armazéns das casas editoriais, tal como batatas na cave. (HEIDEGGER, A origem da obra de arte, 1977) Diante deste caráter coisal da obra de arte, o pensamento tradicional – metafísico – trabalha de maneira dicotômica, produz um ajunte que separa matéria e forma às perspectivas que caracterizam as coisas; para Heidegger a arte não pode estar situada nesta redução proporcionada pela metafísica, a inseparabilidade entre matéria e forma implica uma nova compreensão da arte e das coisas.
Como já vimos acima, a concepção da estética tradicional produz esta definição pelo desdobrar da posição subjetivista para a compreensão da arte, pois, segundo Kant, os fenômenos são apresentados de maneira dividida em forma e matéria; dentro desta linha a estética kantiana pressupõe que existi uma matéria – uma coisa material – que recebe uma intervenção, de caráter intelectual, que produz a forma nesta simples matéria – a criação artística.
A obra seria uma coisa que remete a algo de outro. A matéria – que esta contida na obra de arte – sendo dotada de sentido só após a intervenção “artística” do homem, permite interpretações que usem, para definir a obra, conceitos que falam da intervenção humana como processo de cópia ou expressão histórica; a obra seria um símbolo, “se a obra é símbolo, ela é um ente de duplo caráter: uma coisa produzida e cindida em estrutura coisal e superestrutura artística.” (Moosburger, 2008)
Mas esta definição, proveniente da incorporação do modo de pensar metafísico, é atacada por Heidegger como a posição com a qual se tenta trazer para o domínio do prazer humano os objetos do mundo através da relação sujeito-objeto, escondendo a natureza da obra de arte, por conseguinte, fazendo que a arte desapareça.
A opção por descrever a arte através de uma via metafísica, acarreta em limitar a arte ao deleite humano, o que para Heidegger foge completamente a verdadeira essência da arte; assim a estética ontológica de Heidegger procura demonstrar, através de uma via não metafísica, que a arte pode ser compreendida distintamente do domínio da estética.
Aqui deparamos com um ponto convergente, o deslocamento do entendimento da obra de arte para o campo ontológico esclarece que a arte não pode ficar vinculada apenas ao processo de subjetivação da realidade, pois esta maneira metafísica de entendimento sugere uma postura, que tem por detrás, uma moral relativa a uma determinada compreensão de mundo.
Faremos um paralelo com a obra de Nietzsche, porque acreditamos que com este instrumento possamos compreender melhor o que esta por trás desta postura moral que a investigação heideggeriana sobre a obra de arte nos colocou como evidente.
Nietzsche faz um resgate da meditação sobre o sentido e o valor da existência, através da análise da manifestação cultural, “os festivais trágicos”, de um povo – o grego – que mantinha uma postura apreciativa da existência na sua multiplicidade e com isto aventa a disposição em favor de contemplar a vida em todos os aspectos. A boa disposição com o mundo, encontrada na leitura que Nietzsche faz da cultura grega pré-filosófica, sofreu um processo de decadência junto ao surgimento da filosofia idealista que tem como ícone Platão e Sócrates, cabe ressaltar aqui, que também Heidegger vai procurar resgatar o modo de pensar o mundo que existiria antes de Sócrates.
A decadência da boa disposição com a existência, que começa com o pensamento do filósofo Sócrates onde “conhecer é o caminho para o agir perfeito”, é acusada por Nietzsche em seu livro de estréia, a saber, “o nascimento da tragédia”, emerge junto à problemática da teorização racional do saber, o sujeito capaz de enxergar a “verdade” procura fundamentar a sua vida na descoberta da essência fundamental da realidade.
No campo da arte temos o “socratismo estético”. A arte agora se enquadra em aspirações do conhecimento, a possibilidade de criar novas interpretações sobre a vida e de ter prazeres inesperados é atacada por uma filosofia que privilegia espíritos do estável em detrimento das novas sensações. Com o aparecimento da consciência filosófica a busca, pela via da teoria, a aprender viver melhor, limita o homem a lançarem-se ao desconhecido, assim como na vida, na arte, de acordo com a “estética inovadora” de Heidegger as “coisas” estão aí sendo compreendidas pelo ponto de vista do deleite humano.
O otimismo teórico e, ou, “socratismo estético”, depende da duplicação metafísica da realidade, pois, só funciona fundamentada em uma dicotomia moral absoluta. Aqui entendemos como o inicio do processo de subjetivação, que passa por Descartes – onde é levantado o problema gnosiológico – até chegar a Kant, que configura através das doze categorias a perspectiva única e universal de compreensão do mundo, teve sua origem, segundo Nietzsche, em uma posição de envergadura moral em relação à vida.
Esta consciência tipicamente metafísica opera de forma a busca, em meio à multiplicidade, aquilo que é invariável, para tanto aplica, um esquema de leitura que reduz as possibilidades de abertura do mundo à compreensão racional da atividade criadora humana, em vista disto, podemos ter com Heidegger uma forma mais dignificante de expansão das possibilidades humanas através da arte.
Heidegger apresenta o quadro de Van Gogh, onde esta retratada um par de sapatos de um camponês, este quadro de um instrumento, na verdade resgata a matéria que foi consumida na instrumentabilidade e manifesta o mundo do camponês, feito de trabalho e esperança. O mero instrumento em seu uso, em sua faculdade de servir, esconde o seu ser. O par de sapatos não foi adequado à realidade através da pintura, mas desvelado o seu mundo. À reflexão acerca da arte, Heidegger introduz novas características: a apresentação do mundo e a revelação da terra.
A criação artística do homem é um processo complexo, o homem que se coloca a fabricar seu mundo não pode negar a terra, assim a obra de arte não se compõe de matéria à qual se acrescenta um valor estético, a arte se manifesta no domínio aberto por ela mesma.
Partimos do questionamento sobre o que seria a proposta de deslocamento da reflexão sobre a arte para o campo ontológico, apresentado o caráter moral da opção pela postura subjetivista que reduz as possibilidades de compreender o mundo, adentraremos na mudança da investigação artística e suas concepções afirmativas.
O conceito de mundo apresentado por Heidegger, não se refere ao conjunto de coisas que nos cercam, aos objetos dados, mas deve ser entendido como aquilo que de concreto, dá sentido às manifestações humanas. Neste sentido a obra de arte abriga todo o relacionamento de um povo com sua cultura, seus anseios e celebrações, ou seja, a obra de arte apresenta, pois, um mundo.
Por outro lado, a obra de arte é sempre aquilo de que é feita, a “mão” do homem utiliza a matéria que encontra aí na terra e fabrica algo que relaciona e faz sentido ao seu mundo. Este fabricar algo significa, segundo Heidegger, revelar o que estava oculto, trazer para o sensível o que estava no mais profundo da realidade do material.
A superação da estética tradicional, traz para a reflexão de Heidegger uma experiência originária: a arte sendo origem é entendida como acontecimento. A arte como acontecimento remete à abertura de mundo pela obra de arte, a matéria é envolvida pelo artista, desvelando um mundo que está se pondo em obra através da obra.
O artista e a obra ocorrem ao mesmo momento, não esta em jogo a causa e a razão da arte, mas a arte em processo de des-ocultação da verdade do ser:
Aonde a obra se recolhe e o deixa vir à luz a nesse recolher-se, a isso chamamos terra. Ela é a acolhente que vêm-a-frente. A terra é a incansável e sem esforço impelida para nada. Sobre a terra e nela o homem historial funda sua morada no mundo. Na medida em que a obra instala um mundo, elabora a terra. O elaborador é aqui para ser pensado no sentido estrito da palavra. A obra faz a própria terra voltar-se para o aberto do mundo e nele mantém. A obra deixa a terra ser uma terra (Der ursprung des kunstwerkes. 2003; in: Moosburger, 2008)
Através do combate entre terra e mundo, a arte possibilita o desvelamento daquilo que se esconde, segundo Heidegger, não há esperanças de um acordo sobre este combate: “ele deve permanecer como combate para dar unidade e autonomia à obra de arte”, terra e mundo apesar e por causa de sua diferença essencial, mantêm uma dependência recíproca.
A manifestação artística não é compreendida em sua relação com os sentimentos humanos, a perspectiva agora coloca a obra e o artista dentro do mesmo “barco” em relação à arte. A essência da criação é determinada, segundo Heidegger, pela des-oucultação da verdade, não esta mais restrita ao processo estético.
Esta desumanização da arte nos permite aludir à pluralidade de perspectivas que nos fala Nietzsche, pois, o sujeito foi deslocado da posição que permitia ao homem se impor pelo julgo estético acerca do mundo, a verdade encontra-se em um processo em aberto como nos fala a obra de arte.
Então, daí a possibilidade de um novo infinito para o mundo junto aos diversos focos humanos individuais que se depara com a abertura ao desconhecido, encantam-se novamente com os des-velamentos do ser e novas maneiras de “colorir o mundo”.
Entender a obra de arte como abertura de mundo, remete a uma postura afirmativa em relação à existência, Heidegger coloca a arte em uma posição muito além de ideologias ou posturas morais que possam descrever o mundo e, conseqüentemente, a obra de arte.
Antes de tudo ela ensinou, através de milênios, a olhar com interesse e prazer para a vida em todas suas formas e a levar nossa sensação tão longe que finalmente exclamamos: ‘Seja como for, a vida, é boa!’ esse ensinamento da arte, que consiste em encontrar prazer na existência e considerar a vida humana como quem considera um pedaço de natureza, sem se empolgar demais, vendo-a como um objeto de um desenvolvimento conforme a leis. (NIETZSCHE, 1978)

Bibliografia :

MOOSBURGER, Laura de Borba. Mundo, terra e “não-encobrimento” em A origem da obra de arte, IN: Revista Artefilosofia; Tessitura, Belo Horizonte, 2008.
HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte, Lisboa: Edições 70, 2004. NIETZSCHE, Obras incompletas / Friedrich Nietzsche ; seleção de textos de Gerard Lebrun ; tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo : Abril Cultural, 1974

sábado, 18 de maio de 2013

O fim da democracia?


Por SLAWOMIR SIERAKOWSKI
Um dos mais importantes filósofos do Ocidente, o canadense Charles Taylor fala sobre as ameaças que pairam sobre as democracias liberais: a crise econômica e “a incapacidade de enxergar que precisamos de imigração”.
Na entrevista abaixo, publicada no site Eurozine e concedida a Slawomir Sierakowski, fundador e editor-chefe da revista política polonesa Krytyka Polityczna, ele vê a questão também sob um ângulo positivo: é impossível vivermos sem política. Professor de filosofia e ciências políticas na Universidade McGill, no Canadá, Taylor acaba de ter publicado no Brasil seu livro A Ética da Autenticidade (É Realizações), no qual defende o valor das ideias para mudar a sociedade moderna.
A democracia liberal está morta, assim como Deus está morto nos escritos de  Nietzsche? Há hoje a percepção de que ela nunca foi nada além de um mito…
Charles Taylor - Penso, sem dúvida alguma, que a democracia, a democracia liberal, é mais viva quando está se afirmando, quando existe algo como um demos que está tomando o poder das mãos da elite ou de governantes – é aquilo que poderíamos descrever como a fase da praça Tahrir [no Cairo, Egito, onde começaram as recentes revoluções nos países árabes].
Então há um alto grau de participação e uma compreensão muito boa de quais são os problemas. Mas, como podemos ver na história dos EUA e de vários países europeus ocidentais, esse momento pode se prolongar por muito tempo. Esses países tiveram um grau maior de participação em períodos nos quais era travada uma espécie de guerra de classes: trabalhistas e conservadores no Reino Unido, socialistas e gaullistas na França, social-democratas e democratas cristãos na Alemanha e assim por diante.
Logo, havia uma luta de um povo, um demos: camponeses e trabalhadores contra os outros, e esses outros também se mobilizaram. Isso levou à formulação de alternativas claras, a um alto nível de participação.
A mesma coisa está acontecendo na Índia hoje. Entre os dalits – o estrato mais baixo do sistema indiano de castas – vê-se um senso tremendo de que a democracia é uma oportunidade para tornar menos desigual essa sociedade extremamente não igualitária.
No Ocidente, quanto mais rico e instruído você é, mais você vota; na Índia, quanto menos você possui e menos instruído é, mais você vota: os dalits e as mulheres votam mais que outros grupos sociais. Assim, o desafio para a democracia liberal é continuar a ser uma democracia liberal – especialmente no tocante à participação – depois de ultrapassar a fase da luta contra os vários tipos de estruturas que beneficiam as elites.
A maioria das democracias ocidentais está nessa fase, e o nível de participação vem caindo. Há outra coisa que pode fazer a democracia descarrilar, algo que está acontecendo hoje em sociedades mais ricas. Há diferentes fontes de ilusões que as pessoas podem ter, e uma das mais poderosas é o mito nacional.
O poder desse mito é capaz de levar as pessoas a ter visões seriamente equivocadas do mundo em que vivem, de modo que a luta política fica desligada dos problemas reais que você enfrenta. Bons exemplos disso são duas coisas muito perigosas que estão acontecendo na Europa Ocidental neste momento. A primeira é a incapacidade de enxergar que precisamos de imigração; que não haverá ninguém para pagar sua aposentadoria a não ser que se aceite a entrada de pessoas. É claro que o problema da imigração não é simples; tem seus prós e  contras, que precisam ser tratados com seriedade.
Ao invés disso, porém, as pessoas tendem a movimentar-se em suas próprias etnias, confortavelmente. Esse fato, aliado à incapacidade de lidar com os lados negativos da imigração, se reflete na ascensão do voto radical de direita, que pode ser vista na Áustria, na Dinamarca e, possivelmente, na França. Ainda não na Alemanha, graças a Deus.
A outra questão está ligada à crise econômica. Veja o que estão fazendo com a Grécia neste momento: arrasando o país para restaurar a confiança no mercado de títulos do governo. Mas, com esse grau de deflação, nunca vão conseguir voltar ao crescimento, nunca vão conseguir voltar a crescer o suficiente para saldar a dívida.
Portanto, dentro de dois anos vamos ter outra crise e vamos arrochar os gregos ainda mais. A Grécia deveria ser autorizada a sair da zona do euro e voltar para o dracma. Será um processo árduo, mas o dracma perderá valor em relação ao euro, e a Grécia poderá restabelecer os termos de comércio com outros países.
Ao invés de encarar isso, porém, a Europa não para com seu discurso moralizador: “Nós, alemães, trabalhamos duro, enquanto aqueles gregos apenas se divertem”. Os alemães podem trabalhar duro, de fato, mas também a Alemanha está lutando por sua própria sobrevivência.
Nos Estados Unidos há o movimento Tea Party. Seus integrantes sentem que os EUA estão perdendo espaço, que não é mais um país hegemônico como era. E a ideia deles é: “Precisamos retomar nossos valores originais, quando cada um se defendia independentemente”. Eles estão completamente cegos diante das causas reais da situação americana e suas curas possíveis. Esse tipo de ilusão é uma grave ameaça a uma democracia.
Também na Polônia existe um nacionalismo muito agressivo e estúpido. Essas são as duas maiores ameaças à democracia: uma percepção equivocada dos problemas que de fato existem e uma falta de tensão vital entre o demos e o resto, tensão essa que, no passado, resultou em um debate público vigoroso e alto grau de participação. É o que produz um sentido de eficácia dos eleitores, eficácia dos cidadãos. E isso está claramente vinculado ao alto grau de participação em torno de determinadas questões.
O senhor não acha que os contrastes desapareceram do sistema partidário de hoje? Em todo lugar as oposições são simuladas: esquerda e direita, social-democratas,  conservadores e liberais, todos têm mais ou menos a mesma cara. E uma das razões disso é o domínio do mercado sobre a democracia. Em sua opinião, esse fato fornece combustível adicional às guerras culturais, à reação direitista, aos mitos nacionais? É essa a origem do populismo de direita?
Sim, concordo. Podemos ver como os partidos políticos direitistas e populistas estão ganhando força à custa dos partidos social-democratas tradicionais. Várias frustrações estão sendo redirecionadas para a hostilidade em relação a imigrantes, por exemplo, e os eleitorados tradicionais de esquerda estão começando a votar nesse tipo de partido. É possível que também tenha sido esse o caso da Polônia durante o período do neoliberalismo.
Mas existe outro aspecto disso, talvez não na Polônia, mas em países mais ricos. Não tanto pelos partidos de esquerda serem cooptados, mas mais porque as preocupações das pessoas estão fragmentadas em toda uma gama de questões diferentes. Algumas pessoas se preocupam com ecologia, outras com aspectos diferentes de uma cultura e assim por diante. Assistimos a uma fragmentação das questões, algo que, na prática, significa que menos energia é investida na questão única: a política. É muito difícil incluir todas essas questões em  dois pacotes coerentes.
Diz-se com frequência que o mundo está mais complicado do que era. O que há de novo na situação atual?
Na época áurea da social-democracia, havia o entendimento de que duas filosofias diferentes amarravam todas essas questões – uma delas baseada na igualdade e outra no livre mercado e em determinados privilégios. Quase todo mundo aceitava que cada uma dessas questões poderia ser tratada de maneira diferente, dependendo da filosofia à qual cada um aderia. Nem sempre era esse o caso, mas a percepção geral de que as coisas eram assim era muito forte.
Assim que a classe trabalhadora passou a ganhar mais poder de compra – estamos falando agora dos anos 1950 e 1960 na Europa Ocidental –, quando ela passa a ganhar acesso ao que antes era reservado unicamente à classe média (como a casa própria), essa situação começou a ruir. Ocorreu, então, essa fragmentação de questões que agora esperamos que nossos governos enfrentem.
A sociedade democrática poderia concebivelmente funcionar assim, não fosse por duas coisas. A primeira é que as pessoas estão se omitindo da participação política; a segunda é que surgem novas ilusões. A outra característica da mudança é a passagem para o  “infoentretenimento” no capitalismo de consumo tardio: as pessoas consomem notícias como entretenimento.
Produtos de mídia fazem parte do sistema capitalista: a mídia busca o lucro para si, mas, ao mesmo tempo, precisa estar do “lado certo”. Todas as grandes empresas se anunciam dessa maneira.
O senhor diria que as necessidades do consumidor são criadas pelo mercado e que, de algum modo, nossas vidas já foram vendidas?
Acho que isso é verdade com relação a muitos pontos, mas não tantos quanto as pessoas de esquerda tendem a pensar. É claro que as coisas que desejamos às vezes são geradas por imagens de publicidade e assim por diante.
Mas o fato de não procurarmos os artigos de primeira necessidade e sim desejarmos coisas novas, produtos novos, é algo que está relacionado ao desenvolvimento da economia e que começa em diferentes momentos em diferentes sociedades.
Até os anos 1940, a imensa maioria dos moradores da zona rural não tinha a expectativa de viver melhor do que seus pais e avós. As pessoas queriam apenas conservar o que tinham: ser donas de seu sítio e assim por diante. É também assim que as pessoas viviam na Polônia até pouco tempo atrás.
Mas, com a chegada do capitalismo moderno de consumo, surgem expectativas de tipo completamente distinto: vou viver melhor que meus pais, meus filhos vão viver melhor do que eu, etc. A divisão entre luxo e necessidade perde nitidez e se desloca; hoje a televisão é uma necessidade, não apenas um luxo. E isso é um novo conjunto de expectativas que acompanha o sucesso do capitalismo industrial.
Por que as pessoas não querem mais viver suas vidas de acordo com uma religião ou qualquer outra coisa, a não ser a escolha do consumidor?
Isso significa presumir que o consumo de fato tome o lugar de algo significativo na vida das pessoas. Pode acontecer, e é uma situação muito lamentável, mas muitas pessoas estão crescendo com o sonho de tornar-se médicos, trabalhar para os Médicos sem Fronteiras e coisas ótimas assim.
Ao mesmo tempo, contudo, estão focadas nesse mundo do consumo. Uma parcela muito pequena de pessoas opta por retirar-se completamente, viver em comunidades e assim por diante. Na vida de cada um de nós existe algum tipo de equilíbrio, mas, quando você agrega tudo, isso pode acabar revelando-se muito nocivo à democracia.
Assim, se eu encontro sentido em minha vida sendo médico, você encontra sentido em sua vida escrevendo um romance, ela encontra sentido na vida dela… Mas essas atividades com sentido não se unem no domínio político, como acontecia nas carreiras profissionais nas velhas social-democracias. Naquela época, as pessoas enxergavam a política como algo importante, de modo que suas atividades eram voltadas a algum tipo de solidariedade. E hoje, para muitíssimas pessoas, parece não ser mais o caso.
É claro que existem ilhas onde a tradição e Deus ainda dão sentido às vidas das pessoas e onde é possível criar uma comunidade da maneira tradicional; mas o resto da população é sujeita ao mercado ou à lógica dele. A outra coisa é que os laços sociais estão se desintegrando. Contudo, o senhor afirma que as pessoas não deixam de viver vidas com sentido: podem ser bons médicos, podem ser pessoas boas sem Deus ou sem outras pessoas…
Ou, ainda, sem sociedade. Só posso ser um bom médico porque aprendi coisas com outros médicos. Só posso ser um bom escritor quando tenho leitores e outros escritores com os quais trocar ideias. Quanto às questões espirituais, elas simplesmente deixaram de ser uma questão nacional; pertencem a algumas pessoas que têm sentimentos espirituais, que podem formar grupos religiosos e assim por diante. Mas a questão é como isso está relacionado à sociedade política.
Talvez não precisemos mais de democracia?
Bem, não podemos ficar sem ela porque nossas vidas são dominadas pelo poder político.
Mesmo assim, damos preferência à autopreservação e à segurança em detrimento da participação e de todos aqueles velhos modos de vida. Talvez não queiramos nos engajar, pois, embora saibamos que seria melhor sermos cidadãos ativos, o medo do que aconteceu no século 20 prevalece – de modo que preferimos a segurança e a autopreservação.
Sim, isso poderia ser uma explicação da reação, mas é um equívoco. Estamos vivendo em estruturas que exigem a autoridade política, que requerem que as leis sejam obedecidas. Até mesmo o contexto geral do mercado precisa ser baseado nisso. Mas, se não ficarmos atentos a como isso está mudando, pode tornar-se algo tremendamente destrutivo. Grupos pequenos poderão nos conduzir para guerras, como foi o caso no Iraque. Caso contrário, se permitirá que o sistema avance em uma direção em que não existe solidariedade, em que os laços sociais começam a se desfazer, em que nada é feito para fortalecê-los, onde, concretamente, algumas pessoas estão fadadas à miséria.
E também isso é degradante para o ambiente em que vivemos. A ideia de que seria possível simplesmente ignorar a política é uma ilusão. Outra maneira de dizer isso é afirmar que você só pode evitar a política se viver de carona. Se quero apenas escrever meus romances e se houver gente suficiente à minha volta com quem eu possa me engajar, então nada de ruim irá acontecer comigo ou com meus filhos. Mas, em uma situação assim, sou caroneiro – estou andando de carona na participação de outras pessoas. Se todo o mundo fizesse isso, as conseqüências seriam terríveis.
Mas, em uma sociedade dominada pelo mercado, há mais competição que solidariedade e a confiança está desaparecendo.
Não desisti disso, porque as pessoas ainda podem ter algum senso de solidariedade, nem que seja apenas a solidariedade internacional – por exemplo, fazerlevantamento de fundos para vítimas da fome ou de enchentes. Mas as pessoas também podem fazer isso em nível nacional, quando ocorre algum desastre.
Quando o senhor usou esse exemplo 20 anos atrás, muitas vezes escolhendo a ecologia ou os direitos humanos, era compreensível e convincente. Hoje, porém, podemos ver que mesmo as ideias verdes são sujeitas à lógica instrumental do mercado e que mesmo o estilo de vida ecológico está se tornando apenas mais uma forma de consumo. Todos os esforços para preservar a Terra não passam de mais um nicho no mercado.
Estão sem rumo, e esse é o problema. Veja os gases estufa, por exemplo. O que o Ocidente está tentando fazer é introduzir uma nova estrutura de consenso através do comércio de carbono. Você sabe do que se trata: você é autorizado a poluir apenas até certo grau, a não ser que compre permissão de outros que poluem menos.
O comércio de carbono gera incentivos tremendos para a introdução de tecnologias e energias mais verdes. Os incentivos são tamanhos que o mercado começa a trabalhar para você. As pessoas estão investindo dinheiro na energia verde, mas a decisão precisa ser tomada num nível político.
O que estamos vendo agora é que, em função dos republicanos loucos dos EUA, que têm a maioria no Congresso, a lei do comércio de carbono, que talvez pudesse ter sido aprovada nos dois primeiros anos da administração Obama, foi arquivada. E, pelo fato de os americanos não estarem fazendo nada, ninguém mais acha que precisa fazer alguma coisa, e consequências terríveis poderão advir disso. O mercado pode lidar com coisas desse tipo apenas quando é corretamente dirigido.
O senhor diria que ocorre hoje aquilo que Tocqueville chamou de “despotismo suave”?
Sim, mas apenas porque nós permitimos. As pessoas não estão presas a isso, como em uma armadilha. Mas sair disso requer novos tipos de mobilização e imaginação política. Dei muita ajuda à campanha de Obama porque achei que ela encerrava novos tipos de imaginação e mobilização, tanto em termos de técnica quanto de slogans e metas. Estou um pouco desapontado, porque o movimento se desfez em pouco tempo, as pessoas não entenderam inteiramente…
… Revoluções no Facebook?
Revoluções no Facebook podem ter um efeito imediato e podem ser realmente importantes, mas não são algo que se possa levar adiante, que possa servir de base para alguma coisa. Elas não produzem liga social.
O que produz liga social hoje? Como podemos gerar um sentido de solidariedade, coisa absolutamente necessária para qualquer movimento social ou para uma democracia?
Ainda há motivação potencial por aí. Se der uma olhada nas eleições, verá um senso forte de identidade nacional. Não há razão pela qual isso deva ser inteiramente capturado pela direita.
Mas por que o mito nacional está mais forte que o sentido de solidariedade ou até mesmo que a religião?
Acho que é porque as democracias foram erguidas sobre um forte sentimento de identidade comum: o povo polonês, o povo tcheco e assim por diante. Mas também acontece que o modo como se fazia oposição aos regimes autoritários no passado era através de laços de  solidariedade. No caso da Europa, esses laços eram baseados principalmente na linguagem. Não é possível simplesmente reescrever a história e dizer “agora vamos ter uma identidade
europeia”. À medida que fomos criando o mundo moderno, foram essas identidades que se fortaleceram.
O lado positivo é o vínculo delas com a liberdade, com a democracia liberal. Assim, em muitos casos, para lançar um apelo à solidariedade é preciso lançar um apelo a essas identidades nacionais.
Mas me convença de que a popularidade do nacionalismo, do populismo de direita, de todas essas ideologias baseadas na etnicidade sejam algo mais que apenas um retorno à biologia…
Isso não corresponde à realidade. Se voltarmos ao nível individual, veremos que as pessoas têm significados de diferentes tipos. A questão é como criamos o laço entre esses diferentes significados, de modo que as pessoas sintam solidariedade, um certo vínculo com outras, algo que, por sua vez, leve a ações coletivas, ainda que os significados não sejam exatamente os mesmos. Sempre existe essa base possível. Não é verdade que todos nós tenhamos virado egoístas totais.
Não viramos?
Não, a maioria das pessoas não é assim. Se você analisar as pessoas uma a uma, elas na realidade não são nem um pouco assim. Isso é algo que Obama fez: lançou um apelo a algo que existia dentro de todos esses jovens, mostrando a eles que é possível haver uma vida política com mais significado.
O slogan “yes we can” apela para o sentimento de impotência que as pessoas têm no mundo político: gostaríamos de ter um mundo mais justo, mais ecológico, mas não sabemos mais como fazer para consegui-lo. O que Obama fez foi apelar para todas essas ambições morais fortes e dar às pessoas o sentimento de que sim, se nos unirmos, então…
Sim, mas o que dizer da substância? Ela ainda satisfaz?
Não é exatamente a substância que é o problema. Para ter capacidade de resistência, é preciso ter organização política. E a organização política de Obama, tão poderosa até novembro de 2008, se desmontou a partir do momento em que ele foi eleito.
Quando tínhamos alternativas claras, era possível optar por um modo de desenvolvimento social-democrático ou uma maneira mais liberal de fazer as coisas. Agora que essa diferença substancial deixou de existir, não é verdade que a opção que temos é entre “yes, we can” e “no, we can’t”? Não é a despolitização da política que produz essas escolhas?
Bem, não é possível levar uma campanha com uma plataforma baseada na ideia de que “esses sujeitos são idiotas”. É claro que eles são, mas não é possível basear uma campanha nisso.
Tradução de Clara Allain.
Fonte: Revista Cult

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Para refletir - Nietzsche

Friedrich Nietzsche

'Quem deseja aprender a voar deve primeiro aprender a caminhar, a correr, a escalar e a dançar. Não se aprende a voar voando'. (Friedrich Nietzsche)

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Síntese das Antíteses - Poema 2 - Tao Te Ching de Lao-Tsé



Só temos consciência do belo
Quando conhecemos o feio.
Só temos consciência do bom
Quando conhecemos o mau.
Porquanto o Ser e o Existir
Se engendram mutuamente.
O fácil e o difícil se completam.
O grande e o pequeno são complementares.
O alto e o baixo formam um todo.
O som e o silêncio formam a harmonia.
O passado e o futuro geram o tempo.
Eis por que o sábio age
Pelo não-agir.
E ensina sem falar.
Aceita tudo que lhe acontece.
Produz tudo e não fica com nada.
O sábio tudo realiza - e nada considera seu.
Tudo faz - e não se apega à sua obra.
Não se prende aos frutos de sua atividade.
Termina a sua obra
E está sempre no princípio.
E por isto a sua obra prospera.

TSÉ, Lao. Tao te Ching. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 30.

Sobre a leitura e os livros, parágrafo 2º - Arthur Schopenhauer


SOBRE A LEITURA E OS LIVROS


Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: apenas repetimos seu processo mental, do mesmo modo que um estudante, ao aprender a escrever, refaz com a pena os traços que seu professor fizera a lápis. Quando lemos, somos dispensados em grande parte do trabalho de pensar. É por isso que sentimos um alívio ao passarmos da ocupação com nossos próprios pensamentos para a leitura. No entanto, a nossa cabeça é, durante a leitura, apenas uma arena de pensamentos alheios. Quando eles se retiram, o que resta? Em consequência disso, quem lê muito e quase o dia todo, mas nos intervalos passa o tempo sem pensar nada, perde gradativamente a capacidade de pensar por si mesmo - como alguém que, de tanto cavalgar, acabasse desaprendendo a andar. Mas é este o caso de muitos eruditos: leram até ficarem burros. Pois a leitura contínua, retomada de imediato a cada momento livre, imobiliza o espírito mais do que o trabalho manual contínuo, já que é possível entregar-se a seus próprios pensamentos durante esse trabalho. Assim como uma mola acaba perdendo sua elasticidade pela pressão incessante de outro corpo, o espírito perde a sua pela imposição constante de pensamentos alheios. E, assim como o excesso de alimentação faz mal ao estômago e dessa maneira acaba afetando o corpo todo, também é possível, com excesso de alimento espiritual, sobrecarregar e sufocar o espírito. Pois, quanto mais se lê, menor a quantidade de marcas deixadas no espírito pelo que foi lido: ele se torna como um quadro com muitas coisas escritas sobre as outras. Com isso não se chega à ruminação:17 mas é só por meio dela que nos apropriamos do que foi lido, assim como as refeições não nos alimentam quando comemos, e sim quando digerimos. 

Em contrapartida, se alguém lê continuamente, sem parar para pensar, o que foi lido não cria raízes e se perde em grande parte. Em todo caso, com o alimento espiritual ocorre a mesma coisa que com o corporal: só a quinquagésima parte do que alguém absorve é assimilada, o resto se perde pela transpiração, respiração e, assim por diante.


Além de tudo, os pensamentos postos em papel não passam, em geral, de um vestígio deixado na areia por um passante: vê-se bem o caminho que ele tomou, mas para saber o que ele viu durante o caminho é preciso usar os próprios olhos.

(SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2005, pp. 127-129.)